2/11/2012
3/10/2012
La crisis del capitalismo y la importancia actual de Marx 150 años después de los Grundrisse
Na entrevista abaixo, concedida a Marcello Musto em 2008, para Sin Permisso, Eric Hobsbawm discorre sobre a crise do capitalismo e a atualidade de Marx.
Marcello Musto: Professor Hobsbawm, duas décadas depois de 1989, quando foi apressadamente relegado ao esquecimento, Karl Marx regressou ao centro das atenções. Livre do papel de intrumentum regni que lhe foi atribuído na União Soviética e das ataduras do “marxismo-leninismo”, não só tem recebido atenção intelectual pela nova publicação de sua obra, como também tem sido objeto de crescente interesse.
Em 2003, a revista francesa Nouvel Observateur dedicou um número especial a Marx, com um título provocador: “O pensador do terceiro milênio?”. Um ano depois, na Alemanha, em uma pesquisa organizada pela companhia de televisão ZDF para estabelecer quem eram os alemães mais importantes de todos os tempos, mais de 500 mil espectadores votaram em Karl Marx, que obteve o terceiro lugar na classificação geral e o primeiro na categoria de “relevância atual”.
Em 2005, o semanário alemão Der Spiegel publicou uma matéria especial que tinha como título “Ein Gespenst Kehrt zurük” (A volta de um espectro), enquanto os ouvintes do programa “In Our Time” da rádio 4, da BBC, votavam em Marx como o maior filósofo de todos os tempos. Em uma conversa com Jacques Attali, recentemente publicada, você disse que, paradoxalmente, “são os capitalistas, mais que outros, que estão redescobrindo Marx” e falou também de seu assombro ao ouvir da boca do homem de negócios e político liberal George Soros a seguinte frase: “Ando lendo Marx e há muitas coisas interessantes no que ele diz”.
Ainda que seja débil e mesmo vago, quais são as razões para esse renascimento de Marx? É possível que sua obra seja considerada como de interesse só de especialistas e intelectuais, para ser apresentada em cursos universitários como um grande clássico do pensamento moderno que não deveria ser esquecido? Ou poderá surgir no futuro uma nova “demanda de Marx”, do ponto de vista político?
Eric Hobsbawm: Há um indiscutível renascimento do interesse público por Marx no mundo capitalista, com exceção, provavelmente, dos novos membros da União Européia, do leste europeu. Este renascimento foi provavelmente acelerado pelo fato de que o 150° aniversário da publicação do Manifesto Comunista coincidiu com uma crise econômica internacional particularmente dramática em um período de uma ultra-rápida globalização do livre-mercado.
Marx previu a natureza da economia mundial no início do século XXI, com base na análise da “sociedade burguesa”, cento e cinqüenta anos antes. Não é surpreendente que os capitalistas inteligentes, especialmente no setor financeiro globalizado, fiquem impressionados com Marx, já que eles são necessariamente mais conscientes que outros sobre a natureza e as instabilidades da economia capitalista na qual eles operam.
A maioria da esquerda intelectual já não sabe o que fazer com Marx. Ela foi desmoralizada pelo colapso do projeto social-democrata na maioria dos estados do Atlântico Norte, nos anos 1980, e pela conversão massiva dos governos nacionais à ideologia do livre mercado, assim como pelo colapso dos sistemas políticos e econômicos que afirmavam ser inspirados por Marx e Lênin.
Os assim chamados “novos movimentos sociais”, como o feminismo, tampouco tiveram uma conexão lógica com o anti-capitalismpo (ainda que, individualmente, muitos de seus membros possam estar alinhados com ele) ou questionaram a crença no progresso sem fim do controle humano sobre a natureza que tanto o capitalismo como o socialismo tradicional compartilharam. Ao mesmo tempo, o “proletariado”, dividido e diminuído, deixou de ser crível como agente histórico da transformação social preconizada por Marx.
Devemos levar em conta também que, desde 1968, os mais proeminentes movimentos radicais preferiram a ação direta não necessariamente baseada em muitas leituras e análises teóricas. Claro, isso não significa que Marx tenha deixado de ser considerado como um grande clássico e pensador, ainda que, por razões políticas, especialmente em países como França e Itália, que já tiveram poderosos Partidos Comunistas, tenha havido uma apaixonada ofensiva intelectual contra Marx e as análises marxistas, que provavelmente atingiu seu ápice nos anos oitenta e noventa. Há sinais agora de que a água retomará seu nível.
Marcello Musto: Ao longo de sua vida, Marx foi um agudo e incansável investigador, que percebeu e analisou melhor do que ninguém em seu tempo o desenvolvimento do capitalismo em escala mundial. Ele entendeu que o nascimento de uma economia internacional globalizada era inerente ao modo capitalista de produção e previu que este processo geraria não somente o crescimento e prosperidade alardeados por políticos e teóricos liberais, mas também violentos conflitos, crises econômicas e injustiça social generalizada.
Na última década, vimos a crise financeira do leste asiático, que começou no verão de 1997; a crise econômica Argentina de 1999-2002 e, sobretudo, a crise dos empréstimos hipotecários que começou nos Estados Unidos em 2006 e agora tornou-se a maior crise financeira do pós-guerra. É correto dizer, então, que o retorno do interesse pela obra de Marx está baseado na crise da sociedade capitalista e na capacidade dele ajudar a explicar as profundas contradições do mundo atual?
Eric Hobsbawm: Se a política da esquerda no futuro será inspirada uma vez mais nas análises de Marx, como ocorreu com os velhos movimentos socialistas e comunistas, isso dependerá do que vai acontecer no mundo capitalista. Isso se aplica não somente a Marx, mas à esquerda considerada como um projeto e uma ideologia política coerente.
Posto que, como você diz corretamente, a recuperação do interesse por Marx está consideravelmente – eu diria, principalmente – baseado na atual crise da sociedade capitalista, a perspectiva é mais promissora do que foi nos anos noventa. A atual crise financeira mundial, que pode transformar-se em uma grande depressão econômica nos EUA, dramatiza o fracasso da teologia do livre mercado global descontrolado e obriga, inclusive o governo norte-americano, a escolher ações públicas esquecidas desde os anos trinta.
As pressões políticas já estão debilitando o compromisso dos governos neoliberais em torno de uma globalização descontrolada, ilimitada e desregulada. Em alguns casos, como a China, as vastas desigualdades e injustiças causadas por uma transição geral a uma economia de livre mercado, já coloca problemas importantes para a estabilidade social e mesmo dúvidas nos altos escalões de governo.
É claro que qualquer “retorno a Marx” será essencialmente um retorno à análise de Marx sobre o capitalismo e seu lugar na evolução histórica da humanidade – incluindo, sobretudo, suas análises sobre a instabilidade central do desenvolvimento capitalista que procede por meio de crises econômicas auto-geradas com dimensões políticas e sociais. Nenhum marxista poderia acreditar que, como argumentaram os ideólogos neoliberais em 1989, o capitalismo liberal havia triunfado para sempre, que a história tinha chegado ao fim ou que qualquer sistema de relações humanas possa ser definitivo para todo o sempre.
Marcello Musto: Você não acha que, se as forças políticas e intelectuais da esquerda internacional, que se questionam sobre o que poderia ser o socialismo do século XXI, renunciarem às idéias de Marx, estarão perdendo um guia fundamental para o exame e a transformação da realidade atual?
Eric Hobsbawm: Nenhum socialista pode renunciar às idéias de Marx, na medida que sua crença em que o capitalismo deve ser sucedido por outra forma de sociedade está baseada, não na esperança ou na vontade, mas sim em uma análise séria do desenvolvimento histórico, particularmente da era capitalista. Sua previsão de que o capitalismo seria substituído por um sistema administrado ou planejado socialmente parece razoável, ainda que certamente ele tenha subestimado os elementos de mercado que sobreviveriam em algum sistema pós-capitalista.
Considerando que Marx, deliberadamente, absteve-se de especular acerca do futuro, não pode ser responsabilizado pelas formas específicas em que as economias “socialistas” foram organizadas sob o chamado “socialismo realmente existente”. Quanto aos objetivos do socialismo, Marx não foi o único pensador que queria uma sociedade sem exploração e alienação, em que os seres humanos pudessem realizar plenamente suas potencialidades, mas foi o que expressou essa idéia com maior força e suas palavras mantêm seu poder de inspiração.
No entanto, Marx não regressará como uma inspiração política para a esquerda até que se compreenda que seus escritos não devem ser tratados como programas políticos, autoritariamente ou de outra maneira, nem como descrições de uma situação real do mundo capitalista de hoje, mas sim como um caminho para entender a natureza do desenvolvimento capitalista.
Tampouco podemos ou devemos esquecer que ele não conseguiu realizar uma apresentação bem planejada, coerente e completa de suas idéias, apesar das tentativas de Engels e outros de construir, a partir dos manuscritos de Marx, um volume II e III de “O Capital”. Como mostram os “Grundrisse”, aliás. Inclusive, um Capital completo teria conformado apenas uma parte do próprio plano original de Marx, talvez excessivamente ambicioso.
Por outro lado, Marx não regressará à esquerda até que a tendência atual entre os ativistas radicais de converter o anti-capitalismo em anti-globalização seja abandonada. A globalização existe e, salvo um colapso da sociedade humana, é irreversível. Marx reconheceu isso como um fato e, como um internacionalista, deu as boas vindas, teoricamente. O que ele criticou e o que nós devemos criticar é o tipo de globalização produzida pelo capitalismo.
Marcello Musto: Um dos escritos de Marx que suscitaram o maior interesse entre os novos leitores e comentadores são os “Grundrisse”. Escritos entre 1857 e 1858, os “Grundrisse” são o primeiro rascunho da crítica da economia política de Marx e, portanto, também o trabalho inicial preparatório do Capital, contendo numerosas reflexões sobre temas que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte de sua criação inacabada.
Por que, em sua opinião, estes manuscritos da obra de Marx, continuam provocando mais debate que qualquer outro texto, apesar do fato dele tê-los escrito somente para resumir os fundamentos de sua crítica da economia política? Qual é a razão de seu persistente interesse?
Eric Hobsbawm: Desde o meu ponto de vista, os “Grundrisse” provocaram um impacto internacional tão grande na cena marxista intelectual por duas razões relacionadas. Eles permaneceram virtualmente não publicados antes dos anos cinqüenta e, como você diz, contendo uma massa de reflexões sobre assuntos que Marx não desenvolveu em nenhuma outra parte. Não fizeram parte do largamente dogmatizado corpus do marxismo ortodoxo no mundo do socialismo soviético. Mas não podiam simplesmente ser descartados.
Puderam, portanto, ser usados por marxistas que queriam criticar ortodoxamente ou ampliar o alcance da análise marxista mediante o apelo a um texto que não podia ser acusado de herético ou anti-marxista. Assim, as edições dos anos setenta e oitenta, antes da queda do Muro de Berlim, seguiram provocando debate, fundamentalmente porque nestes escritos Marx coloca problemas importantes que não foram considerados no “Capital”, como por exemplo as questões assinaladas em meu prefácio ao volume de ensaios que você organizou (Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
Marcello Musto: No prefácio deste livro, escrito por vários especialistas internacionais para comemorar o 150° aniversário de sua composição, você escreveu: “Talvez este seja o momento correto para retornar ao estudo dos “Grundrisse”, menos constrangidos pelas considerações temporais das políticas de esquerda entre a denúncia de Stalin, feita por Nikita Khruschev, e a queda de Mikhail Gorbachev”.
Além disso, para destacar o enorme valor deste texto, você diz que os “Grundrisse” “trazem análise e compreensão, por exemplo, da tecnologia, o que leva o tratamento de Marx do capitalismo para além do século XIX, para a era de uma sociedade onde a produção não requer já mão-de-obra massiva, para a era da automatização, do potencial de tempo livre e das transformações do fenômeno da alienação sob tais circunstâncias.
Este é o único texto que vai, de alguma maneira, mais além dos próprios indícios do futuro comunista apontados por Marx na “Ideologia Alemã”. Em poucas palavras, esse texto tem sido descrito corretamente como o pensamento de Marx em toda sua riqueza. Assim, qual poderia ser o resultado da releitura dos “Grundrisse” hoje?
Eric Hobsbawm: Não há, provavelmente, mais do que um punhado de editores e tradutores que tenham tido um pleno conhecimento desta grande e notoriamente difícil massa de textos. Mas uma releitura ou leitura deles hoje pode ajudar-nos a repensar Marx: a distinguir o geral na análise do capitalismo de Marx daquilo que foi específico da situação da sociedade burguesa na metade do século XIX. Não podemos prever que conclusões podem surgir desta análise. Provavelmente, somente podemos dizer que certamente não levarão a acordos unânimes.
Marcello Musto: Para terminar, uma pergunta final. Por que é importante ler Marx hoje?
Eric Hobsbawm: Para qualquer interessado nas idéias, seja um estudante universitário ou não, é patentemente claro que Marx é e permanecerá sendo uma das grandes mentes filosóficas, um dos grandes analistas econômicos do século XIX e, em sua máxima expressão, um mestre de uma prosa apaixonada.
Também é importante ler Marx porque o mundo no qual vivemos hoje não pode ser entendido sem levar em conta a influência que os escritos deste homem tiveram sobre o século XX. E, finalmente, deveria ser lido porque, como ele mesmo escreveu, o mundo não pode ser transformado de maneira efetiva se não for entendido. Marx permanece sendo um soberbo pensador para a compreensão do mundo e dos problemas que devemos enfrentar.
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Atualíssima entrevista com Eric Hobsbawm, realizada quatro anos antes de sua morte, em 28/9/2008
“Para cualquier interesado en las ideas, sea un estudiante universitario o no, es patentemente claro que Marx es y permanecerá como una de las grandes mentes filosóficas y analistas económicas del siglo diecinueve y, en su máxima expresión, un maestro de una prosa apasionada. También es importante leer a Marx porque el mundo en el cual vivimos hoy, no puede entenderse sin la influencia que los escritos de este hombre tuvieron sobre el siglo XX. Y, finalmente, debería ser leído porque como él mismo escribió, el mundo no puede ser cambiado de manera efectiva a menos que sea entendido, y Marx permanece como una soberbia guía para la comprensión del mundo y los problemas a los que debemos hacer frente.”
Eric Hobsbawm es considerado uno de los más grandes historiadores vivientes. Es Presidente de la Birkbeck College (London University) y profesor emérito de la New School for Social Research (New York). Entre sus muchos escritos se encuentran la trilogía acerca del “largo siglo XIX”: The Age of Revolution: Europe 1789-1848 (1962); The Age of Capital: 1848-1874 (1975); The Age of Empire: 1875-1914 (1987) y el libro The Age of Extremes: The Short Twentieth Century, 1914-1991 (1994) traducidos a varios idiomas. Le entrevistamos cuando la publicación del volumen Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later y con motivo de la nueva actualidad que están teniendo en los últimos años los escritos de Marx y después de la nueva crisis de Wall Street. Nuestro colaborador Marcello Musto lo entrevistó para Sin Permiso.
1) Marcelo Musto. Profesor Hobsbawm, dos décadas después de 1989, cuando fue apresuradamente relegado al olvido, Karl Marx ha regresado al centro de atención. Libre del papel de intrumentum regni que le fue asignado en la Unión Soviética y de las ataduras del “marxismo-leninismo”, no solo ha recibido atención intelectual por la nueva publicación de su obra sino que también ha sido el centro de un mayor interés. De hecho, en 2003, la revista francesa Nouvel Observateur dedicó un número especial a Karl Marx. Le penseur du troisième millénaire? Un año después, en Alemania, en una encuesta organizada por la compañía de televisión ZDF para establecer quien eran los más importantes alemanes de todos los tiempos, más de 500.000 televidentes votaron por Karl Marx; quien obtuvo el tercer lugar en la clasificación general y primero en la categoría de “relevancia actual”. Luego, en 2005, el semanario Der Spiegel le dedicó una portada con el título de Ein Gespenst Kehrt zurük (Un espectro ha vuelto) mientras los escuchas del programa In Our Time de Radio 4 de la BBC votaron por Marx como el más grande filósofo.
En una conversación recientemente publicada con Jacques Attalí, usted dijo que paradójicamente “son los capitalistas, más que otros, quienes han estado redescubriendo a Marx” y usted habló de su asombro, cuando el hombre de negocios y político liberal, George Soros, le dijo a usted que: “He estado leyendo a Marx y hay muchas cosas interesantes en lo que él dice”. Aunque sea débil y más bien vago ¿cuáles son las razones de este renacimiento? ¿Es probable que su obra sea de interés solamente para los especialistas e intelectuales, para ser presentada en cursos universitarios como un gran clásico del pensamiento moderno que no debería ser olvidado? o ¿también podría venir una nueva “demanda de Marx” en el futuro desde el lado político?
Eric Hobsbawm. Hay un indudable renacimiento del interés público en Marx en el mundo capitalista, sin embargo, probablemente no todavía en los nuevos miembros de la Unión Europea de Europa del Este. Este renacimiento, fue probablemente acelerado por el hecho de que el 150 aniversario de la publicación del Manifiesto del Partido Comunista coincidió con una crisis económica internacional particularmente dramática en medio de un período de ultra-rápida globalización del libre mercado.
Marx predijo la naturaleza de la economía mundial en el comienzo del Siglo XXI, sobre la base de su análisis de la “sociedad burguesa”, ciento cincuenta años antes. No es sorprendente que los capitalistas inteligentes, especialmente en el sector financiero globalizado, fueran impresionados por Marx, ya que ellos fueron necesariamente más concientes que otros de la naturaleza y las inestabilidades de la economía capitalista en la cual ellos operaban. La mayoría de la izquierda intelectual ya no supo que hacer con Marx. Fue desmoralizada por el colapso del proyecto social-demócrata en la mayoría de los Estados Atlánticos del Norte en los ochenta y la conversión masiva de los gobiernos nacionales a la ideología de libre mercado así como por el colapso de los sistemas políticos y económicos que afirmaban ser inspirados por Marx y Lenin. Los así llamados, “nuevos movimientos sociales” como el feminismo, tampoco tuvieron una conexión lógica con el anti-capitalismo (aunque como individuos sus miembros pudieran estar alineados con él) o cuestionaron la creencia en el progreso sin fin del control humano sobre la naturaleza que tanto el capitalismo como el socialismo tradicional habían compartido. Al mismo tiempo, “el proletariado”, dividido y disminuido, dejó de ser creíble como el agente histórico de la transformación social de Marx. Es también el caso que desde 1968, los más prominentes movimientos radicales han preferido la acción directa no necesariamente basada sobre muchas lecturas y análisis teóricos. Claro, esto no significa que Marx dejara de ser considerado como un gran y clásico pensador, aunque por razones políticas, especialmente en países como Francia e Italia, que alguna vez tuvieron poderosos Partidos Comunistas, ha habido una ofensiva intelectual apasionada contra Marx y los análisis marxistas, que probablemente llegaron a su más alto nivel en los ochenta y noventa. Hay signos de que ahora el agua retomará su nivel.
2) M. M. A través de su vida, Marx fue un agudo e incansable investigador, quien percibió y analizó mejor que ninguno otro en su tiempo, el desarrollo del capitalismo a escala mundial. Él entendió que el nacimiento de una economía internacional globalizada era inherente al modo capitalista de producción y predijo que este proceso generaría no solamente el crecimiento y la prosperidad alardeados por políticos y teóricos liberales sino también violentos conflictos, crisis económicas e injusticia social generalizada. En la última década hemos visto la Crisis financiera del este asiático, que empezó en el verano de 1997; la crisis económica argentina de 1999-2002 y sobre todo, la crisis de los préstamos hipotecarios, que empezó en Estados Unidos en 2006 y ahora ha devenido la más grande crisis financiera de la post-guerra. ¿Es correcto decir entonces, que el regreso al interés en Marx está basado en la crisis de la sociedad capitalista y sobre su perdurable capacidad de explicar las profundas contradicciones del mundo actual?
E. H. Si la política de la izquierda en el futuro será inspirada una vez más en los análisis de Marx, como lo fueron los viejos movimientos socialistas y comunistas, dependerá de lo que pase en el mundo capitalista. Pero esto aplica no solamente a Marx sino a la izquierda como un proyecto y una ideología política coherente. Puesto que, como usted dice correctamente, la recuperación del interés en Marx está considerablemente –yo diría, principalmente- basado sobre la actual crisis de la sociedad capitalista, la perspectiva es más prometedora de lo que fue en los noventa. La presente crisis financiera mundial, que bien puede devenir en una mayor depresión económica en Estados Unidos, dramatiza el fracaso de la teología del libre mercado global incontrolado y obliga, inclusive del Gobierno norteamericano, a considerar optar por tomar acciones públicas olvidadas desde los treinta. Las presiones políticas están ya debilitando el compromiso de los gobiernos neoliberales en torno a una globalización incontrolada, ilimitada y desregulada. En algunos casos (China) las vastas desigualdades e injusticias causadas por una transición de modo general a una economía de libre mercado, plantea ya problemas importantes para la estabilidad social y dudas inclusive en altos niveles de gobierno.
Es claro que cualquier “retorno a Marx” será esencialmente un retorno al análisis de Marx del capitalismo y su lugar en la evolución histórica de la humanidad —incluyendo, sobre todo, sus análisis de la inestabilidad central del desarrollo capitalista que procede a través de crisis económicas auto-generadas con dimensiones políticas y sociales. Ningún marxista podría creer por un momento que, como argumentaron los ideólogos neoliberales en 1989, el capitalismo liberal se había establecido para siempre, que la historia tenía un fin o, en efecto, que cualquier sistema de relaciones humanas podría ser para siempre, final y definitivo.
3) M. M. No piensa usted que si las fuerzas políticas e intelectuales de la izquierda internacional, que se cuestionan a sí mismas con respecto al socialismo en el nuevo siglo, renunciaran a las ideas de Marx, ¿no perderían una guía fundamental para el examen y la transformación de la realidad actual?
E. H. Ningún socialista puede renunciar a las ideas de Marx, en tanto que su creencia de que el capitalismo debe ser sucedido por otra forma de sociedad está basada, no en la esperanza o la voluntad sino en un análisis serio del desarrollo histórico, particularmente de la era capitalista. Su predicción real de que el capitalismo sería re-emplazado por un sistema administrado o planeado socialmente todavía parece razonable, aunque él ciertamente subestimó los elementos de mercado que sobrevivirían en algún sistema(s) post-capitalista. Puesto que él deliberadamente se abstuvo de especular acerca del futuro, no puede ser hecho responsable por las formas específicas en que las economías “socialistas” fueron organizadas bajo el “socialismo realmente existente”. En cuanto a los objetivos del socialismo, Marx no fue el único pensador que quería una sociedad sin explotación y alienación, en que los seres humanos pudieran realizar plenamente sus potencialidades, pero sí fue el que la expresó con mayor fuerza que nadie, y sus palabras mantienen el poder para inspirar.
Sin embargo, Marx no regresará como una inspiración política para la izquierda hasta que sea entendido que sus escritos no deben ser tratados como programas políticos, autoritariamente, o de otra manera, ni como descripciones de una situación real del mundo capitalista de hoy, sino más bien, como guías hacia su modo de entender la naturaleza del desarrollo capitalista. Ni tampoco podemos o debemos olvidar que él no logró una presentación bien planeada, coherente y completa de sus ideas, a pesar de los intentos de Engels y otros de construir de los manuscritos de Marx, un volumen II y III de El Capital. Como lo muestran los Grundrisse. Incluso, un Capital completo habría conformado solamente una parte del propio plan original de Marx, quizá excesivamente ambicioso.
Por otro lado, Marx no regresará a la izquierda hasta que la tendencia actual entre los activistas radicales de convertir el anticapitalismo en anti-globalismo sea abandonada. La globalización existe y, salvo un colapso general de la sociedad humana, es irreversible. En efecto, Marx lo reconoció como un hecho y. como un internacionalista, le dio la bienvenida, teóricamente. Lo que él criticó y lo que nosotros debemos criticar es el tipo de globalización producida por el capitalismo.
4) M. M. Uno de los escritos de Marx que suscitaron el mayor interés entre los nuevos lectores y comentadores son los Grundrisse. Escritos entre 1857 y 1858, los Grundrisse son el primer borrador de la crítica de la economía política de Marx y, por tanto, también el trabajo inicial preparatorio del Capital; contiene numerosas reflexiones sobre temas que Marx no desarrolló en ninguna otra parte de su creación inacabada. ¿Por qué, en su opinión, estos manuscritos de la obra de Marx, continúan provocando más debate que cualquiera otro, a pesar del hecho de que los escribió solamente para resumir los fundamentos de su crítica de la economía política? ¿Cuál es la razón de su persistente interés?
E. H. Desde mi punto de vista, los Grundrisse han provocado un impacto internacional tan grande sobre la escena marxista intelectual por dos razones relacionadas. Permanecieron virtualmente no publicados antes de los cincuenta y, como usted dice, conteniendo una masa de reflexiones sobre asuntos que Marx no desarrolló en ninguna otra parte. No fueron parte del largamente dogmatizado corpus del marxismo ortodoxo en el mundo del socialismo soviético, de ahí que el socialismo soviético no pudiera simplemente desecharlos. Pudieron, por tanto, ser usados por marxistas que querían criticar ortodoxamente o ampliar el alcance del análisis marxista mediante una apelación a un texto que no podría ser acusado de ser herético o anti-marxista. Por tanto, las ediciones de los setenta y los ochenta antes de la caída del Muro de Berlín, continuaron provocando debate, fundamentalmente porque en estos manuscritos Marx plantea problemas importantes que no fueron considerados en el Capital, como por ejemplo, las cuestiones planteadas en mi prefacio al volumen de ensayos que usted recolectó (Karl Marx’s Grundrisse. Foundations of the Critique of Political Economy 150 Years Later, editado por M. Musto, Londres-Nueva York, Routledge, 2008).
5) M. M. En el prefacio de este libro, escrito por varios expertos internacionales para conmemorar el 150 aniversario desde su composición, usted escribió: “Quizá este es el momento correcto para regresar al estudio de los Grundrisse menos constreñidos por las consideraciones temporales de las políticas de izquierda entre la denuncia de Nikita Khrushchev de Stalin y la caída de Mikhail Gorbachev”. Además, para subrayar el enorme valor de este texto, usted establece que los Grundrisse “contienen análisis y la comprensión, por ejemplo, de la tecnología, que lleva al tratamiento de Marx del capitalismo mas allá del siglo XIX en la era de una sociedad donde la producción no requiere ya mano de obra masiva, de automatización, de potencial de tiempo libre y de las transformaciones de alienación en tales circunstancias. Este es el único texto que va, de alguna manera, más allá de los propios indicios de Marx del futuro comunista en la Ideología Alemana. En pocas palabras, ha sido correctamente descrito como el pensamiento de Marx en toda su riqueza. Por tanto ¿cuál podría ser el resultado de la re-lectura de los Grundrisse hoy?
E. H. No hay probablemente más que un puñado de editores y traductores que han tenido un pleno conocimiento de esta gran y notoriamente difícil masa de textos. Pero una re-re-lectura o más bien lectura de ellos hoy puede ayudarnos a repensar a Marx: a distinguir lo general en el análisis del capitalismo de Marx de lo que fue específico de la situación de la “sociedad burguesa” en la mitad del siglo XIX. No podemos predecir qué conclusiones de este análisis son posibles y probablemente solamente que ellos ciertamente no llevarán a acuerdos unánimes.
6) M. M. Para terminar una pregunta final ¿Por qué es importante leer hoy a Marx?
E. H. Para cualquier interesado en las ideas, sea un estudiante universitario o no, es patentemente claro que Marx es y permanecerá como una de las grandes mentes filosóficas y analistas económicas del siglo diecinueve y, en su máxima expresión, un maestro de una prosa apasionada. También es importante leer a Marx porque el mundo en el cual vivimos hoy, no puede entenderse sin la influencia que los escritos de este hombre tuvieron sobre el siglo XX. Y finalmente debería ser leído porque como él mismo escribió, el mundo no puede ser cambiado de manera efectiva a menos que sea entendido, y Marx permanece como una soberbia guía para la comprensión del mundo y los problemas a los que debemos hacer frente.
Eric Hobsbawm es el decano de la historiografía marxista británica. Uno de sus últimos libros es un volumen de memorias autobiográficas: Años interesantes, Barcelona, Critica, 2003.
Traducción para http://www.sinpermiso.info: Gabriel Vargas Lozano
8/4/2012
A ressurreição como insurreição
Por Leonardo Boff, publicado no leonardoboff.com, em 7/4/2012
Há uma questão da existência social do ser humano que atormenta o espírito e para a qual a ressurreição do Crucificado pode trazer um raio de luz: que sentido tem a morte violenta dos que tombaram pela causa da justiça e da liberdade? Que futuro têm aqueles proletários, camponeses, índios, sequestrados, torturados, assassinados pelos órgãos de segurança dos regimes despóticos e totalitários, como os nossos da América Latina, em fim, os anônimos que historicamente foram trucidados por reivindicarem seus direitos e a liberdade para si e para toda uma sociedade?
Geralmente a história é contada pelos que triunfaram e na perspectiva de seus interesses. A nossa, a brasileira, foi escrita pela mão branca. Só com o historiador mulato Capistrano de Abreu apareceu a mão negra e mulata. O sofrimento dos vencidos quem o honrará? Seus gritos caninos que sobem ao céus quem os escutará?
A ressurreição de Jesus pode nos oferecer alguma resposta. Pois, quem ressuscitou foi um destes derrotados e crucificados, Jesus, feito servo sofredor e condenado à vergonha da crucificação.
Quem ressuscitou não foi um César no auge de sua glória, nem um general no apogeu de seu poderio militar, nem um sábio na culminância de sua fama, nem um sumo-sacerdote com perfume de santidade. Quem ressuscitou foi um Crucificado, executado fora dos muros da cidade, como lembra a Carta aos Hebreus, quer dizer, na maior exclusão e infâmia social.
Mas foi ele que herdou as primícias da vida nova. Pois a ressurreição não é a reanimação de um cadáver como aquele de Lázaro. A ressurreição é a floração plena de todas as virtualidades latentes dentro de cada ser humano. Ela revela o sentido terminal da vida: a irradiação suprema do “homo absconditus” (o humano escondido) que agora se faz o “homo revelatus”(o humano revelado).
A ressurreição de Jesus mostrou que Deus tomou o partido dos vencidos. O algoz não triunfa sobre sua vítima. Deus ressuscitou a vítima e com isso não defraudou nossa sede por um mundo finalmente justo e fraterno que coloca a vida no centro e não o lucro e os interesses dos poderosos. Só ressuscitando os vencidos, fazemos justiça a eles e lhes devolvemos a vida roubada, vida agora transfigurada. Sem essa reconciliação com o passado perverso, a história permaneceria um enigma e até um absurdo.
Os injustamente executados voltarão, com a bandeira branca da vida. O verdadeiro sentido da ressurreição se mostra como insurreição contra as injustiças deste mundo que condena o justo e dá razão ao criminoso.
Agora pode começar uma nova história, com um horizonte aberto para um futuro promissor para a vida, para a sociedade e para a Terra. Dizem historiadores que o mundo antigo não conhecia o sorriso. Mostrava a gargalhada do deus Baco ou o riso maldoso do deus Pan. O sorriso, comentam, foi introduzido pelo Cristianismo por causa da alegria da Ressurreição. Só pode sorrir verdadeiramente quando se exorcizou o medo e se sabe que a grande palavra final é vida e não morte. O sorriso, portanto, é filho da Ressurreição que celebra a vitória da vida sobre a morte, testemunha o encantamento sobre a frustração e proclama o amor incondicional sobre a indiferença e o ódio.
Este fato é religioso é somente acessível mediante a ruptura da fé. Admitindo que a ressurreição realmente aconteceu intra-historicamente, então seu significado transcende o campo religioso. Ganha uma dimensão existencial, social e cósmica. Na expressão de Teilhard de Chardin, a ressurreição configura um “tremendous” de dimensões evolucionárias, pois representa uma revolução dentro da evolução.
Se o Cristianismo tem algo singular a testemunhar, então é isso: a ressurreição como uma antecipação do fim bom do universo e a irrupção dentro da história ainda em curso do “novissimus Adam” como São Paulo chama a Cristo: o “Adão novíssimo”. Portanto, não é a saudade de um passado mas a celebração de um presente.
Depois disso, cabe apenas se alegrar, festejar, ir pelos campos para abençoar os solos e as semeaduras como o faz ainda hoje Igreja Ortodoxa na manhã de Páscoa.Entoemos, pois, o Aleluia da vida nova que se manifestou dentro do velho mundo.
Leonardo Boff é autor A nossa ressurreição na morte (Vozes).
10/3/2012
Primavera de Praga, segundo Hobsbawm, Debord e France Press
O mês de maio de 1968 representou o auge de um momento histórico de intensas transformações políticas, culturais e comportamentais que marcaram a segunda metade do século 20.
Em Maio de 68, a partir de manifestações estudantis ocorridas nas universidades francesas de Nanterre e Sorbonne, irromperam sucessivos movimentos de protestos em diversas universidades de países da Europa e das Américas, que ganharam uma dimensão ainda maior com a ampliação das revoltas para a classe trabalhadora.
06.mai.1968 – Guy Kopelowicz/AP |
Rapaz atira pedra na polícia durante protesto estudantil em Paris (França), em maio de 1968 |
Veja a cronologia ilustrada dos protestos na Europa
Veja a cronologia ilustrada dos protestos nas Américas
Entretanto, o mês histórico não pode ser compreendido sem levar em conta os fatos que eclodiram no mundo nos anos 60, uma década de mudanças na história do ocidente.
Claude-Jean Bertrand, professor do instituto francês de imprensa, escreve no artigo “Um novo nascimento na França” que em seu país, como em outros do mundo, o ano de 1968 marcou o “início do fim” do mundo pós-guerra.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), os Estados Unidos emergiram como potência mundial e, ajudando na reconstrução da devastada Europa, passaram a difundir as novidades e os valores da nova sociedade que surgia.
Após a próspera década de 1950, a partir de protestos estudantis, mudanças políticas e comportamentais, o Ocidente entra nos anos 60 em um momento de “aceleração da história”.
Educação e estudantes
O historiador Eric Hobsbawm afirma, no livro “A Era dos Extremos”, que “a Idade Média acabou de repente” em meados da década de 1950. Para ele, o crescimento repentino dos números da educação, especialmente do ensino superior, são um dos motivos que explica as mudanças da década.
“No fim da Segunda Guerra, havia menos de 100 mil estudantes na França. Em 1960 eram mais de 200 mil e, nos dez anos seguintes, esse número triplicou para 651 mil”, escreve.
mai.1968 – Reprodução |
Filósofo Herbert Marcuse durante aula na Universidade Livre de Berlim (Alemanha) |
Para o historiador a conseqüência mais imediata foi uma “inevitável tensão entre essa massa de estudantes (…) despejadas nas universidades e instituições que não estavam” de nenhuma forma, “preparadas para tal influxo”.
Freqüentemente associa-se aos anos 60 termos como “subversão”, “revolução continuada” e “sociedade do espetáculo”, mas sobretudo com “rebeliões estudantis”. “Não surpreende que a década de 60 tenha se tornado a década da agitação estudantil”, escreve o historiador.
Curiosamente, não era uma época de escassez material, e talvez por isso mesmo os universitários acharam que tudo poderia ser diferente. Para Hobsbawm, eles “podiam pedir mais” da nova sociedade que tinham imaginado.
Embalados pelas novidades dos jovens, os trabalhadores aproveitaram o momento de mudanças para colocar em pauta suas reivindicações.
“O efeito mais imediato da rebelião estudantil foi uma onda de greves operárias por maiores salários e melhores condições de trabalho”, diz o professor.
Rebeliões pelo mundo
As rebeliões dos anos 60, embora pareçam um conjunto se olhadas em perspectiva, tiveram motivações diversas nos diversos países em que se manifestaram.
Divulgação |
Cena do filme “Acossado”, de Godard; ao fundo se lê: “viver perigosamente…até o fim” |
Na França, protestos eclodiram nas universidades em Maio de 68 contra a rigidez do sistema educacional. Na verdade, estes foram parte de uma expressão mais ampla de contracultura dos anos 60, que contestou valores morais julgados “incompatíveis” com os novos tempos.
Entre os símbolos das transformações tecnológicas, sociais e comportamentais na França estavam o automóvel –pessoas eram atropeladas nas ruas por não conseguirem calcular a velocidade dos carros–; a minissaia e a calça jeans –que representavam a emancipação feminina e a modernidade; a valorização das crianças –que até então “não existiam”, pois não havia a compreensão da infância, e elas eram tratadas como “adultos em miniatura”.
Veja matéria sobre Maio de 68 na França
Nas artes, o cinema da nouvelle vague de François Truffaut e Jean-Luc Godard buscava expressar na tela as transformações, em filmes como “Acossado” e “Os Incompreendidos”.
Brasil
No Brasil, que também viveu grandes transformações nas artes — com o Cinema Novo, a Tropicália, e peças de teatro como “Roda Viva” e “O Rei da Vela”– as rebeliões da década de 60 foram mais ligadas a questões políticas, em virtude do golpe militar (1964-1989).
26.jun.1968 – Folha Imagem |
“Passeata dos Cem Mil”, organizada pela União Nacional dos Estudantes, no Rio de Janeiro |
O auge das rebeliões ocorreu com a Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, em 26 de junho, quando foi realizado o mais importante protesto contra a ditadura militar até então.
A manifestação, iniciada a partir de um ato político na Cinelândia, pretendia cobrar uma atitude do governo frente aos problemas estudantis e, ao mesmo tempo, refletia o descontentamento crescente com o governo militar. Dela, participaram também intelectuais, artistas, padres e um grande número de mães.
Nos Estados Unidos, movimentos civis de minorias –negros e mulheres– eclodiram ao mesmo tempo em que John F. Kennedy (1961-1963) assumia a Presidência com um discurso considerado bastante progressista.
Os fatos mais marcantes em 1968 nos EUA foram o assassinado, em 4 de abril, do líder negro Martin Luther King, e o protesto de cerca de 60 mil manifestantes no Central Park, em Nova York, exigindo o fim da guerra do Vietnã, em 28 de abril.
Europa
As manifestações também foram intensas em outros países da Europa Ocidental, e também no Leste Europeu. Na Espanha, Alemanha Ocidental e Bélgica, universidades foram ocupadas e estudantes entraram em confronto com a polícia.
CTK |
Moradores de Praga cercam de tanques soviéticos, em 21 de agosto de 1968 |
Em 1º de março, na Itália, cerca de 3.000 estudantes tomam a sede em Milão do jornal “Corriere della Serra” e em 5 de dezembro cerca de 1 milhão de trabalhadores entram em greve. No Reino Unido, 3 milhões de trabalhadores entram em greve em 15 de março.
Na Tchecoslováquia, em 5 de abril, é lançado no país o programa de reformas políticas conhecido como “Primavera de Praga”, que pretendeu “humanizar” o Partido Comunista, o que desagradou a ex-União Soviética (URSS) do [ex-ditador] Josef Stálin. Em 6 de novembro os estudantes queimam a bandeiras da ex-União Soviética nas ruas de Bratislava.
Leia mais sobre a Primavera de Praga na Tchecoslováquia
Na Polônia, em 8 de março, estudantes protestam contra o regime socialista. Três dias depois a universidade de Varsóvia foi fechada.
América Latina
AP |
Atletas Tommie Smith e John Carlos protestam no pódio da Olimpíada |
Na América Latina, os confrontos também são motivados por questões ligadas à educação, e por conta das ditaduras militares.
No México, confrontos em universidades e nas ruas da cidade do México deixam 38 mortos. O governo, que se organizava para receber os Jogos Olímpicos em 12 de outubro, ordenou que as autoridades disparassem contra os manifestantes na praça das Três Culturas (Tlatelolco), matando cerca de 200 a 300 pessoas.
Durante as Olimpíadas, dois atletas americanos negros levantam os punhos para reivindicar o poder para os negros, na primeira manifestação política durante os Jogos Olímpicos.
No Uruguai, violentos confrontos levam o governo a decretar estado de sítio. Na Argentina, Colômbia e Venezuela, estudantes ocupam universidades, decretam greves, e se envolvem em intensos confrontos com policiais e forças do Exército.
Leia matéria sobre os protestos na América Latina
Fontes: “A Era dos Extremos”, (Eric Hobsbawm), “Situacionista: teoria e prática da revolução” (Vários autores) “A Sociedade do Espetáculo”, (Guy Debord) e France presse.
Fonte: Folha de S. Paulo
27/2/2012
Ex-editor da Veja é o novo porta-voz da Presidência da República
O jornalista Thomas Traumann é o mais novo porta-voz da Presidência da República. A escolha pelo profissional foi anunciada na noite de sexta-feira, 20, pela ministra-chefe da Comunicação Social, Helena Chagas. Ele passa a ocupar o cargo deixado pelo diplomata Rodrigo Baena, que deve comandar alguma embaixada.
Traumann, de 44 anos, já tem experiência na área de comunicação do Executivo Federal. Ele esteve à frente do setor da Casa Civil durante a época em que a pasta era comandada pelo petista Antonio Palocci. Depois do ministério, ele dedicou-se à função de assessor especial de Helena Chagas.
Agora, como porta-voz, Traumann (foto) será o responsável por falar de forma oficial representando a Presidência da República. Além disso, o jornalista também terá que informar a agenda da presidente Dilma Rousseff à imprensa. Resumos das atividades do dia e viagens são algumas das atividades que devem ser comunicadas por ele.
Traumann, porém, não tem apenas experiência profissional em cargos atrelados ao governo federal. Ele foi repórter e editor da Veja, chegando a coordenar o projeto ‘Ecologia’ da publicação da Editora Abril, em 1997. Ele também teve passagens pela redação da revista Época e foi comentarista do programa ‘Entre Aspas’, da Globonews.
Fonte: Observatório da Imprensa
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A bola é mágica
A Copa do Mundo de 2014 aparece nas manchetes através das obras em estádios e da queda de braço entre a Fifa e o governo brasileiro em torno da Lei da Copa. Mas o que está em jogo com o megaevento, anunciado com festa no país em 2007, toca em pontos bem mais profundos, segundo Jaeho Kang, professor de estudos da mídia no departamento de sociologia da New School, nos EUA: as expectativas de todo um povo, a imagem que os habitantes têm de sua terra, a reorganização do espaço urbano, o modo de reprodução econômica dos clubes de futebol.
Os impactos da Copa (assim como da Olimpíada e outros grandes eventos internacionais), que podem desaparecer sob o entusiasmo de preparar o evento, mas nem por isso deixam de transformar a vida cotidiana no país, formam o objeto de estudo de Kang. O sociólogo esteve no Brasil para falar sobre “A Copa do Mundo como Espetáculo Midiático” no Centro Mariantônia, da Universidade de São Paulo. Ele prepara um documentário sobre as esperanças e os esforços de um menino que, aos 11 anos, tenta a sorte no mundo do futebol.
O filme – “um experimento em etnografia visual”, nas palavras de Kang – repete a iniciativa do pesquisador na África do Sul, que recebeu a Copa do Mundo em 2010. “Lá, as expectativas do menino reproduziam as expectativas do país como um todo.” O evento em si, lembra Kang, dura só um mês, mas a preparação leva anos e a infraestrutura, em que se gastaram bilhões de dólares, permanece: dezenas de hotéis, aeroportos ampliados, estádios.
“A Copa se tornou uma forma notável da esfera pública mediada (…) com status seminal como ritual de massas e festival urbano”
A preparação é um período de investimento, mobilização e entusiasmo, mas a herança da disputa é incerta. A Copa, argumenta Kang, é encarada no Brasil como uma oportunidade para reconfigurar a posição do país no mundo. “A mídia, local e global, desempenha papel crucial na articulação dessa experiência coletiva.”
“Quando acaba, fica a pergunta: o que realmente restou disso tudo? O que o país realmente alcançou? A trajetória é a mesma: esperança, tentativa e, enfim, sucesso ou fracasso. “Para onde vai esse menino? Para onde vai esse país?”, resume Kang. As famílias dos meninos que batalham nas categorias de base dos clubes de futebol se unem, se sacrificam, fazem de tudo para que o filho talentoso tenha sucesso no mundo do esporte. Se ele se tornar o ídolo de algum grande clube, a recompensa é enorme. Se falhar, “o rapaz é deixado de lado em tudo, porque não se preparou para nenhuma outra profissão”.
Na África do Sul, o diagnóstico é alentador, ao menos no espírito dos habitantes. “Eles sentem que o impacto político e econômico foi enorme no país. Agora, estão mais conscientes de si, na condição de cidadãos globais”, acredita Kang. Em outras palavras, “depois de organizarem uma Copa do Mundo, estão confiantes na própria capacidade e na do país, para crescer como uma nação cosmopolita”. Assim como os brasileiros, diz Kang, os sul-africanos se preocupavam muito com a capacidade de preparar tudo a tempo. “Era uma pressão enorme, mas deu tudo certo, apesar de algumas imperfeições aqui e ali.” O erro estava em tentar imitar o nível de exigência europeu. “Do ponto de vista da África, foram muito além de qualquer expectativa.”
Mas nem tudo é motivo de comemoração. “Os sul-africanos enfrentam consequências devastadoras daquele entusiasmo exagerado. Construíram uma quantidade extraordinária de quartos de hotel, mas, depois que a festa acabou, quem vai ocupá-los?” Kang assinala que, mesmo durante a Copa do Mundo, muito poucos eram os turistas que tinham tempo ou disposição para, de fato, visitar o país. “Mas o efeito de longo prazo sobre a cultura, a identidade dos clubes e dos torcedores é enorme. As pessoas deveriam olhar para isso com mais atenção, porque vai muito além de uma mudança na imagem do país.”
O sociólogo insere os grandes eventos, incluindo não só as Copas, mas também as Olimpíadas e as exposições universais, na lógica de uma globalização que é ao mesmo tempo econômica e cultural. “Assistida e experimentada por mais de um terço da população global, a Copa do Mundo se tornou uma forma particularmente notável da esfera pública mediada, em nível local, nacional e global. Agora ela possui um status seminal como ritual de massas e festival urbano.”
Kang argumenta que, por um lado, a Copa do Mundo reproduz um sistema de obras bilionárias, leis influenciadas por corporações multinacionais, como a própria Fifa, e profissionalização extrema do espetáculo esportivo. Por outro, os torcedores também sofrem um processo de mutação, em particular um fenômeno que, em inglês, recebeu o nome de “gentrification”.
Originalmente, o termo designava a expulsão da população de baixa renda de bairros que passavam a ser ocupados por famílias abastadas. No plano do futebol, a “gentrification” ocorre quando a identidade de um clube, ligada a sua cidade ou seu bairro, aos torcedores que comparecem ao estádio e incorporam a relação com o time a suas próprias identidades, é deixada de lado em nome da competição no “mercado da bola”. “No mundo todo, os clubes estão virando máquinas de fazer lucro. O mundo do futebol foi dramaticamente ‘gentrificado’ pelo mercado global, o capital transnacional e os imperativos de mídia.”
Em sua visita ao Brasil, Kang relata que vivenciou um ponto de transformação em que esse processo pode estar começando. Convidado por um amigo torcedor do Corinthians, ele compareceu a uma partida no estádio do Pacaembu, em São Paulo. Ficou impressionado ao ver todos os torcedores de pé, pulando e cantando. As baterias das torcidas organizadas, que puxavam a cantoria, também chamaram sua atenção.
“No estádio que estão construindo para o Corinthians, as pessoas vão poder fazer isso? Os lugares não vão ser todos assentos confortáveis e numerados? Os ingressos não vão ser muito mais caros?” Kang é torcedor do Liverpool, equipe britânica da cidade dos Beatles. Assim como ocorre com o paulistano Corinthians, a torcida do inglês Liverpool surgiu das classes populares: estivadores e operários. O sociólogo mostra um trecho de jornal televisivo de 1964, quando seu time disputava uma partida decisiva contra o londrino Arsenal em seu estádio.
Durante a partida, o locutor da BBC fica pasmo ao ver como a torcida se põe espontaneamente a cantar “She Loves You”, sucesso daquele ano dos Beatles. Essa manifestação popular é perdida, segundo Kang, quando os clubes se incorporam aos mercados globalizados.
“Hoje, o Liverpool pertence ao grupo Fenway, mesmo dono do Boston Red Sox. O Manchester United assinou há alguns anos um acordo de marketing com os Yankees, time de beisebol de Nova York. “É como se um grande clássico do beisebol americano estivesse sendo jogado no futebol britânico”., comenta o pesquisador coreano, rindo.
Fonte: Valor
9/2/2012
Arte secular
Um dos grandes desafios dos produtores de vinho dos países do Novo Mundo – Américas e Oceania – é diversificar e implantar com sucesso novas variedades de uva. Não é por acaso que existe grande concentração ao redor, principalmente, da Cabernet Sauvignon, Merlot, Syrah, Sauvignon Blanc e Chardonnay, castas que têm mais facilidade de se adaptar a distintas condições de solo e clima, com maior ou menor êxito. A questão é a tendência à padronização dos vinhos, que torna difícil distinguir sua origem e faz com que, dentro do mesmo segmento, a concorrência seja cada vez mais acirrada.
Com outras uvas, mais caprichosas e sensíveis, os resultados estão longe, bem longe, de se aproximar do nível de excelência que alcançam em suas regiões de origem, caso da Pinot Noir, da Borgonha, Nebbiolo, do Piemonte, e Riesling, na Alemanha, só para ficar com os exemplos mais claros de tentativas constantes e, no geral, malsucedidas. Daí faz sentido lembrar o comentário irônico da Baronesa Philippine de Rothschild, que assumiu em 1988 o controle de celebradas propriedades – entre elas o Château Mouton Rothschild –, após a morte do pai, o reverenciado Barão Philippe: “Fazer vinho é relativamente simples, só os primeiros 200 anos são difíceis”.
Desse mal não padece a Europa, que tem um sem-número de regiões vinícolas nas quais o tempo – séculos – se encarregou de selecionar castas que se aclimataram às condições naturais específicas de cada uma, criando um par indissociável. Embora em muitas dessas zonas o cultivo de parreiras tenha raízes milenares, foi, em especial, nos séculos XI e XII que se deu o verdadeiro desenvolvimento vitivinícola europeu. As hoje tão prestigiadas Borgonha, na França, e Rheingau, na Alemanha, tiveram origem naquela época, ambas por obra de monges cistercienses que vislumbraram o potencial nelas existentes.
Se na Borgonha as propriedades se fragmentaram, fazendo com que as vinícolas atuais sejam formadas por uma soma de pequenas parcelas espalhadas nas vizinhanças, no Rheingau elas em geral se mantiveram na área delimitada desde cedo. E uma, em particular, se destaca: a Schloss Vollrads, que em 18 de novembro de 2011 completou 800 anos não só de elaboração, mas também de venda formal de vinho. Nenhuma outra vinícola europeia tem uma história tão longa na comercialização da bebida.
O documento histórico que atesta a venda está bem preservado nos arquivos da Schloss Vollrads. Ele mostra as duas partes envolvidas – a família nobre conhecida como Greiffenclau e o Mosteiro de São Victor –, o tipo e quantidade de vinho e os nomes das testemunhas. O selo com seus fios de seda dado pelo arcebispo legaliza a transação. É curioso que, a despeito de conter todos os números de referência necessários, faltam detalhes dos preços, o que indica que possivelmente eles eram diferentes a cada ano e permite supor que já naquela época havia dependência entre qualidade e valores envolvidos.
A propriedade está localizada na comuna de Oestrich-Winkel, a cerca de 60 quilômetros de Frankfurt e pouco distante de Wiesbaden, onde o Reno caprichosamente interrompe seu curso em direção ao norte, seguindo por 30 quilômetros a oeste até retomar seu fluxo normal no sentido setentrional, até desaguar em Roterdã, na Holanda. Essa extravagância da natureza permite que as encostas situadas à margem direita do rio sejam expostas ao sul, recebendo mais insolação. Trata-se de algo fundamental para que as uvas amadureçam melhor numa zona fria como é o Rheingau, e constitui uma das razões pelas quais a região é considerada, junto com a do Mosel, berço dos melhores Rieslings da Alemanha.
“Schloss” significa castelo, ou château, em francês. “Vollrads” é um nome dado (“given name”) em alusão a um determinado Vollradus in Winkela, o chamado Cavaleiro Vollradus, conforme documento de 1218. A junção dos nomes foi obra dos barões da dinastia Greiffenclau, cuja árvore genealógica remonta ao ano de 1097. Representante da 27ª geração da família, Erwein Graf Matuschka Greiffenclau assumiu a direção da vinícola em 1976, já em meio a uma situação financeira difícil. A despeito de todo o dinamismo e alto astral – estive com ele duas vezes, uma delas aqui no Brasil, por volta de 1990 –, atributos que utilizou para promover seus vinhos e a região como um todo (era também diretor da Verband Deutscher Prädikats und Qualitätsweingüter, a VDP, associação que reúne os melhores produtores alemães), Matuschka não conseguiu colocar a casa em ordem. E, segundo consta, teria contraído dívidas que chegavam a US$ 13 milhões.
Em agosto de 1997, um dia após o maior credor iniciar os procedimentos pedindo sua falência, Matuschka se suicidou no meio do vinhedo que circundava o château. A partir de então, tendo comprado as partes da dívida pertencentes a terceiros, o banco regional Nassauische Sparkasse assumiu o controle da empresa.
Investimentos e uma administração profissional não tardaram a dar bons resultados. Um pouco de sorte – ou ajuda divina? – também: a safra de 1999 foi muito boa, permitindo, pela primeira vez na história da vinícola, produzir a gama completa de vinhos das categorias superiores existentes na Alemanha, desde o primeiro nível, o Qualitätswein (QbA), até os seis Qualitätswein mit Prädikat.
Não só pelo contato com a figura carismática de Matuschka e seu triste destino, mas como amante confesso dos grandes rieslings, tenho de certa forma acompanhado a evolução qualitativa do Schloss Vollrads na última década, e mais de perto a partir de 2006, ano em que fui convidado para participar do Japan Wine Challenge (JWC), concurso que se realiza anualmente em Tóquio. Na oportunidade, tive como companheiro de júri Rowald Hepp, diretor-geral da vinícola alemã desde 1999. A propósito, um vinho da Schloss Vollrads já havia vencido como melhor branco do Velho Mundo nesse concurso em 2005 e voltou a ganhar no ano seguinte, quando lá estivemos. De lá para cá, levou outros prêmios.
Além das qualidades de bom degustador, me chamou atenção o lado afável e nada pragmático de Hepp, características diversas das apregoadas (embora nunca se deva generalizar) aos alemães. Essa impressão ganhou consistência anos mais tarde, nos encontros na Prowein, feira internacional de vinhos que se realiza anualmente em Dusseldorf. Nem seria preciso, mas a confirmação da sensibilidade de Hepp veio no evento que ele e sua equipe organizaram para comemorar a histórica data de 800 anos de comercialização de vinhos da Schloss Vollrads. Cerca de 40 pessoas, entre profissionais do meio e distribuidores dos vinhos da casa, foram convidadas para este acontecimento único, ao mesmo tempo intenso sem ser cansativo, cativante, criativo e emotivo, como, honestamente, eu jamais havia visto. Teve de tudo: almoço nos jardins do castelo; degustação de vinhos atualmente no mercado e, em momentos inesperados, garrafas de vinhos antigos; visita às modernas instalações e à torre construída no século XIV que abriga os documentos e objetos recolhidos ao longo dos séculos de história da propriedade; e chá da tarde com doces e tortas típicos da região feitos na cozinha do local, entre outros mimos.
O “gran finale” foi o jantar. Servido em uma sala envidraçada da edificação principal construída no século XVII, o menu foi especialmente concebido por Alexander Ehrgott, que, depois de ser o chef executivo de Eckhard Witzigmann, primeiro restaurante alemão a alcançar três estrelas no guia Michelin, comanda há quatro anos a cozinha responsável pelos concorridos eventos que ocorrem no Schloss Vollrads. Ehrgott recriou seis pratos servidos em recepções que os proprietários da vinícola ofereceram a personalidades ou momentos importantes. A lista inclui os aperitivos do jantar preparado para a visita do Barão Albert Ernst von Oppenheim, em 1916; a receita com carne que encantou o Imperador de Kassel, em 1891; e o Gorgonzola Dolce – uma iguaria vinda da Itália na época – com figos confitados, especialmente para Sua Majestade o Rei Imperador Wilhelm II, em 1902. Todos harmonizados com vinhos da adega da propriedade.
Um toque a mais de sofisticação foi a brilhante performance da pianista Ute Koerner, que tem em seu currículo participações em inúmeras masterclasses no Mozarteum, em Salzburg. Interpretando com extrema delicadeza um repertório composto por peças de Debussy, Schumann e Chopin, ela conseguiu engrandecer aqueles momentos. Em determinado momento, Hepp, visivelmente emocionado, levantou-se em silêncio, foi até a pianista, sussurrou-lhe algumas palavras, beijou sua face e voltou para terminar seu prato. Depois explicou: havia sido, para ele, a melhor interpretação do Prelúdio em E Menor Op. 28 No 4, de Chopin, desde que viu Martha Argerich tocá-lo ao vivo 20 ou 30 anos atrás, algo que nunca esqueceu.
Quando escrevi agradecendo o convite e elogiando o evento, Hepp, entre outras coisas, respondeu: “…essa peça de música me tocou a alma – somente bons amigos, bons vinhos e boa música conseguem fazer chegar tão profundo assim. Eu estava quase chorando, pois a noite como um todo foi muito especial – você não imagina o que isso significou para mim. Talvez para você tenha sido um convite – para mim o fim de semana foi o trabalho da minha vida ou minha essência do Riesling”.
Este é o verdadeiro e maravilhoso mundo do vinho.
Fonte: Valor
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Guias podem ser uma ajuda útil se bem usados
Diante da infinidade de produtores que transitam pelo dinâmico mundo do vinho, a busca por uma orientação a respeito da competência e dos rótulos que cada um deles coloca no mercado periodicamente faz com haja grande expectativa no período que antecede o lançamento dos guias anuais especializados. Ainda que revistas e autores – como Robert Parker – divulguem suas avaliações ao longo de todo o ano, tenho particular interesse pelo que é publicado em cada país dada a abrangência do painel. A rigor, ninguém conhece e está tão atualizado com o que acontece no cenário vinícola local como quem vive lá, conhece e acompanha o trabalho de cada produtor e, pelo menos os mais conscienciosos, degusta seus vinhos na propriedade. A despeito de que algum favorecimento – amizade conta – possa eventualmente existir, provar os vinhos in loco e discutir com o responsável por eles é muito mais honesto e objetivo do que receber as garrafas em casa, sem saber se o conteúdo é o mesmo que está sendo comercializado.
Louvo e cito sempre a atitude de Noel Ramonet, prestigiado produtor de alguns dos melhores vinhos brancos da Borgonha, que prefere não ser citado nas publicações a ter que enviar seus vinhos pelo correio para que eles sejam avaliados, sabe-se lá em que condições. Noel comenta a situação com um argumento bem humorado e inapelável, dizendo que é o mesmo que o “Guia Michelin”, para pontuar um restaurante, exigir que eles coloquem a comida que preparam dentro de “quentinhas” e enviem para serem avaliados na Redação.
A propósito, a possibilidade – na verdade uma prática comum – de “turbinar” as garrafas que disputam medalhas nesses infindáveis concursos espalhados mundo afora faz com que eu, pessoalmente, não dê a mínima importância quando leio notícias sobre vinhos que ganharam prêmios internacionais (há algumas, poucas, exceções, como o Decanter Award, da revista inglesa, e competições internas de países, caso do Argentina Awards e do Wines of Chile Awards, que são bem organizadas e abrangem apenas a produção local), da mesma forma no que diz respeito ao reluzente selo junto ao rótulo chamando atenção para a honraria. A exemplo do futebol, camisa não ganha jogo: vale o que acontecer no campo, ou melhor, no copo.
O conceito guias de vinhos é um fenômeno relativamente recente. O boletim de Robert Parker, o “Wine Advocate” – não confundir com a revista americana “Wine Spectator”, que tem forte apelo comercial em suas avaliações -, por exemplo, nasceu em 1978; o italiano “Gambero Rosso”, em 1988; o “Peñin”, da Espanha, em 1990; e o “Descorchados”, do Chile, em 1999. Antes deles, a opção era se valer de algumas revistas especializadas, que nem tinham alcance internacional, caso da “Revue du Vin de France” que eu assinava desde meados da década de 70 e me serviu para desbravar, com a cara e a coragem, regiões vinícolas francesas na época. Abertas as primeiras portas, os passos seguintes eram determinados pelas dicas dos produtores visitados para conhecer outros do mesmo nível nas vizinhanças.
Esse mesmo caminho, que eu percorria apenas por pura paixão, foi trilhado, coincidentemente na mesma época, por Neil Rosenthal, que começou com uma lojinha de vinhos em Nova York e, descontente com a mesmice existente, saiu à luta para importar vinhos especiais, atividade que ele tem até hoje com grande sucesso. Esse périplo, suas aventuras, o relacionamento com pequenos e diferenciados produtores, e o árduo processo para convencer seus clientes a comprá-los, Rosenthal conta em detalhes no livro “Vinhos de Boutique”, lançado no Brasil pela Larousse. Apesar dos erros (muito) grosseiros de edição, vale a pena ler. Foi um bom entretenimento nessas minhas férias de janeiro.
Pouco importa o critério utilizado por cada guia para apresentar os rótulos eleitos – pontuação ou por simbologia -, desde que a publicação tenha ganhado credibilidade ao longo do tempo – e não a tenha perdido. Vale, a propósito, citar o imbróglio recente envolvendo indiretamente o influente Robert Parker devido a acusações – há e-mails testemunhando os fatos – dando conta que seu colaborador Jay Miller, responsável pelas avaliações de vinhos chilenos, argentinos e espanhóis, receberia dinheiro e benefícios de vinícolas em troca de boas notas e resenhas de regiões. Houve, anos antes, suposições semelhantes contra ele concernentes à Argentina – as altas pontuações dadas aos vinhos argentinos permitem concluir que Miller gostava “muito” de malbec. O caso foi de certa forma abafado com o pedido “voluntário” de Miller para se afastar de suas funções no “Wine Advocate”, não trazendo maiores consequências para a reputação do influente crítico americano. Em seu último boletim, se despedindo do amigo e ressaltando o bom trabalho realizado, Parker não mencionou as denúncias. Se não tivesse a força que tem – e sabe que tem -, é provável que sua atitude teria sido bem diferente. Jay Miller declarou que se sentia constrangido em se defender enquanto fazia parte da publicação, e se propôs a fazê-lo a partir de agora.
Apesar de eventuais escorregadas, guias são importante fonte de consulta na hora de escolher um bom vinho, seja entre os premiados, de preço evidentemente mais elevado, quanto os demais que compõem a linha desses produtores. Ainda que exceções existam, quem produz um grande vinho preocupa-se com a gama toda. Há ainda, sem dúvida, produtores que não ganham prêmios mas estão bem cotados. Arriscado é comprar uma garrafa que não tenha nenhuma referência. Os guias não são infalíveis, mas servir-se deles é melhor do que ficar na mão de um conselho interesseiro.
Privatização dos aeroportos
Justiça Federal mantém leilão para concessão de aeroportos nacionais
Publicação: 31/01/2012 21:05 Atualização:
31/1/2012
Brasil, professor de capitalismo?
Governo acredita que possa ajudar Cuba a transitar para uma economia mais aberta
Clóvis Rossi
Não se realizará a visita da presidente Dilma Rousseff a Cuba que está na cabeça de todas as entidades de direitos humanos. Gostariam que a presidente justificasse sua afirmação de que os direitos humanos estariam no centro de sua política externa e, portanto, fizesse pelo menos uma menção à situação na ilha caribenha.
Não fará. O chanceler Antonio Patriota, na sua passagem por Davos, na semana passada, afirmou que Dilma não falaria para os ouvidos dos jornalistas, no que é uma insinuação de que falará aos ouvidos dos dirigentes cubanos.
Duvido. Não combina com o estilo Dilma, ainda mais que Cuba faz parte do museu da memória sentimental da esquerda latino-americana, e Dilma cultiva essa memória, mesmo sendo uma democrata.
Até entendo a posição histórica do Itamaraty, neste como em governos anteriores, de respeitar sempre a soberania de cada país. Mas discordo: direitos humanos são (ou deveriam ser) patrimônio da humanidade e, portanto, devem ser defendidos acima de qualquer fronteira.
Passemos à segunda -e real- visita da presidente. Neste ponto, é preciso desbastar a linguagem diplomática do chanceler Patriota, para quem o objetivo prioritário da viagem é conversar “sobre a atualização do modelo econômico cubano, em busca de maior eficiência”.
Na verdade, o governo brasileiro acredita, desde a administração anterior, que está em condições de ensinar algo de capitalismo a Cuba, privada dele nos últimos 50 e poucos anos. Não é uma vã pretensão. Cuba está dando os primeiros -e tímidos- passos rumo a uma versão caribenha do modelo chinês. Ou seja, economia parcialmente de mercado com ditadura.
Essa transição para o capitalismo, parcial ou não, foi sempre acompanhada de alta da desigualdade, na Rússia pós-soviética, nos países da Europa Oriental e até na China, apesar do formidável crescimento.
O que o chanceler Patriota considera, com grande exagero, “modelo brasileiro” não precisou transitar para o capitalismo, que nunca abandonou, mas conseguiu, com sucesso, sair da ditadura para a democracia, estabilizar a economia e, ao menos, não aumentar a desigualdade, embora não a tenha reduzido (só reduziu a diferença entre salários, mas não entre a renda do capital e a do trabalho, a verdadeira obscenidade).
A mais relevante contribuição brasileira para a transição cubana não será, entretanto, uma eventual aula teórica, mas algo bem mais concreto: o financiamento para a modernização do porto de Mariel, a 40 quilômetros de Havana.
Marco Aurélio Garcia, o assessor diplomático tanto de Lula como de Dilma, acredita que ampliar Mariel só faz sentido se for para o comércio com os Estados Unidos. Hoje, não existe, pelo embargo imposto pelos norte-americanos à ilha.
Logo, ao financiar o porto, o governo brasileiro acredita estar contribuindo para uma aproximação com os EUA (não, como é óbvio, em um ano eleitoral como 2012). Essa hipótese só se tornará possível se Cuba abrir sua economia sem grande tumulto. Se o fizer, mas continuar uma ditadura, não é um problema insolúvel para Washington (vide as relações com a China).
31/1/2012
Cuba vai substituir 20% da cúpula do PC
Anúncio ocorre após decisão de impor limite de dez anos para os mandatos de ‘cargos fundamentais’ do regime
Renovação de Comitê Central ocorrerá nos próximos 4 anos; Dilma Rousseff chegou ontem à ilha para visita oficial
Por Flávia Marreiro
Folha de S. Paulo
Enviada especial a Havana
O Partido Comunista Cubano abriu as portas para a renovação nos próximos quatro anos de até 20% dos integrantes da cúpula ampliada do partido, o Comitê Central, segundo documento publicado ontem na imprensa oficial.
Foi uma decisão da Primeira Conferência Nacional da sigla. Em seu discurso, Raúl Castro anunciou a limitação dos mandatos para “cargos fundamentais” para o máximo de dez anos. A implementação será “paulatina”.
Não ficou claro se a regra de limitação do mandato se aplica também ao próprio Raúl. Aos 80 anos, ele teria 87 quando seus dez anos de poder acabarem, em 2018.
A decisão de renovar até um quinto do Comitê Central ocorre numa conjuntura na qual o colegiado, de 114 membros, tem vários integrantes com mais de 70 anos.
Em setembro, o comitê perdeu um de seus membros mais importantes: Julio Cesar Regueiro, 75, ministro da Defesa e muito próximo a Raúl, morreu de ataque cardíaco.
Num cenário em que o próprio Raúl diz que não há sucessores no horizonte, observadores políticos dentro e fora da ilha se voltam para uma figura: o coronel do Exército Alejandro Castro Espín, 47, único filho homem do ditador. Uma das apostas é que ele possa aparecer no renovado Comitê Central.
Para Esteban Morales, professor da Universidade de Havana e integrante do PC, a conferência do fim de semana deixou para o futuro temas importantes, mas tomou decisões positivas, como a limitação de mandatos. “É importante que seja estabelecido. Será aplicado com quem tem 40 anos hoje, não com os que já passaram de 70.”
Já sociólogo cubano Haroldo Dilla diz que o tema revela uma tensão crescente na elite política cubana. “Não há regras de circulação de elite política em Cuba e isso provoca tensão.”
Dilla chamou de “cínica” a instituição do mandato limitado porque a família Castro e os líderes “históricos”, que venceram em 1959, provavelmente não serão afetados.
VIÚVA
A Comissão de Direitos Humanos de Cuba, tolerada pelo regime, promoveu ontem em Havana uma entrevista coletiva com a Marizta Pelegrino, 28, viúva de Wilmar Villar, 31, dissidente político morto no dia 13 após 48 dias e greve de fome. Ela negou a versão do governo de que Villar fosse um preso comum e que a tenha agredido numa briga doméstica.
Nem Pelegrino nem os ativistas disseram esperar que a presidente Dilma Rousseff, que chegou ontem a Cuba, mencione publicamente o tema de direitos humanos.
21/10/2011
Partido defende que mídia seja regulamentada
DE SÃO PAULO
Na operação em defesa do ministro Orlando Silva (Esporte), o PC do B voltou a defender a regulamentação da imprensa.
Em nota, o partido disse que “calúnias” lançadas contra o ministro mostram a necessidade de uma “legislação para regular a mídia e democratizar os meios de comunicação”.
A sigla ainda classifica de “bandido procurado pela Justiça” o policial militar João Dias Ferreira, que acusou o ministro de integrar o esquema de desvios.
A “Veja” é chamada pelo partido de “revista ignóbil”, que faz parte da “mídia caluniadora”. Segundo o PC do B, Orlando sofre um “linchamento público”.
Após mudança de última hora, o programa semestral de TV da legenda, que foi ao ar ontem, também virou peça de defesa.
Em uma fala de um minuto e meio, Orlando afirma que não irá recuar. “Vou até as últimas consequências para defender a minha honra”, diz.
Segundo ele, muita gente está incomodada porque a pasta ganhou importância com a Copa e a Olimpíada. (DANIEL RONCAGLIA)
Fonte: Folha de S. Paulo/21-10-2011
11/10/2011
A crise estrutural do capital
Vivemos na era de uma crise histórica sem precedentes. Sua severidade pode ser medida pelo fato de que não estamos frente a uma crise cíclica do capitalismo mais ou menos extensa, como as vividas no passado, mas a uma crise estrutural, profunda, do próprio sistema do capital. Como tal, esta crise afeta — pela primeira vez em toda a história — o conjunto da humanidade, exigindo, para esta sobreviver, algumas mudanças fundamentais na maneira pela qual o metabolismo social é controlado.
Os elementos constitutivos do sistema do capital (como o capital monetário e mercantil, bem como a originária e esporádica produção de mercadorias) remontam a milhares de anos na história. Entretanto, durante a maioria desses milhares de anos, eles permaneceram como partes subordinadas de sistemas específicos de controle do metabolismo social que prevaleceram historicamente em seu tempo, incluindo os modos de produção e distribuição escravista e feudal. Somente nos últimos séculos, sob a forma do capitalismo burguês, pôde o capital garantir sua dominação como um “sistema social” global. Para citar Marx: “é preciso ter em mente que as novas forças de produção e relações de produção não se desenvolvem a partir do nada, não caem do céu, nem das entranhas da Idéia que se põe a si própria; e sim no interior e em antítese ao desenvolvimento existente da produção e das relações de propriedade tradicionais herdadas. Se no sistema burguês acabado cada relação econômica pressupõe outra sob a forma econômica-burguesa, e assim cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto, tal é o caso em todo sistema orgânico. Este próprio sistema orgânico, enquanto totalidade, tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento, até alcançar a totalidade plena, consiste, precisamente, na subordinação de todos os elementos da sociedade a si próprio, ou na criação, a partir dele, dos órgãos que ainda lhe fazem falta; desta maneira chega a ser historicamente uma totalidade.”[2]
Dessa forma, desvinculando seus antigos componentes orgânicos dos elos dos sistemas orgânicos precedentes e demolindo as barreiras que impediam o desenvolvimento de alguns novos componentes vitais,[3] o capital, como um sistema orgânico global, garante sua dominação, nos últimos três séculos, como produção generalizada de mercadorias. Através da redução e degradação dos seres humanos ao status de meros “custos de produção” como “força de trabalho necessária”, o capital pode tratar o trabalho vivo homogêneo como nada mais do que uma “mercadoria comercializável”, da mesma forma que qualquer outra, sujeitando-a às determinações desumanizadoras da compulsão econômica.
As formas precedentes de intercâmbio produtivo entre os seres humanos e com a natureza eram, em seu conjunto, orientadas pela produção para o uso, com um amplo grau de auto-suficiência como determinação sistemática. Isso lhes impôs uma grande vulnerabilidade frente aos flagrantemente diferentes princípios de reprodução do capital já operativos, mesmo que inicialmente em uma escala muito pequena, nas fronteiras dos antigos sistemas. Pois nenhum dos elementos constitutivos do sistema orgânico do capital que se manifestava dinamicamente necessitou alguma vez ou foi capaz de, confinar a si próprio às restrições estruturais da auto-suficiência. O capital, como um sistema de controle do metabolismo social pôde emergir e triunfar sobre seus antecedentes históricos abandonando todas as considerações às necessidades humanas como ligadas às limitações dos “valores de uso” não quantificáveis, sobrepondo a estes últimos — como o pré-requisito absoluto de sua legitimação para tornarem-se objetivos de produção aceitáveis — o imperativo fetichizado do “valor de troca” quantificável e sempre expansível. É desta maneira que surgiu a forma historicamente específica do sistema capitalista, sua versão capitalista burguesa. Ela teve de adotar o irresistível modo econômico de extração de sobretrabalho, como mais-valia estritamente quantificável — em contraste com a pré-capitalista e a pós-capitalista de tipo soviético, formas basicamente políticas de controlar a extração de sobretrabalho —, de longe, o modo mais dinâmico de realizar, a seu tempo, o imperativo da expansão do sistema vitorioso. Além do mais, graças à perversa circularidade do sistema orgânico totalmente completo do capital — no qual “cada relação econômica pressupõe outra sob a forma econômica-burguesa” e “cada elemento posto é ao mesmo tempo pressuposto” — o mundo do capital reivindica sua condição de eterna e indestrutível “gaiola de ferro”, da qual nenhuma escapatória pode ou deve ser contemplada.
Entretanto, a absoluta necessidade de atingir de maneira eficaz os requisitos da irreprimível expansão — o segredo do irresistível avanço do capital — trouxe consigo, também, uma intransponível limitação histórica. Não apenas para a específica forma sócio-histórica do capitalismo burguês, mas, como um todo, para a viabilidade do sistema do capitalem geral. Pois este sistema de controle do metabolismo social, teve que poder impor sobre a sociedade sua lógica expansionista cruel e fundamentalmente irracional, independentemente do caráter devastador de suas conseqüências; ou teve que adotar algumas restrições racionais, que, diretamente, contradiziam suas mais profundas determinações como um sistema expansionista incontrolável. O século XX presenciou muitas tentativas mal sucedidas que almejavam a superação das limitações sistêmicas do capital, do keynesianismo ao Estado intervencionista de tipo soviético, juntamente com os conflitos militares e políticos que eles provocaram. Tudo o que aquelas tentativas conseguiram foi somente a “hibridização” do sistema do capital, comparado a sua forma econômica clássica (com implicações extremamente problemáticas para o futuro), mas não soluções estruturais viáveis.
De fato, é extremamente significativo a este respeito — e apesar do triunfalismo que enalteceu, em anos recentes, as virtudes míticas de uma idealizada “sociedade de mercado” (sem mencionar a utilização propagandística apologética do conceito de um “mercado social” completamente fictício) e o “fim da história” sob a hegemonia, livre de ameaças, dos princípios do capitalismo liberal —, que o sistema do capital não pôde se completar como um sistema global em sua forma propriamente capitalista; isto é, fazendo prevalecer universalmente o irresistível modo econômico de extração e apropriação de sobretrabalho na forma de mais-valia. O capital, no século XX, foi forçado a responder às crises cada vez mais extensas (que trouxeram consigo duas guerras mundiais, antes impensáveis) aceitando a “hibridização” — sob a forma de uma sempre crescente intromissão do Estado no processo sócio-econômico de reprodução) como um modo de superar suas dificuldades, ignorando os perigos que a adoção deste remédio traz, a longo prazo, para a viabilidade do sistema. Caracteristicamente, tentativas de retroceder no tempo (até mesmo mais atrás do que a era de um Adam Smith grosseiramente mal representado) são proeminentes entre os defensores acríticos do sistema do capital. Desse modo, os representantes da “Direita Radical” continuam a fantasiar sobre “o recuo das fronteiras do Estado”, enquanto na realidade o oposto é claramente observável, devido à incapacidade do sistema para garantir a expansão do capital na escala requerida sem a administração, pelo Estado, de doses sempre maiores de “ajuda externa”, de uma maneira ou outra.
O capitalismo pode ter conseguido o controle na antiga União Soviética e no Leste europeu, mas é extremamente equivocado descrever o estado atual do mundo como dominado de maneira bem sucedida pelo capitalismo, apesar de estar, certamente, sob a dominação do capital. Na China, por exemplo, o capitalismo somente esta estabelecido, eficazmente, em “enclaves” costeiros, deixando a esmagadora maioria da população (isto é, bem mais de um bilhão de pessoas) fora de seus marcos. E mesmo nessas áreas limitadas da China, nas quais prevalecem os princípios capitalistas, a extração econômica do sobretrabalho precisa ser sustentada através de fortes componentes políticos, mantendo o custo do trabalho artificialmente baixo. A Índia — outro país com uma população imensa —, de maneira similar, encontra-se apenas parcialmente sob a administração bem sucedida do metabolismo sócio-econômico regulado de modo capitalista, deixando, até agora, a esmagadora maioria da população em uma situação bem diferente e difícil. [4] Mesmo na antiga União Soviética, seria bastante impreciso falar sobre a bem sucedida restauração completa do capitalismo, apesar da total dedicação dos organismos políticos dominantes a esta tarefa durante, pelo menos, os últimos doze anos. Alem do mais, a fracassada “modernização” do assim chamado “terceiro mundo”, em conformidade com as prescrições difundidas por décadas pelos países “capitalistas avançados”, destaca o fato de que um grande número de pessoas — não apenas na Ásia, como também na África e América Latina — ficou fora da terra, por muito tempo prometida, da prosperidade capitalista liberal. Dessa forma, o capital pode conseguir adaptar-se às pressões emanadas do fim de sua “ascendência histórica” somente retrocedendo atrás de sua própria fase progressiva de desenvolvimento e abandonando completamente o projeto capitalista liberal, apesar de toda mistificação ideológica auto-justificatória em contrário. É por isso que hoje se tornou mais óbvio do que nunca que o alvo da transformação socialista não pode ser somente o capitalismo, se quiser um sucesso duradouro; deve ser o próprio sistema do capital.
Esse sistema, em todas as suas formas capitalistas ou pós-capitalistas tem (e deve ter) sua expansão orientada e dirigida pela acumulação.[5] Naturalmente, o que está em questão a este respeito não é um processo delineado pela crescente satisfação das necessidades humanas. Mais exatamente, é a expansão do capital como um fim em si, servindo à preservação de um sistema que não poderia sobreviver sem constantemente afirmar seu poder como um modo de reprodução ampliado. O sistema do capital é essencialmente antagônico devido à estrutura hierárquica de subordinação do trabalho ao capital, o qual usurpa totalmente — e deve sempre usurpar — o poder de tomar decisões. Este antagonismo estrutural prevalece em todo lugar, do menor “microcosmo” constitutivo ao “macrocosmo” abarcando as relações e estruturas reprodutivas mais abrangentes. E, precisamente porque o antagonismo é estrutural, o sistema do capital é — e sempre deverá permanecer assim — irreformável e incontrolável. A falência histórica do reformismo social-democrata fornece um testemunho eloqüente da irreformabilidade do sistema; e a crise estrutural profunda, com seus perigos para a sobrevivência da humanidade, destaca de maneira aguda sua incontrolabilidade. Na verdade, é inconcebível introduzir as mudanças fundamentais requeridas para remediar a situação sem superar o antagonismo estrutural destrutivo, tanto no “microcosmo” reprodutivo, como no “macrocosmo” do sistema do capital enquanto um modo global de controle do metabolismo social. E isso só pode ser atingido colocando em seu lugar uma forma radicalmente diferente de reprodução do metabolismo social, orientada para o redimensionamento qualitativo e a crescente satisfação das necessidades humanas; um modo de intercâmbio humano controlado não por um conjunto de determinações materiais fetichizadas mas pelos próprios produtores associados.
O sistema do capital é caracterizado por uma tripla fratura entre 1) produção e seu controle; 2) produção e consumo; e 3) produção e circulação de produtos (interna e internacional). O resultado é um irremediável sistema “centrífugo”, no qual as partes conflituosas e internamente antagônicas pressionam em muitos sentidos diferentes. No passado, em teorias formuladas do ponto de vista do capital, os remédios para a dimensão coesiva perdida eram, em seu conjunto, desejos conceitualizados. Primeiramente por Adam Smith, como “a mão invisível” a qual, obrigatoriamente tornaria as intervenções políticas do Estado e seus políticos — explicitamente condenada por Smith como extremamente prejudicial — completamente supérflua. Posteriormente, Kant ofereceu uma variante do “Espírito Comercial” de Adam Smith, defendendo a realização da “política moral” e (um tanto ingenuamente) esperando da ação do “Espírito Comercial” não apenas benefícios econômicos universalmente difundidos como, também, um politicamente louvável reino de “paz perpétua” no quadro de uma harmoniosa “Liga das Nações”. Mais adiante, no ápice dessa linha de pensamento, Hegel introduziu a idéia da “astúcia da Razão”, atribuindo a ela o desempenho de uma função muito parecida à “mão invisível” de Adam Smith. Entretanto, em completo contraste com Adam Smith — e refletindo a situação muito mais dilacerada pelos conflitos de seu próprio tempo — Hegel atribuiu ao Estado nacional, diretamente, o papel totalizante/universalista da Razão nos assuntos humanos, desdenhando a crença de Kant em um reino vindouro de “paz perpétua”. Também insistiu em que “o Universal é encontrado no Estado, em suas leis, suas disposições universais e racionais. O Estado é a Idéia Divina tal qual existe sobre a Terra”,[6] já que, no mundo moderno, “o Estado, como imagem e atualidade da Razão, tornou-se objetivo”.[7] Então, até mesmo os grandes pensadores que conceitualizaram estes problemas do ponto de vista do capital, puderam oferecer, somente, algumas soluções idealizadas das contradições subjacentes — isto é, para a tripla fratura, em última análise irreparável, mencionada acima. Contudo, eles reconhecerem, pelo menos por inferência, a existência dessas contradições, ao contrário dos atuais apologistas do capital — como os representantes da “Direita Radical”, por exemplo — que nunca admitiram a existência de qualquer necessidade de cura substantiva em seu acalentado sistema.
Dadas as contradições centrífugas internas de suas partes constitutivas, o sistema do capital somente poderia encontrar uma dimensão coesiva muito problemática na forma de suas formações nacionais estatais. Estas corporificam a estrutura de poder do capital, o qual provou-se adequado ao seu papel através da ascendência histórica do sistema. Entretanto, o fato de que essa dimensão coesiva corretiva seja historicamente articulada na forma de estados nacionais, que estão longe de ser mutuamente benevolentes e harmoniosos, sem qualquer desejo de conformar-se ao imperativo kantiano de uma “paz perpétua” vindoura, significava que o Estado, em sua realidade, está, na verdade, “infectado pela contingência”[8] de várias maneiras. Primeiro, porque as forças de destruição à disposição da guerra moderna tornaram-se absolutamente proibitivas, destituindo, dessa maneira, os estados nacionais de suas armas definitivas para solucionar os antagonismos internacionais mais abrangentes sob a forma de outra guerra mundial. Segundo, porque o fim da ascendência histórica do capital colocou em primeiro plano o desperdício e destrutividade irracional do sistema no nível da produção,[9] intensificando, assim, a necessidade de garantir novos escoadouros para os produtos do capital através da dominação hegemônica/imperialista sob condições nas quais o modo tradicional de impô-la não pode mais ser considerado uma opção rapidamente disponível; não somente por razões estritamente militares mas, também, devido ao avassalador potencial nelas contido quanto a uma guerra comercial global. E terceiro, porque a contradição, até há pouco velada, entre o irrefreável impulso expansionista do capital (tendendo a uma integração global completa) e suas formações estatais historicamente articuladas — como estados nacionais concorrentes — afloram abertamente, destacando não apenas a destrutividade do sistema, como também sua incontrolabilidade. Não espanta, portanto, que o fim da ascendência histórica do capital no século XX traga consigo a crise profunda de todas as suas formações estatais conhecidas.
Atualmente, vemos ser oferecida a varinha mágica da globalizaçãocomo uma solução automática para todos os problemas e contradições enfrentados. Esta solução é apresentada como uma novidade completa, como se a questão da globalização aparecesse no horizonte histórico somente há uma ou duas décadas com sua promessa de bondade universal, ao lado da outrora igualmente saudada e reverenciada noção da “mão invisível”. Mas, na realidade, o sistema do capital moveu-se inexoravelmente em direção à “globalização” desde seu início. Devido à irrefreabilidade de suas partes constitutivas, ele não pode considerar-se completamente realizado a não ser como um sistema global totalmente abrangente. É por essa razão que o capital procurou demolir todos os obstáculos que permaneciam no caminho de sua plena expansão e porque ele deve continuar a fazê-lo enquanto o sistema perdurar.
É aqui que uma grande contradição torna-se claramente visível. Por que, enquanto o capital em sua articulação produtiva — atualmente através, principalmente, da ação de gigantescas corporações nacionais-transnacionais — tende a uma integração global (e, nesse sentido, verdadeira e substantivamente à globalização), a configuração vital do “capital social total” ou “capital global” é, hoje em dia, completamente desprovida de sua própria formação estatal. Isto é o que contradiz nitidamente a determinação intrínseca do próprio sistema como inexoravelmente global e desenfreado. Assim, o perdido “Estado do sistema do capital” como tal, demonstra a incapacidade do capital para atingir a lógica objetiva da irrefreabilidade do sistema em suas últimas conseqüências. É esta circunstância que deve colocar as expectativas otimistas de “globalização” sob a sombra de sua deplorável falência, sem remover, entretanto, o próprio problema — nomeadamente, a necessidade de uma verdadeira integração global dos intercâmbios reprodutivos da humanidade — para o qual somente uma solução socialista pode ser considerada. Pois, sem uma solução socialista, os necessariamente crescentes antagonismos fatais e confrontos hegemônicos pelos mercados exigidos entre principais poderes concorrentes — como, por exemplo, para tomar apenas um, dentro de duas ou três décadas a economia chinesa (mesmo a sua presente taxa de crescimento) deverá ultrapassar largamente a força econômica dos Estados Unidos, com um potencial militar para lhes fazer frente — pode resultar, apenas, em uma catastrófica ameaça à sobrevivência da humanidade.
A crise estrutural do capital é a séria manifestação do encontro do sistema com seus próprios limites intrínsecos. A adaptabilidade deste modo de controle do metabolismo social pode ir tão longe quanto a “ajuda externa” compatível com suas determinações sistemáticas permita fazê-lo. O próprio fato de que a necessidade desta “ajuda externa” aflore — e, apesar de toda a mitologia em contrário, continue a crescer durante todo o século XX — foi sempre um indicativo de que algo diferente da normalidade da extração e apropriação econômica do sobretrabalho pelo capital tinha que ser introduzido para conter as graves “disfunções” do sistema. E, durante a maior parte de nosso século, o capital pôde tolerar as doses do remédio ministradas e nos poucos “países capitalistas avançados” — mas somente neles — pôde até mesmo celebrar a fase mais obviamente bem sucedida de expansão do desenvolvimento durante o intervencionismo estatal keynesiano das décadas do pós-guerra.
A severidade da crise estruturaldo sistema do capital confronta os socialistas com um grande desafio estratégico, oferecendo, ao mesmo tempo, algumas novas possibilidades vitais para enfrentá-lo. O que precisa ser destacado aqui é que não importa quão abundantes ou variadas sejam as formas de “ajuda externa” no século XX — bem diferente das fases iniciais do desenvolvimento capitalista, quando a política absolutista de “ajuda externa” (como apontado por Marx com referência a Henry VIII e outros) foi instrumental, ao invés de vital, para estabelecer a normalidade do capital e seu funcionamento saudável como um sistema global — toda esta ajuda, ajuda, em seu tempo, provou ser insuficiente para o objetivo de garantir a permanente estabilidade e a inquestionável vitalidade do sistema. Exatamente ao contrário. Pois as intervenções estatais do século XX puderam somente intensificar a “hibridização” do capital como um sistema social reprodutivo, acumulando, desse modo, problemas para o futuro. Em nosso futuro, a crise estrutural do capital — afirmando-se a si própria como a insuficiência crôni- ca de “ajuda externa” no presente estágio de desenvolvimento — deverá tornar-se mais profunda. E, também, deverá reverberar através do planeta, até mesmo nos mais remotos cantos do mundo, afetando cada aspecto da vida, desde as dimensões reprodutivas diretamente materiais às mais mediadas dimensões intelectuais e culturais.
Certamente, uma mudança historicamente viável somente pode ser verdadeiramente epocal, colocando a tarefa de ir além do próprio capitalcomo um modo de controle do metabolismo social. Isso significa um movimento de magnitude muito maior do que a substituição do sistema feudal pela subordinação hierárquico-estrutural de qualquer força de controle externo; em oposição à simples mudança da forma histórica específica sob a qual a extração e apropriação de sobretrabalho foi perpetuada, como sempre aconteceu no passado.
As “personificações do capital” podem assumir formas muito diferentes, desde a variedade capitalista privada à atual teocracia, e dos ideólogos e políticos da “Direita Radical” a partidos e burocratas estatais pós-capitalistas. Eles, inclusive, podem se apresentar como travestis políticos, assumindo a roupagem do “Novo Trabalhismo” (como faz o atual governo da Inglaterra, por exemplo) para espalhar mais facilmente mistificação no interesse da continuação da dominação do capital. Tudo isso, entretanto, não pode resolver a crise estrutural do sistema e a necessidade de superá-lo através da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social metabólica do capital. É isto o que coloca na agenda histórica a tarefa da radical rearticulação do movimento socialista como um movimento de massas intransigente. Colocar um fim à separação do “braço industrial” do trabalho (os sindicatos) de seu “braço político” (os partidos tradicionais), que leva à impotência, e empreender uma ação direta politicamente consciente, em oposição à aceitação submissa das condições sempre piores, impostas aos produtores pelas regras pseudo-democráticas do jogo parlamentar, são os objetivos e movimentos transitórios que orientarão, necessariamente, um movimento socialista revitalizado no futuro previsível. A continua submissão ao curso globalmente destrutivo de desenvolvimento do capitalismo globalizado, verdadeiramente, não é uma opção.
Notas
[1]Este artigo corresponde à introdução escrita por Mészáros para a edição em farsi, publicada por exilados iranianos, de seu livro Beyond Capital (Além do capital, São Paulo, Boitempo, no prelo). O texto foi publicado, em inglês sob o título “The uncontrollability of globalizing capital” (Monthly Review, fev. 1998). Tradução Alvaro Bianchi, revisão técnica Waldo Mermelstein.
[2] Karl Marx, Grundrisse, Harmondsworth, Penguin, 1973, p. 278.
[3] Principalmente pela superação da proibição da compra e venda de terra e trabalho, garantindo, dessa forma, o triunfo da alienação em todos os domínios.
[4] Muitos sobrevivem (se o fazem), exatamente “fechando a boca” na “economia tradicional” e
o número daqueles que permanecem completamente marginalizados, mesmo se desejando ainda — na maioria das vezes em vão — um emprego de qualquer tipo no sistema capitalista, está quase além do entendimento. Portanto, “enquanto o número total de pessoas desempregadas registradas pelas agências de emprego atingiu 336 milhões, em 1993, o número de pessoas empregadas, no mesmo ano, de acordo com a Comissão de Planejamento, atingiu somente 307,6 milhões, o que significa que o número de desempregados registrados é maior do que o número de pessoas empregadas. E a taxa de incremento percentual do emprego é praticamente desprezível”. Sem Sukomal, Working class of india: History of the emergence and movement 1830-1990, with na overwiew up to 1995, Calcuta, K.P. Bagchi & Co, 1997, p. 554.
[5] A crise crônica de acumulação, enquanto um problema estrutural grave, foi iluminada, em várias ocasiões, por Paul Swezzy e Harry Magdoff.
[6] Georg Hegel, The Philosophy of History, New York, Dover, 1956, p. 39.
[7] Idem, p. 223.
[8] Idem, p. 214.
[9] Schumpeter costumava louvar o capitalismo — de maneira um tanto autocomplacente — como uma ordem reprodutiva de “destruição produtiva”; hoje seria muito mais correto caracterizálo como um sempre crescente sistema de “produção destrutiva”.
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Roswitha Scholz
O valor é o homem
Tese sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos
RESUMO
Este artigo discute o problema da correlação entre capitalismo e patriarcado, que, segundo a autora, ainda permanece sem solução, após vinte anos de pesquisa feminista. A autora rejeita a tentativa que fazem alguns grupos feministas de – ao tentar introduzir a problemática dos sexos como relação social constitutiva na crítica marxista ao patriarcado – conferir ao trabalho doméstico o mesmo estatuto do trabalho assalariado, o que levaria a uma reificação ainda maior das relações sociais no plano teórico. E propõe a tese de que a contradição básica da socialização através da forma-valor é determinada com especificação sexual. Tratar-se-ia, portanto, de compreender o trabalho abstrato e o valor como princípio masculino, caso contrário se recairia numa hierarquia conceitual, em que a distribuição dos papéis sexuais é remetida a uma correlação secundária.
Palavras-chave: patriarcado; capitalismo; feminismo; marxismo; valor; socialização; relação entre os sexos.
1.
Após vinte anos de pesquisa feminista, a correlação entre capitalismo e patriarcado ainda é um problema irresoluto. As feministas que insistem nessa questão, e que seguem Marx e a Teoria Crítica, recorrem a um marxismo emprestado aos movimentos trabalhistas, cuja principal crítica à sociedade burguesa é a apropriação da mais-valia pelo capital. A ressalva que outras feministas mais à esquerda fazem a semelhante compreensão marxista é simplesmente que a questão do patriarcado permanece fora de consideração, ou seja, que apenas e tão-somente o antagonismo entre o trabalho assalariado e capital possui validade como referência central. A seu ver faltaria conceder o devido lugar à problemática dos sexos como relação social constitutiva. Assim, a crítica ao patriarcado ficaria envolta numa concepção marxista antiquada e em grande medida a-histórica, na qual a problemática dos sexos, em última instância, reaparece forçosamente como corpo estranho, por ser apenas superficialmente introduzida.
Nesta linha, muitas vezes se tenta elevar o trabalho doméstico, não considerado nas análises do capital, à mesma categoria do trabalho assalariado (isto é, do trabalho abstrato) e/ou determinar o “valor” do trabalho doméstico (cf. Haug 1990, pp. 92 s. e Beer, 1989, pp. 190 ss.) . Semelhante ampliação do conceito de “trabalho produtivo” corre a meu ver o perigo – contra sua intenção – de abrir caminho a uma reificação ainda maior das relações sociais no plano teórico, uma vez que a “produção da vida”, assim chamada erroneamente, passa também ela a ser apreendida com categorias que se orientam pela produção de mercadorias.
Uma saída para tal dilema poderia a meu ver ser oferecida por uma compreensão crítica da teoria de Marx que justamente não superestimasse o “valor”, ou seja, a forma de representação do trabalho abstrato, diferentemente do marxismo cunhado pelos movimentos trabalhistas, o qual define o “trabalho” como característica do gênero humano (com o que concordam as feministas supracitadas). Pelo contrário, tratar-se-ia de uma crítica do “trabalho”, que na qualidade de “consumo econômico-empresarial abstrato da força de trabalho e matérias-primas” se torna cada vez mais obsoleto e tem de ser posto em questão (R. Kurz). Salvo engano, é precisamente a ascensão do principio masculino (1) do “trabalho abstrato como um tautológico fim em si mesmo” (R. Kurz) que traz como resultado o confinamento doméstico e a repressão da mulher na história ocidental, produzindo, ao fim e ao cabo, a perda da dimensão sensível das relações humanas, a destruição da natureza e a ameaça de guerra nuclear.
Nesse sentido, o movimento feminista não precisa – para dar prova de seu valor (moral e econômico) – tentar a redefinição da atividade feminina em termos de trabalho, já que o “trabalho” é de certo modo a “raiz de todo o mal”. Isso não significa, por sua vez, que a actividade feminina e as atribuições patriarcais a ela vinculadas, da forma como se manifestam hoje, sejam de algum modo “melhores” e permitam deduzir modelos para o futuro, como acreditam muitas feministas. De fato, a “esfera feminina” e as qualidades imputadas às mulheres representam somente o outro lado da moeda do “trabalho abstrato no patriarcado ligado à forma-valor. Eis por que é tão errado referir-se positivamente à esfera feminina quanto ao “trabalho” em geral (2).
2
Ao lançarmos mão da “crítica fundamental do valor”, nos moldes em que foi efetuada pelo grupo da revista KRISIS (3) , surge o problema de que, a exemplo do marxismo acima criticado dos movimentos trabalhistas, sua posição é a princípio sexualmente neutra. Em suas obras, até agora, aquela crítica abstrai sua conotação sexual específica e não vê que o “trabalho” abstrato, alvo de suas objecções, constitui um principio masculino fundamental que anda de mãos dadas com relações sexuais assimétricas, ou melhor, com a dominação masculina. A “crítica do valor” comporta-se de modo masculinamente universal, como é típico do pensamento masculino do Ocidente, e sugere ser igualmente válida para todos e para todas.
No conceito do indivíduo abstrato e “puntiforme”, livre de conteúdos sexuais, os textos do grupo KRISIS (até aqui) ofuscam o carácter sexual específico da lógica do valor (4) Minha crítica vincula-se também ao fato de que o conceito de patriarcado (e, com ele, o carácter de dominação da relação entre os sexos na forma-valor) é em parte evitado ou mesmo conscientemente negado através do recurso ao carácter fetichista da sociedade mercantil. Depois de intervenções críticas, o conceito de valor assexuado e a rejeição sumária do conceito de patriarcado foram parcialmente reformulados ou retirados, mas ainda está por vir uma verdadeira explicação conceitual (5) . O problema pode ser aguçado pela seguinte alternativa: ou bem o trabalho abstrato e o valor são compreendidos já em seu nexo constitutivo (e portanto em seu próprio núcleo) como princípio masculino, ou bem se volta a uma hierarquia conceitual, em que a distribuição dos papéis sexuais é remetida, como simples “problema derivado” ou de “concretização”, a uma correlação secundária.
Nesse contexto, para evitar mal-entendidos que possam surgir do conceito de patriarcado, esclarecemos que, ao falar de dominação masculina, não queremos dizer obviamente que o homem se poste ao lado da mulher constantemente de chicote em punho, para fazer valer a sua vontade. No sentido aventado aqui, o domínio baseia-se essencialmente na institucionalização e na internalização de normas sancionadas pela coletividade. Estudos feministas revelam que, historicamente, as mulheres não raro se ergueram em defesa de seu papel tradicional, oferecendo resistência e exigindo seus direitos a partir dele (cf. Heintz e Honegger, 1981). Domínio masculino também não significa que as mulheres se encontrem absolutamente despojadas de seu poder de influência. Este, contudo, restringe-se em boa parte à esfera que lhes é atribuída.
Esse conceito diferenciado de dominação tampouco contradiz o carácter fetichista do valor. Nos debates do grupo KRISIS, ao menos até recentemente, o conceito de fetiche foi frontalmente contraposto ao conceito de dominação e, portanto, ao de patriarcado. Para tanto foi preciso supor um conceito de dominação simplificado e reduzido ao sujeito (6) . Do meu ponto de vista, pelo contrário, a dominação é sem sujeito por sua própria essência, ou seja, os depositários do domínio não são sujeitos autoconscientes, mas agem no interior de uma moldura de sociabilidade dotada de constituição historicamente inconsciente. O valor sem sujeito remete ao homem sem sujeito, que na qualidade de dominador, de iniciador e realizador, colocou em movimento instituições culturais e políticas capazes de cunhar a história, que começaram a ter vida autónoma, inclusive com relação a ele (7) .
3
Ao caracterizar o patriarcado, suponho que as diferenças sociais entre os sexos são produto da cultura, e portanto não de correm de dados biológicos (por exemplo, a capacidade de dar à luz) (8) . A existência do patriarcado não deve ser ontologizada, como mostram os estudos de cultura comparada:
Se os exemplos etnológicos de relações equivalentes entre os sexos representam no cômputo geral uma clara minoria, ainda assim eles são numerosos o bastante para impedir que sejam descartados por completo como meras exceções que confirmam a regra universalmente válida da subordinação feminina (Arbeitsgruppe Ethnologie Wien, 1989, pp. 15 s.).
Mesmo onde surgem elementos patriarcais, eles não possuem sempre o mesmo significado. Um patriarcado no sentido de uma determinação patriarcal das relações sociais por meio do trabalho abstrato e do valor é típico apenas da sociedade ocidental. Por isso esta deve ser analisada em separado.
O núcleo de minha tese é o seguinte: a contradição básica da socialização através da forma-valor, de matéria (conteúdo, natureza) e forma (valor abstrato) é determinada com especificação sexual. Todo conteúdo sensível que não é absorvido na forma abstrata do valor, a despeito de permanecer como pressuposto da reprodução social, é delegado à mulher (dimensão sensível, emotividade, etc.). Há muito essa conexão é tematizada na literatura feminista como o mecanismo da cisão (9) , embora até onde sei nunca tenha sido referida à constituição negativa da socialização pelo valor, no sentido de uma crítica do valor e do trabalho. Somente por meio dessa relação, porém, será possível explicar, para além do simples plano fenomênico, a problemática conceitual da cisão (10) .
No entanto, a cisão sexualmente especificada não pode ser inferida diretamente da própria forma valor. Ao invés disso, ela é numa certa medida a sombra lançada pelo valor, mas que não pode ser apreendida por intermédio do instrumental “positivo” dos conceitos formulados por Marx. As cisões de que resultam a esfera feminina, o contexto de vida feminino e o âmbito de atividades imputado às mulheres (administração do lar, educação dos filhos, “convívio social”, etc.) são portanto elementos integrantes, por um lado, da socialização pelo valor, mas por outro, lhe são também exteriores. Como no entanto a cisão necessariamente faz parte do valor e com ele é posta, seria preciso criar um novo entendimento da socialização, capaz justamente de levar em conta o mecanismo patriarcal da cisão ¾ não no sentido de um acréscimo externo, mas no de uma alteração qualitativa da própria teoria do valor, que seria assim também uma crítica do patriarcado.
A constituição do valor, sexualmente específica, produz em última instância a repartição conhecida dos papéis entre os sexos; o “feminino” assim adjudicado torna-se a condição de possibilidade do princípio masculino do “trabalho” abstrato. A assimetria dessa relação, na qual o elemento sensível é marcado como feminino e por isso mesmo posto de lado e avaliado como inferior, justifica a fórmula algo sensacionalista com que caracterizamos o patriarcado sem sujeito: “o valor é o homem”. Entretanto – e isso deve ser expressamente salientado – meu interesse é a investigação de uma estrutura cultural. Não são tanto homens e mulheres empíricos que tenho em mira, embora é claro que as relações empíricas entre homens e mulheres sejam definidas por essa estrutura, sem contudo serem nela totalmente absorvidas.
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Essa estrutura básica da relação de valor tem correspondência com a formação de uma esfera privada e outra pública. A esfera privada, consequentemente, é ocupada pelo tipo ideal “feminino” (família, sexualidade, etc.), ao passo que a esfera pública (“trabalho” abstrato, Estado, política, ciência, arte, etc.) é “masculina”. De forma ideal, a mulher seria assim o “recosto” social para o homem, que age na esfera pública. Dessa relação (nossa velha conhecida no plano da aparência) entre esfera pública e privada pode-se deduzir uma diferenciação histórica do patriarcado, uma vez que tal relação deixou de ser parte evidente de todas as sociedades surgidas até hoje.
Em sociedades agrárias, mesmo que patriarcais, o divórcio entre esfera pública e privada ainda não se acha configurado, ou apenas em pequeno grau; as mulheres, assim, guardam ainda uma parcela relativamente grande de poder de influência, na medida em que a esfera jurídico-formal e público-masculina não se tornou independente nem foi alçada à posição dominante, o que dá mais campo às estratégias informais:
Sob os preceitos da economia familiar camponesa, as mulheres têm mais poder e influxo do que a aparência pública de dominação masculina deixaria entrever (…). O poder feminino em condições agrárias baseia-se (…) na produção e no controle direto de recursos vitais, assim como na condução indireta de decisões socialmente relevantes (Heinzt e Honegger, 1981, p. 15; cf. também, de forma análoga, Nadig, 1988).
O patriarcado, nesse sentido, ainda não desfruta da mesma importância nem pode pleitear o papel universalmente determinante que ocupa nas sociedades ocidentais pautadas pelo valor. Mas com isso não queremos edulcorar ou mesmo enaltecer as relações por vezes brutais no interior dessas sociedades não-europeias (ou também de velhas sociedades da Europa, anteriores ao jugo do valor); trata-se, antes, de estabelecer o significado da separação entre as esferas pública e privada para a estrutura do patriarcado ligado à forma-valor.
Simplificando ao extremo, poder-se-ia dizer: aquela divisão das esferas e o patriarcado guardam uma relação de reciprocidade. Quanto menos desenvolvida é a esfera pública, mais difuso e menos nítido é o influxo do patriarcado na sociedade como um todo. E vice-versa: quanto mais desenvolvida é a relação de valor, quanto mais claro é o divórcio entre esfera pública e privada, mais inequívoca é a estrutura patriarcal. Surge assim a possibilidade de um desenvolvimento contraditório, conforme se fale da sociedade como um todo ou somente da esfera público-jurídica tomada em si mesma: se é certo que o patriarcado ligado ao valor só se perfaz com a separação entre esfera pública e privada, ao passo que decresce o antigo poder informal de influência da mulher, não deixa de ser verdade, por sua vez, que a posição da mulher dentro da esfera pública (ou mesmo seu acesso a tal esfera) pode acusar simultaneamente uma melhora parcial.
A relação patriarcal de valor e dos sexos tem assim uma história de efectivação longa e contraditória. No que segue, trataremos de dar um breve apanhado histórico sob o aspecto da continuidade e das rupturas. Meu interesse está voltado para uma abordagem histórico-sistemática, ou seja, não procederei à enumeração de fatos, mas antes a rápidos flashes do percurso em direcção da clausura doméstica da mulher e da exclusão do “feminino”, desde a Antiguidade até os dias de hoje.
5
Os pressupostos do patriarcado ocidental e cristão ligado à forma-valor têm origem na Grécia antiga. É absurdo acreditar que somente os fundamentos da matemática e das ciências naturais tenham sido lançados na Grécia. Tais bases só puderam firmar-se sobre o solo de uma racionalidade específica, de cunho masculino e mercantil. A própria situação geográfica da Grécia, sua dispersão em ilhas e o predomínio do tráfego marítimo, devido à falta de alimentos, favoreceram extraordinariamente a “intensificação da troca de mercadorias” (Sohn-Rethel, 1978, pp. 111), o que por sua vez ensejou a forma monetária. Nesse espaço geográfico surgiu a primeira cunhagem de moedas (Lídia), sendo adotada pelos gregos: segundo Sohn-Rethel, como sabemos, este foi um pressuposto histórico para o pensamento racional e abstrato, desvinculado do mito. Nesse meio social, a antiga nobreza agrária foi privada de seu poder, sobretudo nas cidades jônicas; a fim de permitir os contratos no comércio multilateral de mercadorias, foi necessário criar um organismo jurídico e uma jurisdição pública.
Tais instituições constituíram uma nova forma e um novo significado da esfera pública. O discurso perante o tribunal e a assembleia popular ganhou relevância; era imprescindível saber argumentar de modo abstrato e racional, a fim de grangear poder e prestígio. Essa esfera pública que conduziu à criação da dialética, da lógica formal etc., era todavia reservada exclusivamente aos cidadãos masculinos. As mulheres atenienses viviam exiladas em casa, de onde deveriam sair o menos possível. A principal tarefa da mulher era conceber um filho; caso isso não ocorresse, sua vida teria sido em vão. A hipóstase da nova esfera pública, que exigia a conduta abstrata e racional, andava de mãos dadas com a degradação da sexualidade em geral (cf. Reinsberg, 1989). A ascensão do pensamento racional associou-se já desde o berço à exclusão das mulheres.
A esfera pública, de quem também fazia parte a formação cultural, necessitava (na figura da esfera privada) de um domínio que lhe fosse contraposto, para o qual pudesse olhar do alto de sua posição. O homem precisava da mulher como “antípoda”, no qual ele projetava tudo o que não era admitido no âmbito público e nas esferas adjacentes. Assim, já na antiga Atenas, a mulher era tida e havida na conta de lasciva, eticamente inferior, irracional, intelectualmente pouco dotada etc. (cf. Reinsberg, 1989, pp. 42 s. e Pommeroy, 1985, pp. 362) – atributos esses que permaneceram em vigor até à modernidade. Tal cisão é comprovada até mesmo nas mais abstratas concepções teóricas da antiga filosofia. Para Platão, por exemplo, a matéria é algo amorfo e dificilmente apreensível pelo pensamento, sendo definida (com gênero feminino) como a “hospedeira e ama das ideias”. Também para Aristóteles o amorfo como byle (traduzido em latim por Cícero como materia, de onde vem a designação corrente entre nós) é um conceito feminino (cf. Pauli, 1990, p. 197).
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Com a derrocada da sociedade antiga, o intercâmbio mercantil e monetário sofreu drástico retrocesso; paralelamente desmoronou a esfera pública separada e diferenciada, predominante na sociedade greco-romana. As tribos germânicas ainda não estavam estruturadas segundo o molde do valor. A despeito de fortes elementos patriarcais, a mulher desfrutava entre os povos germanos de uma espécie de significação mística. Tácito relata que as mulheres germanas gozavam de alta reputação como feiticeiras, videntes e curandeiras. O patriarcado preso ao valor teria assim de começar do zero para reconstruir seu poder sob condições adversas.
Na sociedade medieval, subsistiram por longo período resquícios “semimatriarcais” dos germanos no seio do patriarcado. Por um lado, a mulher era juridicamente subordinada ao marido, precisava de um representante legal (pai ou cônjuge) e podia em princípio ser até negociada como cabeça de gado, escravo ou um objeto qualquer. Seria entretanto ilusório deduzir que algo semelhante estivesse na ordem do dia na vida cotidiana. O direito e a esfera pública desempenhavam papéis inteiramente diversos e sensivelmente menores do que em sociedades dotadas de uma forma-valor mais desenvolvida. Na Alta Idade Média, era até mesmo permitido às mulheres dedicarem-se ao comércio e ocuparem-se de um ofício, embora não com a mesma assiduidade dos homens. Ainda que o casamento fosse no fundamental uma relação de poder, a mulher desfrutava possivelmente de certa autoridade na família ¾ ela tinha a chamada “última palavra” como administradora do lar. As grávidas, em conformidade ao direito germânico, recebiam proteção especial (cf. entre outros, Becker, 1977, pp. 41 ss). A própria imagem da bruxa não se definia de antemão como negativa. Considerava-se que a magia podia ser boa e podia ser má. O curandeirismo e ofício de parteira estavam solidamente depositados em mãos femininas.
Nessa época, foi sobretudo nas doutrinas da Igreja que se preservou a antiga e inequívoca imagem negativa da mulher. Como sucessora de Eva, ela foi denunciada como causa de todo o mal e eterna sedutora da carne. A partir do século XII, Eva, a pecadora, passou a ser confrontada com a Virgem Maria. Desde então, a mulher devia ser quando muito um ente assexuado. Em consonância à palavra de Paulo, segundo a qual a mulher tem de calar-se na comunidade, ela perdeu sua razão de ser na esfera pública. Mas como a “esfera pública” restringia-se praticamente à Igreja, ao passo que a vida real centrava-se na “família produtiva”, o significado social dessa imagem feminina foi bastante limitado. Nas massas camponesas, no seio das quais ainda subsistiam inúmeros resquícios pagãos e germânicos, a imagem cristã da mulher como “poço de pecados” foi incapaz de firmar-se sobre as pernas. De modo geral, os costumes sexuais não eram de forma alguma tão rígidos quanto os prescritos pela Igreja (cf. Becker, 1977, pp. 57 ss.).
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Se posição da mulher nas relações patriarcais da Idade Média ainda era dotada de um elemento contraditório, sua situação piorou drasticamente no início da Idade Moderna. A imagem feminina negativa brandida pela Igreja tornou-se, sob as novas condições, mais eficaz na prática. A Renascença, além de ser o “renascimento” do antigo mundo espiritual, estava vinculada também a uma respectiva mudança dos fundamentos sociais. A produção de mercadorias e o fluxo monetário ganharam novo alento e conduziram ao processo de reestruturação descrito por Marx em sua análise da acumulação primitiva do capital. Assim, constituiu-se novamente uma esfera pública no interior da sociedade:
Embora os estágios evolutivos da Idade Média sejam bastante diversos no que respeita às mulheres, sendo muitas vezes contraditórios e avessos a uma imagem uniforme, podemos observar no início da Idade Moderna que a situação das mulheres piorou a olhos vistos, como dão prova as repressões por ela sofridas em todos os âmbitos sociais. Quanto mais se desenvolvem uma esfera pública supra-regional, uma jurisdição estatal e uma ciência institucionalizada, mais nítido se torna o papel marginal atribuído à mulher (Becker, 1977, p. 79).
Francamente revolucionário foi o salto dado sobretudo pelas ciências naturais nessa época. A imagem de um mundo mágico e místico foi substituída pelas ciências experimentais e objetivas. Tais alterações não retomaram simplesmente o antigo desenvolvimento greco-romano, mas foram muito além. Com sua racionalidade, as ciências puseram em tela de juízo não apenas a imagem tradicional do mundo, mas tornaram-se também diretamente práticas na condição de experimentais, à diferença da Antiguidade; com a difusão do conhecimento técnico, foi dado início à expansão da manufatura mercantil. Este processo foi vertiginosamente acelerado com o descobrimento de novos continentes. As incisões sociais a que foi submetida a sociedade agrária foram portanto muito mais profundas do que na Antiguidade e já deixavam entrever o capitalismo nascente. Além de a posição da mulher agravar-se com o impulso renovado da sociedade do valor, foi instaurada literalmente uma campanha de aniquilação contra o “feminino”, sob a égide da caça às bruxas ¾ campanha esta responsável por abrir caminho a um processo que avançaria futuro adentro:
O “novo ser humano” da era industrial foi o homem. A imagem mágica e a mística da mulher permaneceu intacta no período burguês, embora ela não fosse mais considerada como sujeito da apropriação da natureza, mas como objeto da dominação da mesma natureza (Bovenschen, 1977, p. 292).
Ora, a mulher (na figura da bruxa) mantinha uma relação “simpática” com a natureza; de certo modo, ela fazia as vezes de natureza. Para que a racionalidade do homem moderno pudesse impor-se na esteira do legado antigo e para além dele, era necessário portanto literalmente eliminar a mulher e tudo o que ela representava (o sensível, o difuso, o incalculável, o contingente, etc.). Não se tratava apenas do fato de os homens expropriarem brutalmente a ciência medicinal empírica das mulheres; antes, o que estava em jogo era um projecto fundamentalmente diverso de relacionamento com a natureza (cf. Bovenschen, 1977) (11) . A fundamentação teórica é fornecida sobretudo pelo chamado Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), de 1487, redigido pelos padres H. Kraemer e J. Sprenger. Pais da Igreja, poetas e pensadores antigos eram citados no fito de tornar plausível a inferioridade da mulher e sua predisposição à bruxaria e ao pacto com o demónio. Imputavam-se mais uma vez às mulheres atributos como inconstância, concupiscência, raciocínio débil, extravagância, perfídia e credulidade (cf. Becker, 1977, pp. 342 ss.) (12) .
Não apenas os conhecimentos naturais heterodoxos das “mulheres sábias” medievais, mas também as qualidades “femininas” em geral (assim reputadas pelo patriarcado) devem ter aparecido como uma ameaça aos olhos da incipiente modernidade masculina, inclusive no tocante à economia afetiva e passional. Na Idade Média, o controle dos afetos e das paixões era em regra pequeno: comia-se e bebia-se literalmente até cair, urinava-se pelos cantos e à vista de todos e assim por diante. Agora era preciso modificar não apenas os costumes de mesa. O autocontrole do indivíduo é também o pressuposto de uma compreensão científico-racional da natureza e da sociedade em geral, pois em seu princípio está o distanciamento em relação ao objeto de interesse, fato que se acha incluso no controle dos sentimentos. Também o comércio, a economia monetária, a divisão de trabalho e o convívio com estrangeiros requeriam em grande medida uma dilação das paixões e o controle dos impulsos (cf. Elias, 1976). Na caça às bruxas, portanto, estava claramente em ação o mecanismo das projeções: o temor aos próprios impulsos e afetos encontrava expressão na denúncia contra a mulher.
Os séculos XVI e XVII foram aparentemente também uma época sacudida por crises e revoluções. Guerras camponesas, inflação e carência de alimentos, dissolução das guildas, etc., impregnaram a imagem da sociedade; boa parcela da população tornou-se miserável. Uma situação anômica como essa foi talvez decisiva para que a caça às bruxas instituída pela Igreja encontrasse respaldo também na população (tanto masculina quanto feminina):
Quando o processo de trocas materiais entre o homem e a natureza ingressou em seu novo estágio (…) a destruição da antiga relação com a natureza, especialmente seu estreito vínculo com a mulher, tornou-se imprescindível. Os indivíduos teriam de orientar-se pelas normas de trabalho nos novos tempos (…). A bruxa encontra-se nesse ponto de intersecção do desenvolvimento histórico, no qual a exploração da natureza adquire seu carácter sistemático. Vítima do controle necessariamente progressivo da natureza, ela sucumbiu desse modo ao triunfo da razão abstrata e da síntese formal entre identidade e não-identidade. Seus traços desapareceram na generalidade dos conceitos com os quais o pensamento moderno organizou a natureza (Bovenschen, 1977, pp. 290 e 292).
Fica assim comprovado que a velha noção da caça às bruxas como um último estertor da “Idade das Sombras” não é de forma alguma adequada. Pelo contrário, trata-se em certa medida de um primeiro fenómeno de modernização, de um pressuposto sangrento para a ascensão moderna da racionalidade masculina. Como em toda a reviravolta histórico-social, as forças propulsoras eram contraditórias em sua ideologia. Embora de um lado a Igreja antipatizasse com as novas ideias (das ciências naturais), uma vez que elas punham em xeque a própria imagem do mundo, sua função no efetivo processo de revolução social foi ambivalente. Por meio da caça às bruxas, de fato, a Igreja forneceu o impulso decisivo para a destruição da antiga imagem mística do mundo, e nesse sentido foi plenamente propícia aos novos poderes e às novas idéias. Em que pese sua “animosidade ao progresso”, a Igreja atuou de certa forma como um algoz a serviço da nascente modernização. Isso também é corroborado pelo fato de que “a neurose das bruxas não surgiu em áreas rurais, mas nas regiões industrialmente mais desenvolvidas e intelectualmente mais avançadas da Europa” (cf. Heinemann, 1989, pp. 37) ao passo que o Malleus, por exemplo, foi rejeitado pela Inquisição espanhola. O Iluminismo, como o impulso seguinte da modernização patriarcal, ligada ao valor, pôde assim condenar a caça às bruxas com venerável indignação sobretudo porque essa “tarefa” já havia sido previamente realizada.
8
O potencial regulamentador da Igreja, ainda bastante superficial na Idade Média, tornou-se objetivamente necessário com o início da Idade Moderna; o protestantismo foi o primeiro a ditar o figurino do superego nas novas relações. Além de instaurar, com o movimento da Reforma, uma religião individualizada, a ética protestante proclamou a redenção da alma por meio da conduta moral. Nesse contexto, as ordenações patriarcais dos papéis imputados aos sexos adquiriram uma nova qualidade. A virulenta campanha contra o “feminino” manifestou-se (em complemento ao projeto científico de “controle da natureza”) como tendência a domesticar a mulher como “ente natural”, isto é, fazer com que a mulher, como representante da natureza (e a natureza como local de destino do mundo feminino) levasse uma vida serena, doméstica e controlada pelo patriarcado.
Paralelamente à caça às bruxas, desenvolveu-se assim o ideal materno como nova imagem da mulher. Os responsáveis para tanto foram a Reforma e sobretudo Lutero. Segundo ele, à mulher competia a administração do lar (cuja importância diminuiu relativamente) e ao homem, a política, as querelas jurídicas, etc. (cuja importância aumentou relativamente). A maternidade, para Lutero, era a vocação feminina. Embora tenha em certa medida reabilitado a mulher dentro de seu papel restrito (em contraste à ideia de inferioridade pespegada pela Igreja Católica), na medida em que atribuía valor à sua atividade de esposa e mãe, a concepção de Lutero implicava ao mesmo tempo o encerramento da mulher – e com ela a sexualidade e a sensibilidade – no claustro do casamento, ao contrário do que ocorria na Idade Média.
Ratificou-se assim, desde Lutero, uma nova codificação e funcionalização da sexualidade e sensibilidade. O ideal luterano da mãe dona-de-casa conjugava a imagem da bruxa e da Virgem Maria (que Lutero rejeitava em sua versão católica). Nasceu desse encontro a imagem da mulher burguesa domesticada, que representava, por um lado, a humildade, a amabilidade e a obediência e, por outro, também uma versão domesticamente comedida de paixão e erotismo (cf. Hoher, 1983, pp. 49 ss.). Nessa concepção, revela-se o posterior desenvolvimento da imagem patriarcal da mulher quando comparada às noções da Antiguidade e da Igreja medieval – imagem esta que correspondia às novas relações burguesas.
Em Lutero, é claro, tratava-se apenas de uma “primeira abordagem” relativamente tosca à moderna imagem patriarcal e burguesa da mulher, que de início recobria somente uma fina camada da sociedade. Foi sobretudo entre o patriciado e os mestres de ofício que as atividades da mulher restringiram-se progressivamente ao homem e os filhos; num processo concomitante, houve uma mudança de sentimentos ¾ o amor entre cônjuges e entre pais e filhos foi descoberto como economia emocional domesticada:
(…) “domesticação” não significa o desaparecimento físico da esposa como individualidade sob a figura do marido, mas sim seu desaparecimento tendencialmente psíquico. A consciência da própria individualidade lhe era permitida somente nos limites de publicidade do lar. Ora, na medida em que o lar resguardava suas funções públicas, isso não acarretava uma total exclusão da própria esfera pública (Wunder, 1991, pp. 24).
Especialmente no campo, uma rígida diferenciação dos âmbitos da atividade em “públicos” e “privados” levaria ainda muito tempo para concretizar-se. Todavia, o esboço de uma feminilidade burguesa e votada à família esgueirou-se progressivamente por todas as classes e estamentos, e o desenvolvimento posterior recebeu dela uma marca indelével.
9
A era da Ilustração deu novo impulso ao processo de domesticação da mulher. No início, havia ainda entre os primeiros ilustrados opiniões favoráveis a estender às mulheres o projeto de emancipação igualitária. Tais projetos ideológicos da Ilustração, devotados a uma racionalidade supostamente neutra em relação aos sexos, não foram capazes de se impor em face do peso de seu próprio fundamento social, a saber, a progressiva socialização pelo valor. Esta, de fato, requeria a crescente diferenciação dos papéis patriarcais entre os sexos, tanto é que, na segunda metade do século XVIII, criou-se uma imagem feminina que tornava a mulher novamente um ser da natureza. Essa imagem, no entanto, adquiriu uma nova coloração e uma nova qualidade, de vez que a mulher estava destinada “por natureza” a não ser mais que esposa, dona-de-casa e mãe:
Por volta de meados do século XVIII, as normas de conduta restritivas professadas pela Igreja foram substituídas pela doutrina da mulher como um ser eticamente natural, a quem era imanente um impulso irrefreável ao autosacrifício. Embora a nova imagem que se delineava do caráter feminino ainda a descrevesse como um ser irracional e movido pelos desejos, introduziu-se uma mudança decisiva, pois cada vez mais atribuía-se aos cegos arrancos da mulher um propósito ético (Bennent, 1985, p. 44).
O duplo conceito da mulher como santa e meretriz foi conservado e reforçado. Rousseau, que é tido como o fundador ideológico do moderno patriarcado, considera a discrição, a obediência ao homem, a modéstia e a castidade as virtudes cardeais da mulher; ao mesmo tempo, contudo, ele a define também como astuta e coquete “por natureza”. Estes últimos atributos, segundo Rousseau, cabe a ela “cultivar” (dentro de limites, é claro), para assim contrabalançar sua subordinação em face do homem bem como sua fraqueza corporal, de raciocínio e de caráter (cf. Rousseau, 1986, pp. 719 ss.).
Na medida em que à mulher se imputavam novas qualidades como passividade e emotividade (se bem que agora restritas ao círculo familiar burguês) e ao homem, por sua vez, a ação e a racionalidade no espaço público da incipiente sociedade industrial, ocorreu uma “polarização de caráter entre os sexos”. A mulher e a família deviam converter-se em pólos de oposição ao mundo externo cada vez mais dominado pela racionalidade instrumental. Cabia à mulher não apenas ser uma dona-de-casa exemplar, mas também tornar agradável a vida do marido com sua assistência, seus cuidados e seu interesse. Essas tarefas adicionais representavam uma inovação (cf. Hausen, 1978). À diferença dos primeiros patriarcados da Antiguidade, presos à forma-valor, em que o homem ainda encontrava sua satisfação na própria esfera pública, elas são testemunha do quanto a racionalidade patriarcal e do valor fugiu ao controle do homem nesse meio tempo, do quanto ele depende agora de um “bem-estar doméstico” propiciado pela mulher.
10
No século XIX, a “vocação materna” da mulher burguesa ganhou relevância ainda maior. As esferas de produção e reprodução cindiram-se cada vez mais. As atribuições sexuais adquiriram traços quase profissionais: a mulher estava “talhada” para atividades de cunho mais pessoal, e o homem para atividades produtivas na ciência, tecnologia e cultura:
Quanto mais rápida e profundamente se modificava o mundo externo (…), e quanto mais ágil e vivo o empenho profissional e público dos homens, mais nítida era a discrepância entre a existência familiar feminina e a inclinação profissional masculina. Se o homem dotado de ambição e disposição desempenhava o papel do descobridor e revolucionário progressista, a mulher burguesa viu-se confrontada com a tarefa de manter a família em equilíbrio, de desincumbir-se dia após dia dos afazeres domésticos e de funcionar como uma relojoaria de tique-taque cadenciado (Frevert, 1986, pp. 65).
Casamento e maternidade tornaram-se então o único locus social onde a mulher (burguesa) podia locomover-se; de resto, ela dependia inteiramente de seu marido. A domesticação da mulher atingiu no séc. XIX um tal ápice que mesmo o forte instinto sexual imputado às mulheres ao longo do tempo chegou a ser desmentido. O absurdo era tanto que foram promovidos debates “científicos” entre os homens para saber se a mulher era capaz de prazer sexual. A domesticação, portanto, foi infletida como tendência a um ser absolutamente assexuado (cf. Frevert, 1986, pp. 128 ss.).
Mas o século XIX viu nascer também o primeiro movimento feminista, cujos rudimentos remontam à Revolução Francesa. A exigência de emancipação própria à Ilustração, que em sua abstração tem como fundamento o sujeito masculino da socialização pelo valor, foi então pleiteada pelas mulheres a partir de seu próprio modo de ser “divergente”, isto é, de acordo com sua posição social. O exílio no lar permaneceu assim indisputado. Na esteira da Revolução de 1848, Luise Otto postulava o direito das mulheres “à independência e maioridade no Estado”. Após sua proibição, o movimento feminista burguês recompôs-se nos anos 60 do século XIX. Exigiam-se sobretudo uma melhor formação cultural das estudantes e o direito à atividade remunerada, embora as mulheres devessem ocupar-se de tarefas correspondentes à sua “destinação natural” (comércio e ensino, e mais tarde também a assistência social). Uma razão importante para exigir o direito à atividade remunerada residia no fato de que uma quantidade cada vez maior de mulheres burguesas permanecia solteira. A própria estrutura familiar sofreu mudanças na segunda metade do século XIX: muito do que antes era produzido em casa passou a ser comercializado, e a importância da administração doméstica decaiu proporcionalmente (Frevert, 1986, pp. 73 ss. e 174 ss.).
A atividade reprodutiva das mulheres devia então ser continuada dentro da esfera do trabalho. Nos primórdios do movimento feminista, o que estava em jogo para a grande maioria não era de modo algum a plena igualdade de direitos. A maternidade já fora internalizada como uma “vocação natural”; as supostas “diferenças entre os sexos” não deviam ser violadas. Até mesmo o objetivo social desses primeiros movimentos consistia somente no prolongamento social da feminilidade doméstica: o mundo frio e exclusivo dos homens devia ser humanizado pelo “natural sentimento materno” da mulher (cf. Frevert, 1986, pp. 124 ss.). Ao lado dessa maioria dos movimentos feministas burgueses, havia ainda uma pequena e radical minoria, representada por Helene Stöcker com sua “Nova Ética”. Esta facção punha em tela de juízo a domesticação patriarcal, exigia um direito próprio às mulheres em relação a sua sexualidade, a revogação do parágrafo 218 [Referência à disposição legal sobre o aborto contida no Código Penal Alemão (N.T.)], proclamava o livre conúbio como alternativa ao casamento, voltava-se contra a estigmatização jurídica e social de filhos ilegítimos e reclamava o sufrágio feminino, em contraste ao comedimento típico da maioria (cf. Schenk, 1980, pp. 32 ss.).
Se não diferia quanto ao resultado, pelo menos no tocante ao ponto de partida a situação das trabalhadoras era diversa. A classe operária surgida com a industrialização era a mesma que, ainda no século XX, vivia quase como um corpo estranho, à margem da sociedade burguesa oficial e por ela conscientemente excluída. Neste setor, a domesticação da mulher ocorreu num grau muito menor, embora as antigas formas agrárias de existência da feminilidade tivessem sido aniquiladas para dar lugar ao nefasto trabalho de mulheres e crianças nas fábricas. As associações femininas burguesas foram as primeiras a cuidar das trabalhadoras, ao passo que o movimento trabalhista masculino, por razões de concorrência, portava-se com acentuada reserva (Schenk, 1980, p. 48). Como a tendência objetiva do movimento trabalhista consistia em inserir sem restrições a classe operária na socialização burguesa pelo valor, ele estava condenado a reproduzir o próprio padrão de hierarquia sexual burguesa. A “questão da mulher” foi subsumida à “questão das classes”. As contradições resultantes permanecem intactas. A social-democracia, para dar um exemplo, exigia de um lado o sufrágio feminino e a melhor remuneração das atividades femininas, mas de outro, afirmava que o salário de um trabalhador masculino haveria de ser suficiente para “alimentar uma família”, o que implica a domesticação burguesa da mulher trabalhadora. Dessa contradição não escapou nem mesmo o movimento feminista das proletárias, que, apesar das reinvindicações mais ou menos veementes a favor da remuneração condigna, em boa parte afirmava a maternidade como a “vocação natural” da mulher (Frevert, 1986, pp. 134 ss.). A contradição apontada aqui se agravou por volta do final do século XIX e persistiu até meados do século XX.
A crescente inserção de mulheres em atividades não remuneradas alcançou seu auge na I Guerra Mundial, já que elas foram obrigadas a substituir nas fábricas os postos vacantes dos homens recrutados pelo serviço militar. Essa tendência não progrediu linearmente. Após o fim da Primeira Grande Guerra e durante a crise econômica mundial, as mulheres foram as principais atingidas pelo desemprego. Ao contrário de sua propagação do ideal materno e do da dona-de-casa, os fatos indicam que no fascismo – talvez em virtude dos preparativos de guerra a partir de 1935 – houve um recrudescimento da atividade profissional feminina (cf. Daubler-Gmelin, 1977, pp. 28 ss.). Não obstante todas as mudanças na atividade feminina remunerada, o padrão de hierarquia sexual manteve-se bastante estável. O movimento feminista moderado, que sempre propalara de maneira conservadora o ideal materno, dissolveu-se com a ascensão ao poder dos nazistas em 1933. Pode-se afirmar com certa justiça que, com sua ideologia da maternidade, ele foi propício à imagem feminina do fascismo.
11
Na segunda metade do séc. XX, a relação entre os sexos parece sofrer nova mudança radical. As novas condições do problema podem ser expressas com auxílio da consagrada “tese da individualização” de Ulrich Beck. Por “individualização” entende Beck o processo segundo o qual as pessoas libertam-se dos papéis sexuais que lhes foram introjetados pela “sociedade industrial”. A elas cabe reconstruir sua vida (se necessário, contra os vínculos familiares) acima do mercado de trabalho, da instrução escolar e das imposições de moradia (Beck e Beck-Gernsheim, 1990, pp. 13 s; cf., para o que segue, Beck, 1990). Tal evolução ocorreu principalmente graças ao vertiginoso aumento das atividades femininas remuneradas após o término da II Guerra. Surge assim um novo potencial contraditório. De acordo com Beck, o núcleo familiar e seus papéis sexuais são, por um lado, a base da sociedade industrial, mas, por outro, o surto de individualismo produzido pelos mecanismos cegos de mercado atinge progressivamente também a mulher e torna a tradicional repartição de papéis mais problemática do que nunca. Outros aspectos relevantes são a possibilidade de prevenção da gravidez, os processos de racionalização da economia doméstica, etc.. Ao mesmo tempo, porém, a mulher vê-se presa ao seu papel tradicional tanto pela responsabilidade que lhe é atribuída no tocante aos filhos quanto pelo fato de que as mulheres são sempre as mais atingidas pelo desemprego em massa:
Estamos portanto – com todos os antagonismos, oportunidades e contradições – apenas no início do processo que nos libertará das atribuições “estamentais” do sexo. A consciência da mulher adiantou-se às relações sociais. Que os ponteiros de sua consciência possam voltar atrás é algo improvável. Tudo depõe a favor da prognose de um extenso conflito: a contraposição dos sexos define os anos vindouros (Beck, 1990, p. 24, grifos no original).
Beck demonstra empiricamente a disparidade da situação entre homens e mulheres com base em dados contraditórios da emancipação feminina. As mulheres, por exemplo, equiparam-se aos homens na obtenção de diplomas escolares, embora a disposição de estudo das jovens tenha simultaneamente decaído. As jovens de hoje têm melhor formação que suas mães, embora muitas vezes escolham disciplinas “mal remuneradas” nas áreas linguística e pedagógica ou se dediquem a profissões extra-académicas fortemente ameaçadas pela racionalização (por exemplo, secretária). Em geral, vale a regra de que as mulheres são encontradas principalmente nos patamares inferiores das áreas dominantes da sociedade (política, economia, ciência, mídia). Não é nada raro os homens reagirem às atividades femininas altamente qualificadas lançando mão de razões biológicas para resguardar a velha hierarquia.
Segundo Beck, é justamente a forte equiparação entre homens e mulheres no processo de individualização que traz nitidamente à consciência todas as assimetrias ainda existentes na relação entre os sexos. Quem educa o filho, quem sustenta a família, quem segue o parceiro quando seja necessário mudar de cidade por exigências profissionais, quem decide se as crianças devem ser criadas dentro ou fora do casamento – tudo isso deixou de ser inequivocamente claro e assentado:
Em todas as dimensões da biografia irrompem possibilidades de escolha e obrigações de escolha. Por princípio, os projetos e ajustes necessários são revogáveis e dependem de legitimação no que se refere aos encargos desiguais neles contidos. Em tais consensos e dissensos, os erros e conflitos fazem aflorar com crescente nitidez os diferentes riscos e consequências para homens e mulheres (Beck, 1990, p. 52, grifos no original).
Essa constelação profundamente conflituosa não conduz com exclusividade ao divórcio ou ao celibato:
A esperança da vida conjugal é a última grande comunhão que a modernidade permitiu ao indivíduo numa sociedade despojada de sua tradição. É nela, e talvez somente nela, que se enfrentam e padecem as experiências sociais, numa sociedade cujas realidades, perigos e conflitos resvalaram para o abstrato e se furtam mais do que nunca à percepção e ao juízo sensíveis (Beck, 1990, p. 21, grifos no original).
Segundo Beck, portanto, trata-se antes de uma “libertação rumo à família”, num momento em que os mecanismos de individualização atuantes na família modificam e tornam instáveis as formas de convivência. A relação entre existência individual e familiar assume novo aspecto. A família não se desagrega, embora não seja mais a instituição solidamente estruturada pela qual homens e mulheres orientam toda sua vida. Em vez disso, surge uma sequência temporalmente justaposta e imbricada de diversas formas de vida como família, celibato, comunidades de moradia, novamente família, etc., pelas quais transitam mulheres e homens individualizados. Cada um(a) tem de talhar sua biografia de maneira precária. Não é simples acaso, na óptica de Beck, que a relação entre os sexos só se tenha tornado conflituosa na modernidade tardia (ele vislumbra nela o “conflito do século”), já que somente agora as classes se vêem privadas de sua tradição e a racionalidade abstracta da sociedade industrial começa a infiltrar-se na esfera até então particular do casamento e da família.
A investigação de Beck presta-se bem a demonstrar as modificações empíricas na relação entre os sexos durante as últimas duas décadas e sua história pregressa desde a II Guerra. A estrutura patriarcal torna-se precária à medida em que as mulheres são capazes, por intermédio do desenvolvimento social, de se distanciarem do seu papel, o qual nem por isso, contudo, é superado (13). A meu ver, entretanto, a estrutura teórica de relações da análise de Beck é fundamentalmente equivocada. Embora o autor, no contexto teórico, afirme que a divisão dos papéis sexuais seja a “base da sociedade industrial”, o conceito de patriarcado é cuidadosamente evitado. Da mesma forma, já se vê, ele tampouco relaciona o fundamento patriarcal (apenas indirectamente mencionado) com a socialização pelo valor, da qual nem mesmo faz ideia. Apesar de constante, o uso de conceitos como a “modernidade”, “a sociedade industrial”, etc., é bastante difuso e nunca chega a uma definição da sociedade ante o pano de fundo de seu desenvolvimento androcêntrico e ligado ao valor. Para ele, em última instância, a relação patriarcal entre os sexos e sua distribuição de papéis não passam de “fenómenos” empiricamente comprováveis. Nisso ele enxerga apenas um problema entre tantos da “sociedade pautada pelo risco” (cf. Beck, 1986).
Por apegar-se, em último recurso, a uma estrutura teórica de relações sexualmente neutra (“sociedade industrial”), Beck se vê por fim legitimado a neutralizar a mudança empírica das relações entre os sexos com auxílio do conceito de “individualização”, que em sua obra adquire o estatuto de “chave teórica” para a análise das alterações. No plano conceitual, portanto, e como simples consequência da linha argumentativa de Beck, a relação assimétrica entre os sexos é novamente posta em xeque por uma categoria sexualmente indiferente. A “individualização”, e não a problemática dos sexos, aparenta ser com isso o profundo e “verdadeiro” problema. A argumentação de Beck coincide neste ponto com o conceito de “indivíduo abstracto” (igualmente neutro em referência aos sexos) da crítica do valor realizada pelo grupo KRISIS. Ignora-se o facto de que esse “indivíduo abstracto”, precisamente em sua constituição ligada à forma-valor, é incapaz de desvencilhar-se de seu papel sexual, porque o valor (a forma mercantil da sociedade) é ele próprio sexualmente constituído.
Enquanto essa relação não se firmar no pano teórico-conceptual, a argumentação estará condenada a justificar a crise dos papéis sexuais com motivos meramente sociológicos, como ocorre em Beck, ou até mesmo a fazer referência a uma crescente “dissolução” dos papéis sexuais (14) e das determinações patriarcais já “dentro” de uma socialização pelo valor, que restaria então como o último “verdadeiro” problema (sexualmente neutro) da modernidade (como, em linhas gerais, no trabalho de Turcke, 1991). Em vez disso, seria preciso encarar de frente a própria constituição patriarcal da relação de valor, ou seja, o pressuposto sexualmente patriarcal da produção e troca de mercadorias, que já se encontra na raiz da socialização do valor e não pode ser apreendido por uma concepção “sociologista” abreviada dos papéis (como em Beck).
12
Quanto mais coisificadas as relações humanas se apresentam, e portanto quanto mais desenvolvida for a relação de valor patriarcal e a-subjectiva, mais nítidas despontam as cisões patriarcais, que hoje já não se alinham com a mesma evidência de antes, ao relacionamento homem-mulher. Tais cisões, além de problemas individuais, tornam-se também uma questão pública, isto é, política. Sobretudo os “novos movimentos sociais”, que subiram ao palco social nos anos 70 e 80 compreendem a si mesmos como reação ao carácter anónimo e abstracto das relações sociais. Se atentarmos no leque de temas ao redor dos quais se agrupam tais movimentos, saltará aos olhos a espantosa correspondência que eles guardam com as atribuições patriarcais referentes “à mulher”.
A temática dos movimentos pacifistas, ecológicos e psiclógicos está em correspondência com as ideias segundo as quais a mulher é um ser natural mais pacífico e emocional do que o homem. No próprio movimento alternativo está contida “a questão da mulher”, na medida em que ele se volta contra o trabalho abstracto e alienado – uma esfera que, apesar de todas as mudanças na actividade remunerada, nunca absorveu as mulheres com a intensidade com que absorve os homens. Com isso, o trabalho doméstico ainda é tido como um polo oposto ao trabalho abstracto. Não admira, pois, sob tais condições, que o novo movimento feminista tenha surgido sob o signo dos movimentos de protesto. Quando tudo o que é oprimido e marginalizado se faz ouvir em massa, a depositária social dessa repressão, “a mulher”, torna-se também necessariamente rebelde. Os mecanismos objectivados da socialização do valor em forma patriarcal são eles próprios responsáveis não apenas por conduzir ao distanciamento da mulher em face do papel que lhe é atribuído (constituindo assim um pressuposto para sua luta emancipatória), mas também por transformar em objecto de crítica social o “potencial de destruição da dimensão sensível” desses mesmos mecanismos – potencial este desenvolvido historicamente através de catástrofes sociais e ecológicas. Nesses termos, poder-se-iam mesmo considerar os movimentos de protesto dos anos 70 e 80 como idealmente femininos, como expressão da mulher total, ainda que isso não seja necessariamente reconhecido por suas integrantes e o embate entre os sexos dentro deles permaneça obviamente virulento. Segundo K. W. Brand, os novos movimentos sociais “não seguem mais a linha tradicional do movimento trabalhista”. Em vez disso:
Eles inflamam-se sobretudo em torno de problemas da reprodução social(…). De um lado, a progressiva destruição dos espaços de vida natural e colectiva, a crescente concentração tecnocrática de ordens sistémicas e de coerção, o perigo iminente de uma guerra atómica; de outro, tentativas de edificar contextos vitais de organização autónoma, voltados para as próprias necessidades, e de estender as possibilidades de participação política e de consciência individual – estes são os temas de primeiro plano dos movimentos políticos e contraculturais de protesto (Brand, 1984, p. 9).
Ora, seria possível objectar que os nossos movimentos de protesto e seus temas não são tão novos assim. Como o próprio movimento feminista, eles tiveram seus precursores históricos. Todo o processo de modernização, desde o séc. XIX, foi acompanhado pelo surgimento de correntes de crítica à civilização dotadas de conteúdos análogos. Na Alemanha, por exemplo, podemos citar o movimento de reforma da vida (Lebensreformbewegung), surgido na segunda metade do séc. XIX e o movimento da juventude (Jugendbewegung), que teve origem no início do séc. XX:
O Lebensreformbewegung compunha-se de pequenos movimentos parciais, cujo objectivo comum – a despeito de toda a heterogeneidade – consistia na recriação de um modo de vida “natural” que assegurasse a unidade entre homem e natureza por meio da modificação da conduta individual. Alimentação saudável, moradias em ambiente natural, cura através das forças naturais, contacto corporal com os elementos da natureza (luz, água) e uma vida em comunidade eram os pontos norteadores dessa específica concepção de mundo (Raschke, 1985, p. 44).
O Jugendbewegung buscava igualmente produzir a “unidade com a natureza” por meio da peregrinação e da vida grupal. De certa maneira, isso nos recorda o “acesso simpático à natureza” outrora imputado à bruxa ou à mulher. Supostos espaços naturais eram buscados em espaços que, também supostamente, encontravam-se à margem da indústria.
Salta aos olhos, porém, que tais movimentos de crítica à civilização davam mostras de um pendor masculino não apenas quanto à composição dos integrantes, mas também ao expressar sua exigência de uma nova relação com a natureza numa forma falicamente distorcida. Logo surgiram no Jugendbewegung, que originalmente guardara distância do patriotismo e da germanofilia, fortes correntes anti-semitas, racistas e nacionalistas. Os partidários de tal movimento exigiam uma
reformulação nacional consoante às formas de organização da juventude. Da comunidade dos grupos peregrinos surgiu por essa via a comunidade popular, do líder do grupo surgiu o líder do povo. Camaradagem, lealdade e sectarismo foram realçados militarmente e guindados a virtudes políticas universalmente obrigatórias (Raschke, 1985, p. 49).
Em parte, as razões para tanto podem ser buscadas numa diferenciação contemporânea da classe média, que foi afectada e totalmente transformada pela ampliação do trabalho abstracto. Foram justamente os “perdedores” masculinos desse período que se sentiram acossados pelo processo de modernização e reagiram com “regressão”.
No antigo movimento pacifista que começou a formar-se a partir de 1890, a participação feminina foi ao contrário relativamente grande e houve mesmo coincidências pessoais entre seus líderes e os do movimento feminista (cf. Raschke, 1985, p. 42). Neste último também era evidente, no entanto, o ideário de crítica à civilização. A massificação, a desespiritualização e a objectivação foram vistas assim como resultado da racionalidade masculina; o movimento feminino faria frente a tais fenómenos negativos com o “espiritual sentimento materno”. Em muitos textos da parte mais moderada do movimento, porém, essa crítica era traspassada pelo ideário “popular”. A crítica da racionalidade masculina, portanto, não estava isenta de “identificações fálicas” (Hass, 1988, p.85). Isso pode ser ilustrado por uma passagem de Gertrud Baumer, num texto escrito em 1914:
Na verdade o que esses tempos fizeram de nós? (…). Como eles nos transformaram? (…). A experiência mais pungente, universal e arrebatadora é a revelação em nós da consciência do povo. Não, não somos pessoas isoladas, apesar de todo o refinamento dissoluto (…) hoje não estamos sós, hoje somos um povo, unidade de sangue e de raça, de índole e de cultura (Baumer, cit. por Hass, 1988, p. 84).
Poder-se-ia nesse sentido arriscar a afirmação de que, num certo estágio de evolução do patriarcado em sua forma-valor por volta da passagem do século, a bruxa reprimida fez seu retorno sob uma roupagem fálica – e isso no seio do próprio movimento feminista. O elemento sensível recalcado, que fora enfeixado na figura da mulher e graças ao qual ela acabara nas fogueiras dos autos de fé, fluiu nessa época rumo ao elemento popular falicamente distorcido, ou mesmo à truculência militar das corporações masculinas. Essa distorção paradoxal revela apenas, porém, que a sensibilidade, a emotividade, a espontaneidade etc., não representam qualidades “femininas”, pura e simplesmente. Trata-se antes de momentos cindidos no interior da natureza histórico-social da espécie, que podem manifestar-se de forma também estranha no polo sexual oposto. Por certo se pode afirmar com alguma plausibilidade nesse sentido que, a exemplo da ideologia do “sentimento materno” dos primeiros movimentos feministas em específico, as correntes de crítica à civilização a partir de fins do século XIX também ajudaram, em geral, a limpar o terreno para o fascismo (embora seja necessário aqui proceder a análises minuciosas, para evitar falsas generalizações). Nefasta e catastrófica não foi a pura e simples tematização do carácter reprimido histórica e socialmente, mas a forma inconsciente e falicamente pervertida em que foi realizada.
É sobre esse pano de fundo de reflexão histórica que caberia a discussão dos “novos movimentos sociais”, na qual se analisa e critica já desde os anos 70 a suposta primazia da ideologia de sangue e de solo, também no caso das concepções feministas. Tal crítica será falsa e imprecisa se, fundamentada ela própria num falso vínculo imediato, não levar em conta a estrutura patriarcal do valor como tal, nem sua evolução histórica. Que o clamor pela natureza e a sensibilidade pudesse manifestar-se em forma falicamente distorcida ainda no fascismo está relacionado, a meu ver, com o facto de o princípio masculino do “trabalho” abstrato na época estar ainda em progresso. Se as cisões internas da relação homem-mulher irrompem mais uma vez em toda a sociedade, a partir das décadas de 70 e 80, isso está ligado à obsolescência do próprio conceito de “trabalho” abstracto.
Dessa nova situação histórica resultam, apesar de conteúdos análogos, diferenças decisivas entre as correntes críticas de hoje e as de então. Ao contrário dessas últimas, os novos movimentos de finais do séc. XX distinguem-se precisamente pelo incisivo anti-racismo e antinacionalismo. Suas preferências valorativas ressaltam o desdobramento próprio da personalidade e a igualdade de direitos. A participação numérica das mulheres é bastante grande e, além disso, a possibilidade de se imporem estruturas autoritárias (apesar de seu surgimento ocasional em seitas “psi”, por exemplo) é muito menor. Feitas as contas, o lado de choque dos novos movimentos é mais “brando” que o dos antigos. Todas essas diferenças não podem ser simplesmente ignoradas.
Igualmente falso seria criticar a irracionalidade de ambos os movimentos críticos do ponto de vista iluminista ou racionalista (e portanto também “masculino”), isto é, despejar a criança junto com a água do banho. Pois essa irracionalidade expressa o próprio “reverso”, cindido e obscuro, da socialização patriarcal do valor e, por via de consequência, da razão e do racionalismo masculinos. Em forma distorcida, os movimentos de crítica à civilização encerram momentos de verdade, na medida em que representam um protesto irracional e imediatista conta a “lógica de consumo económico-empresarial” e contra o carácter mediato e abstracto da moeda. O fascismo, todavia, mostra por onde pode enveredar tal protesto inconsciente e distorcido. Em seu falso imediatismo, estes movimentos talvez sempre contenham um potencial de barbárie, ainda que hoje isso se revele sob aspecto diverso do que antes da metade do século.
Não se trata, portanto, de simplesmente render homenagem aos movimentos de crítica à civilização, mesmo que em sua forma actual. Um imediato “regresso à natureza” não seria apenas impossível, mas também bárbaro e reaccionário. A noção heurística da “repressão das naturezas interna e externa”, absolutamente adequada para caracterizar a estrutura patriarcal, tem de ser por sua vez historicizada. O indivíduo (o homem e em igual medida a mulher) é parte da natureza. A assimilação de tais conhecimentos aparentemente banais é hoje mais urgente do que nunca. Contudo, não há natureza pura e simples, na medida em que as ideias que a cercam acusam sempre um carácter histórico e cultural. Não se pode simplesmente fazer que “retroceda” a roda da história. A cultura patriarcal do Ocidente, em seu desenvolvimento, não encerra apenas um potencial destrutivo, mas também momentos de progresso num sentido plenamente positivo, como por exemplo a ampliação das necessidades, benefícios médicos, etc.. Por isso o objectivo da crítica não pode ser o retrocesso a um nível de civilização aquém do já atingido. Nesse respeito, as correntes de crítica à civilização, mesmo em sua forma hodierna, representam na melhor das hipóteses um mero estágio transitório. Ainda assim, tais mudanças nas preferências dos novos movimentos sociais poderiam ser uma oportunidade ou um ponto de referência para, em vez de tomar o caminho de volta, finalmente ultrapassar o patriarcado em sua forma-valor.
Os aspectos da reprodução social delegados “à mulher” neste patriarcado contêm “desde o início” os problemas essenciais que afloram de maneira clara e irrecusável no estágio final da socialização pelo valor. Mas tal reconhecimento só se torna possível em nossos dias. Na história até hoje, disparidades de toda sorte puderam ser problematizadas: a relação senhor-escravo, suserano-vassalo, capitalista-proletário; caracteristicamente, porém, todas elas erguem-se no plano homem-homem. Só depois de meados do século XX foi possível vir à tona a problemática básica até então oculta do patriarcado ligado ao valor ¾ a cisão em termos da relação homem-mulher. Só agora atingimos a raiz do problema, pois os mecanismos patriarcais passaram a conduzir-se com necessidade, e em todos os níveis, ad absurdum. Embora já estivesse na ordem do dia no século passado, como problema supostamente isolado, a “questão da mulher” foi relegada a um segundo plano (sobretudo pela “questão de classe”) devido ao baixo grau de desenvolvimento da socialização pelo valor. Somente depois que a antiga questão de classes passou para o segundo plano e se revelou um problema imanente ao patriarcado do valor, foi possível conduzir o patriarcado como tal, e portanto o valor como tal, ao centro das atenções críticas.
É certo que os novos movimentos de protesto em sua forma actual de imediatismo equívoco (pela qual não devemos derramar nossas lágrimas), já se encontram há anos em declínio e em parte já desapareceram sem deixar vestígios. Uma vez que seus conteúdos se difundiram por toda a sociedade, houve uma crescente desradicalização. Todavia, é mais do que provável que o leque de temas pelos quais eles se interessaram continue a seduzir os movimentos sociais no futuro. Pois a problemática ecológica, pacifista e aquela vinculada à relação entre os sexos serão agravadas, em escala mundial, na mesma proporção que a crise económica do “trabalho” abstracto – e isso quanto mais evidente for o “colapso da modernização” (Kurz, 1991) e a crise do patriarcado do valor.
13
“O valor é o homem”, não o homem como ser biológico, mas o homem como depositário histórico da objectivação valorativa. Foram quase exclusivamente os homens que se comportaram como autores e executores da socialização pelo valor. Eles puseram em movimento, embora sem o saber, mecanismos fetichistas que começaram a levar vida própria, cada vez mais independente, por trás de suas costas (e obviamente por trás das costas das mulheres). Como nesse processo a mulher foi posta como o antípoda objectivo do “trabalhador” abstracto – antípoda obrigado a lhe dar sustentação feminina, em posição oculta ou inferior – , a constituição valorativa do fetiche já é sexualmente assimétrica em sua própria base e assim permanecerá até cair por terra. Hoje parece chegada a hora em que este fim se aproxima historicamente, pois o homem deixou de ser literalmente “senhor” de seus próprios monstros e de si mesmo. O homem aparece como um aprendiz de feiticeiro, só que agora não há mais um mestre patriarcal capaz de consertar a situação.
Georg Simmel foi um homem que já no início do nosso século fez a observação crítica do pendor assimetricamente masculino de “nossa” cultura oficial. O quanto o carácter social masculino tem por centro o “trabalho” abstracto é a propósito demonstrado por Simmel em forma que o ensaísmo agrega:
(…) a especialização que caracteriza nossas profissões e nossa cultura em geral é de natureza totalmente masculina. Pois ela não constitui algo meramente externo, mas só é possível através da mais profunda particularidade psicológica do espírito masculino; concentrar-se numa tarefa absolutamente unilateral, diferenciada da personalidade como um todo, de modo a fazer com que a acção objectivamente especializada e a personalidade subjectiva desfrutem cada uma delas, por assim dizer, de uma vida isolada da outra. Toda divisão do trabalho levada a extremos significa a separação entre o sujeito e seu ofício, o qual por sua vez é inserido numa correlação objectiva e sujeita-se às exigências de um todo impessoal, ao passo que os movimentos verdadeiramente subsjectivos e intrínsecos do indivíduo formam um mundo à parte e levam como que uma existência privada (Simmel, 1985, p. 162).
Há muito a esfera do “trabalho” abstracto deixou de ser propriedade exclusiva dos homens. O pressuposto patriarcal básico da relação de valor, porém, não foi por isso eliminado, mas apenas tornou-se precário e conflituoso. A despeito de toda a actividade remunerada, o “trabalho” abstracto não possui até hoje para as mulheres o mesmo poder fundador de identidade que para os homens. Vê-se que o fetichismo do “trabalho” como “tautológico fim em si mesmo” e os critérios de sucesso por ele implicados estão enraizados na personalidade de cada homem. Isso vale sobretudo, é claro, para os representantes de instituições político-económicas e culturais, mas não raro para o teórico masculino (razão pela qual as mulheres que fazem carreira nessas áreas sujeitam-se a duras provas de adaptação).
A divergência entre, de um lado, a acção objectivamente especializada que é inserida num contexto suprapessoal e, de outro, a personalidade subjectiva dela divorciada que se demora numa “esfera privada” tem seu correspondente directo no plano da determinação formal da sociedade. Pois do mesmo modo que o homem abstrai-se a si mesmo como pessoa em sua actividade objectivamente especializada, assim também as mercadorias produzidas como “coisas sociais” não são objectos materiais e sensíveis, mas abstracções “fantasmagóricas”, segundo o termo de Marx. Em ambos os casos, o componente sensível – o substracto empírico-subjectivo – é excluído da relação social. Simmel aliás chega ao ponto de desvelar aspectos de “despersonificação” no indivíduo masculino. Ele insinua assim qual o “ganho neurótico” que uma tal despersonificação do homem rende: poder e, supostamente, “soberania” (cf. Simmel, 1985, p. 207).
Simmel, porém, admite as diferenças existentes entre os sexos (não somente as biológicas) como “dados da natureza”. Em contraste ao homem cindido e não idêntico, ele vê a mulher quase como o indivíduo perfeito “em si”, que foi privado de seu poder de influência pelo desenvolvimento industrial. Com isto, o sociólogo obstrui, inclusive para si mesmo, toda solução crítica para a relação assimétrica e fetichista entre os sexos. Apesar de seu brilhante relato do vínculo entre os sexos, da maneira como ele se mostrava no início do século XX, Simmel não vê (seguramente condicionado pela época) que as capacidades, qualidades e condutas atribuídas a homens e mulheres são produtos de uma longa evolução do patriarcado do valor. A mulher não é o “indivíduo mais perfeito”, mas tão somente a outra faceta, tomada como inferior, da cisão patriarcal, e por isso um ser pelo menos tão reduzido quanto o homem.
Apenas à luz desse pano de fundo histórico e estrutural torna-se evidente o quanto é errado confirmar as mulheres em seu actual modo de ser ou mesmo redefinir como superioridade a sua posição de inferioridade e transformá-la em alternativa social, como é o caso de certas correntes feministas. Christina Thürmer-Rohr, em suas pesquisas sobre a “tese da cumplicidade”, destacou o modo como se manifesta a alienação da mulher. Ela critica sobretudo a eterna prontidão das mulheres (cuja origem está na socialização) de conformarem-se à realidade patriarcal por meio da identificação com sua existência limitada (cf. Thürmer-Rohr, 1989, pp. 143 e idem 1987, pp. 42) (15). Mas devemos salientar, por sua vez, que as “vantagens” neuróticas que as mulheres podem tirar de seus papéis são contrastadas hoje pela possibilidade de distanciamento feminino em relação a estes mesmos papéis. São as mulheres que, cada dia mais, tomam a iniciativa nos conflitos sociais objectivos surgidos entre os sexos, como revela o movimento feminista, cujo desenvolvimento se dá sob múltiplas formas.
Os mecanismos dominantes postos e mantidos em movimento pelo homem – mecanismos estes que se autonomizaram às suas costas – têm como consequência última produzir a própria “castradora” do homem. O patriarcado do valor foi obrigado a criar para si um refúgio onde pudesse resguardar-se de si próprio: a privacidade abstracta da família, a esfera de acção preferida da mulher. Ora, são os próprios mecanismos produzidos insconscientemente pelo sexo masculino que tornam esse refúgio tão precário a ponto de fazer esvair o “bem-estar” (patológico) dos homens e permitir às mulheres sacudirem o seu jugo. De facto, a própria inserção feminina no “trabalho” abstracto significa não apenas a crescente alienação (“masculina”), mas ao mesmo tempo a maior independência da mulher em face de seu papel tradicional.
Simultaneamente, o “perigo de castração” emana do próprio “trabalho” abstracto, que até agora agiu como doador de identidade. De facto, a onda de racionalização iniciada nas duas últimas décadas através de novas tecnologias e da globalização dos mercados não afecta apenas as mulheres com função remunerada (embora elas sejam as mais atingidas), mas também um número crescente de homens. Como não se trata mais de um mero desemprego “cíclico”, mas sim estrutural, também nesse sentido uma nova qualidade é alcançada. Ao mesmo passo, o absurdo e o poder de destruição do “trabalho” abstracto vêm a lume tanto subjectiva quanto objectivamente (crise ecológica). O próprio desenvolvimento tecnológico e estrutural torna cada dia mais obsoleto esse marco constitutivo da identidade masculina no patriarcado do valor. Em todos os níveis, também os homens são forçados a reflectir sobre sua identidade tradicional, seja ela pessoal e subjectiva ou social. O “trabalho” abstracto não pode mais ser o campo social pelo qual se orienta a identidade masculina. Os poucos movimentos masculinos já existentes, de resto, põem em questão os pontos de referência de sua identidade.
Não se trata, portanto, de desviar mais uma vez o problema social contido na “questão da mulher” para o campo dos “princípios” abstractos, para as universalidades masculinas. A “perda de dimensão sensível” das relações, reiteradamente lamentada por sociólogos como Ulrich Beck, não pode ser apreendida nem criticada se o problema básico das cisões patriarcais que caracteriza a sociedade de valor não ocupar o cerne da crítica. A actual problemática da sociedade global, como vimos, é o produto da longa história patriarcal e cristã-ocidental da socialização pelo valor. Essa forma que se tornou obsoleta não pode, entretanto, ser superada sem que a identidade masculina seja rompida. Toda tentativa (aberta ou velada) de subtrair-se tanto subjectiva quanto teoricamente a tal exigência e estender sobre a crise do valor o véu da neutralidade sexual está condenada ao fracasso.
Como a “questão da mulher” é tudo menos uma questão exclusivamente feminina, resulta por outro lado que se deve rejeitar a perspectiva na qual o “grupo” feminino (assim compreendido sociologicamente) apareça como simples “sujeito de interesses” ao lado de outros grupos sociais definidos, sendo tratado como um “grupo limite” ou quase como “classe” (ou substituto de classe, para os inspirados no velho marxismo). Isso não somente porque as mulheres constituem a metade da humanidade (o que já seria razão suficiente), mas porque, na questão feminina de hoje em dia, a problemática global da sociedade em crise encontra sua expressão. A crise social e ecológica do mundo é produto dos “potenciais de destruição do sensível” presentes na forma do valor; tais potenciais, por sua vez, resultam do mecanismo patriarcal de cisões que, histórica e estruturalmente, se encontra na base de toda esta relação.
A fim de alcançar uma outra “razão sensível” e uma correspondente relação social que não seja mais estruturada pelo valor, seria necessário também ultrapassar a civilização actual e de certo modo “recuperar” as cisões patriarcais (em seu nível de civilização atingido na sociedade mundial) para compor o relacionamento da espécie. A fim de enfrentar a crise de modo produtivo, há que se constituir uma “esquerda feminista” que tenha consciência tanto subjectiva e pessoal quanto objectiva e social do mecanismo de cisão. Um feminismo nesses moldes não se pode dar ao luxo de restringir-se às mulheres e ao movimento feminista. Tanto homens quanto mulheres têm de compreender que “nossa” sociedade é determinada pelo patriarcado e pelo valor.
Isso não exclui (ao contrário, torna ainda mais imprescindível) que as mulheres continuem a organizar-se autonomamente, nem que os homens tentem ganhar consciência de si próprios nos movimentos masculinos. O patriarcado, afinal, não se nos depara apenas como mecanismo externo; nós mesmos, homens e mulheres, somos o patriarcado, e o confronto directo entre os sexos é um dos aspectos centrais de sua crise. Mas além disso é urgente a luta feminista de ambos os sexos contra as formas de existência sociais, objectivadas e reificadas das cisões patriarcais produzidas pelo valor. A superação do patriarcado é ao mesmo tempo a superação da forma fetichista da mercadoria, pois esta é o fundamento da cisão patriarcal. O objectivo revolucionário seria portanto um grau mais elevado de civilização, no qual homens e mulheres sejam capazes de fazer pelas próprias mãos sua história, para além do fetichismo e de suas atribuições sexuais.
NOTAS
(1). “Princípio” masculino é utilizado aqui não no sentido de um modo de ser a priori do homem e da mulher, mas na acepção de um “fato” social de fundo cultural e histórico (ver abaixo).
(2). Ainda que tanto o trabalho doméstico como a educação dos filhos representem de certo modo o reverso do trabalho abstrato e não possam por isso ser apreendidos teoricamente com o conceito de “trabalho”, isso não significa que eles estejam absolutamente livres de aspectos instrumentais ou de normas “protestantes”. Eis por que a meu ver se deve procurar um terceiro conceito, com o qual se possa definir com mais precisão teórica a actividade tradicional da mulher na esfera da reprodução, já que o termo “actividade” é por demais difuso e possui um carácter excessivamente genérico. Além disso, por intermédio do conceito “actividade” poder-se-ia alimentar o velho mito da dona de casa ociosa. Essa questão, longe de ser irrelevante, não pode entretanto ser desenvolvida aqui. Na falta de tal esclarecimento, sirvo-me de ora em diante do insatisfatório conceito de “actividade” ao tratar do “trabalho” na esfera da reprodução.
(3). A bipartição do tema em socialização pelo valor e relação entre os sexos permitiu-me, de um lado, aderir nos principais tópicos à posição da revista KRISIS, mas, de outro, sentir um profundo mal estar no tocante ao tratamento teórico da chamada “questão da mulher”. Além disso, pude verificar que as mulheres apenas a custo se fazem ouvir pela redacção masculina da revista. O estímulo para o presente texto deve-se assim não aos homens do grupo, mas às discussões que, conscientemente, foram mantidas com mulheres à margem do raio de influência da KRISIS.
(4). Cf. Peter Klein, “Demokratendämmerung”, KRISIS, 11, pp. 189 ss. A problemática dos sexos ocupa o espaço de uma simples nota de rodapé. Algo diverso, obviamente, ocorre quando a relação entre os sexos é vista sob o prisma de um problema especial, como no ensaio “Freiheit, Gleichheit, Schwesterlichkeit”, de Norbert Trenkle, KRISIS, 11. Mas aqui também o problema dos sexos é tratado em vista da igualdade burguesa como princípio estrutural; a relação entre os sexos como princípio estrutural “autónomo” da sociedade burguesa e patriarcal não é levada em conta. Em que pese toda a crítica ao poder sexista, etc., tal princípio desaparece por trás de conceitos genéricos e sexualmente neutros, e subsiste assim, em última instância, como mero fenômeno de concretização.
(5). Ernst Lohoff, por exemplo, ainda insiste na recusa do conceito de patriarcado e reporta-se a seu argumento no artigo “Bruederchen und Schwesterchen”, KRISIS, 11. Cf. a nota seguinte.
(6). Como afirma Ernst Lohoff: “O termo ‘patriarcado’ funciona como fórmula resumida para referir o domínio arbitrário dos homens sobre as mulheres. É possível que tal noção tenha um certo valor propagandístico. Mas quando faz menção de integrar a teoria social, ela denuncia a si mesma no contato com a realidade das figuras do fetichismo. Todas as relações fetichistas contrapõem o homem à mulher, mas sujeitam ambas as partes de modo equivalente. Os homens não comandam um regimento patriarcal arbitrário, mas apenas executam (!) nas mulheres a relação fetichista de poder que é pressuposta. A coerção que exercem sobre as mulheres tem seu fundamento original não na vontade masculina, mas no princípio de síntese social que se encontra sempre pressuposto, anterior aos dominadores” (KRISIS, 11, p. 99). Sem contar o fato de que a cultura teórica feminista já tenha, em geral, ultrapassado uma noção assim crua de dominação como a suposta por Lohoff, nota-se aqui que o “princípio de síntese social” é superficialmente contraposto à relação assimétrica entre os sexos. A ideia de que a própria relação entre os sexos estruture o cerne do “princípio de síntese social”, como acredito ser o caso do patriarcado do valor, não pode assim vir a lume. Além disso, com tais figuras argumentativas, (e justamente numa situação histórica em que o embate entre os sexos está na ordem do dia), não é preciso que o homem ponha a si mesmo a questão. Ora, dessa forma ele estará, literalmente, reduzido a uma “marionete” do fetiche do valor.
(7). Os comentários críticos a diversos aspectos dos textos de alguns membros do grupo KRISIS não podem aqui ser levados adiante. No que segue não se procederá a uma discussão explícita com os artigos do KRISIS publicados até agora sobre a relação entre os sexos nem a um debate minucioso com as posições da pesquisa feminista; ambos ocorrerão, no máximo, marginalmente. Interessa-me apenas, sobretudo por razões de auto-esclarecimento, a primeira abordagem positiva de uma ideia básica que dispensa, de caso pensado, distinções meticulosas. Trata-se assim, de um esboço geral que, como rudimento, possui carácter provisório.
(8). Obviamente, não é que as diferenças biológicas entre os sexos sejam insignificantes. Em todas as culturas determinadas noções prendem-se às características biológicas dos sexos e procede daí a repartição de actividades. O modo de ver tais noções, porém, é extremamente variado de sociedade para sociedade, de tribo para tribo, e pode até ser contraditório. Em muitas culturas, além disso, existem três ou mais sexos. O sexo, portanto, é constituído socialmente (cf. Gildemeister, 1992). Nesse sentido, não é de todo aconselhável levar adiante as interessantes tentativas de lançar luz sobre a existência dos antigos matriarcados ou o “surgimento do patriarcado” (Gerder Lerner). No meu entender, é justo nesse ponto que o perigo de projecções anacrónicas é particularmente grande, e isso não apenas em vista das idealizações. Gerder Lerner, por exemplo, fala de “permuta de mulheres”, “objectivação da capacidade feminina de parir” e de aspectos análogos em sociedades anteriores à do valor. Padrões de reflexão surgidos apenas no patriarcado do valor são portanto transplantados a sociedades alheias à forma-valor. Tenho isso como extremamente problemático (cf. Lerner, 1991).
(9). O fenómeno da cisão específica dos sexos é manifesto, por exemplo, na análise do surgimento das ciências (naturais) no início da idade moderna, na investigação de projectos iluministas e seus esboços literários e, tempos depois, na pesquisa sobre a personalidade do cientista masculino e na prática psicoterapêutica. Mas também investigações empíricas sobre as tendências de diversos comportamentos morais em homens e mulheres ou na esfera da coeducação alinham-se com a tese avançada aqui (cf., entre outros, na fecunda literatura sobre esse tema, Richter, 1979; Bovenschen, 1980; Gilligan, 1984; Bennent, 1985; Nölleke, 1985; Norwood, 1986; Brehmer, 1988; Woesler de Panafieu, 1989; Bublitz, 1990; Kofmann, 1990; List, 1990; Welsshaupt, 1990). Em tais investigações, não raro se faz uso do método psicanalítico. Mesmo a tradicional marxista Frigga Haug comenta que as actividades e as condutas das mulheres são “cindidas e deslocadas (augelagert) do trabalho social em seu conjunto” (Haug, 1990, p. 91), embora tome como ponto de partida o velho conceito marxista de “ontologia do trabalho (total)”, no qual aquilo que se acha cindido deve ser reintegrado como “trabalho reconhecido”. Tal posição, naturalmente, está longe de uma “crítica do valor”.
(10). Aqui, porém, trataremos sobretudo da dimensão histórica e das formas de expressão social da relação entre os sexos no patriarcado do valor, a fim de designar os pressupostos genéricos para uma posterior explanação conceitual.
(11). Considero esta interpretação já “antiga” de Bovenschen como ainda muito esclarecedora, ao contrário de novas tentativas de explicação, como as de Gerhard Schormann. Schormann verifica (principalmente quanto à “função de bode expiatório”) pontos de contato entre os pogroms judeus na Idade Média, a caça às bruxas e o holocausto do nazistas. Essa comparação parece-me todavia um tanto superficial, pois não é capaz de explicar porque tal grupo – e por quais motivos – iniciou justamente em tal época a perseguição. Num comentário à parte, o autor considera desnecessário discutir os trabalhos científicos sobre o tema da caça às bruxas e debater as interpretações neles propostas (cf. Schormann, 1991).
(12). A caça às bruxas tem de ser vista em conjunto com os movimentos heréticos que, já no século XIII, transferiram à Igreja o ônus da legitimação. Muitas mulheres integraram os movimentos heréticos. Sabás, pactos com o diabo e cópulas com demónios só foram inventados no final de Idade Média. Não se trata porém de um resquício pagão. Infelizmente, não podemos nos deter aqui sobre os detalhes desse assunto (cf. Honegger, 1978, pp. 34 ss.)
(13). As consequências para o caráter social feminino que resultam das análises da mudança social, como as referidas por Beck, são tomadas em consideração por R. Gildemeister. Segundo ela, “ao lado do ensino dos padrões de acção vinculados aos sexos” surge também a “crescente possibilidade de reconhecimento da sua relatividade”. Isso, porém, “sem que se arranhe o fundamental princípio binário de construção do relacionamento entre os sexos”. Assim, com “a formação da ‘identidade sexual’ (…) existe hoje evidentemente um grande arsenal de conflituosidade nas mulheres, o qual em várias tentativas de definir com valor positivo o ‘caráter social feminino’ é apenas insuficientemente elaborado”. Apoiando-se em Hagemann-White, Gildemeister vê hoje o “(…) ‘caráter social feminino’ como uma definição ambígua, já que nele impera uma ‘tensão’” (Gildemeister, 1992, pp. 235 s.).
(14). Gildemeister também questiona tais interpretações em relação a “tendências individualizantes”: “A flexibilização superficial das atribuições sexuais, por exemplo, não é atrelada na mesma medida a uma abertura real dos campos de ação. As tendências individualizantes parecem ser parte de um processo de desenvolvimento social em que a visão dos factos sociais é nebulosamente distorcida, encobrindo a realidade predominante do embate entre os sexos e sua relação assimétrica (…). E, com isso, a liberdade sob condição converte-se em armadilha: as tarefas reprodutivas, por exemplo, são em grau ainda maior incumbidas às mulheres ou por elas já realizadas. Sob tais pressupostos, a polarização dos sexos conduz necessariamente a uma posterior politização da diferença entre os sexos” (Gildemeister, 1992, p. 236, grifos no original). Embora Gildemeister não partilhe de minha estrutura teórica da sociedade, sua tese comprova que não há de modo algum uma dissolução dos papéis sexuais nos últimos tempos.
(15). Nesse contexto, Heidemarie Bennent também critica as concepções de emancipação como as de Marcuse ou Richter, que mesmo nos tempos modernso vêem na “mulher” um ser menos alienado que o homem e transferem a ela, em última instância, o encargo de salvar a humanidade. Quanto a isso, Bennent enumera os aspectos negativos do caráter social feminino legado pela tradição. Os principais tópicos são os seguintes: sensibilidade, que tem lugar apenas nas proximidades da esfera privada, segundo o lema “amigos, amigos, negócios à parte”, acompanhada ainda de uma formação sofrível das capacidades intelectuais e de raciocínio; acentuado consumismo, que visa compensar a exclusão da esfera pública; recusa de pretensões próprias (“abnegação”), para contrabalançar a alienação do homem na esfera do trabalho; pendor ao conservadorismo e à aceitação do que lhe é dado graças a seu enclausuramento e à formação deficiente de suas capacidades intelectuais (cf. Bennent, 1985, pp. 227 ss.). Além disso, a glorificação do caráter social feminino como pretensa alternativa ignora totalmente que tal caráter, em razão das mudanças sociais, tornou-se ele próprio ambíguo nos últimos anos.
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Original Der Wert ist der Mann in http://www.exit-online.org. Publicado na revista Krisis nº 12, 1992, pp. 19-52. Tradução portuguesa de José Marcos Macedo (que agradece a Robert Schwarz pela ajuda na tradução de termos específicos) publicada em S. Paulo, NOVOS ESTUDOS – CEBRAP, nº. 45 – julho de 1996, pp. 15-36.
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28/8/2011
A ditadura do espaço
O título original que dei ao meu artigo para a Folha, domingo passado, era “Competitividade, ainda que tardia”, estabelecendo analogia com a frase da bandeira de Minas Gerais que abria o texto. Como o número de caracteres extrapolava as medidas específicas da coluna, tive de readaptar para “Ainda que tardia…”.
Diante do episódio, ocorreu-me que, em plena era de predominância da democracia e queda em cascata dos últimos regimes totalitários, vivemos insólita “ditadura” do espaço. E não é só nos meios de comunicação. Vejamos.
A distância, frontal e lateral, entre os bancos dos aviões é cada vez menor. Torna-se quase impossível posicionar a parte inferior da perna a mais de 90 sem atingir o passageiro da frente, ou comer com garfo e faca sem abalroar a costela de quem senta ao lado.
Talvez por isso, as refeições de bordo limitem-se aos biscoitos e sanduíches, para usarmos as mãos sem movimentar os braços.
Os novos apartamentos são muito pequenos. Ao se mudar recentemente para um desses, um amigo deparou-se com desagradável situação: seu São Bernardo não cabia na área de serviço.
Sugeriram-lhe amputar a cauda do pobre cão. Obviamente, não concordou. E já está tentando recomprar o velho sobradinho, no qual já foi assaltado algumas vezes.
Carros populares exageram na redução tridimensional do habitáculo. Uma pessoa com altura superior a um 1,90 metro, sem condições de adquirir veículo maior, andará a pé ou no transporte coletivo, no qual, aliás, cinco pessoas costumam dividir cada metro quadrado de ônibus, trem ou metrô. O trânsito, cada vez mais congestionado, é um reflexo da pequena dimensão de ruas e avenidas em relação ao número de pessoas e veículos.
Nas escolas, as salas de aula estão superpovoadas, com 50 alunos ou mais disputando posições para melhor visibilidade e audição do mestre.
E quando na sexta-feira à noite, para relaxar, vamos ao restaurante com a pessoa amada, o número de mesas cada vez maior torna muito difícil trocar uma confidência sem compartilhar o galanteio com os vizinhos.
O exemplo máximo do problema em nossa civilização, sem dúvida, são os apartamentos cápsulas de alguns países asiáticos. São “lares” de três metros quadrados.Um absurdo.
Pensando nesses e em outros aspectos, chego à conclusão de que o espaço nos jornais é muito generoso, porque exige objetividade de quem escreve o que não é fácil!
O mais importante é que não limita a sagrada liberdade de expressão, o que faz daimprensa um legítimo fórum para o debate de ideias.
Cabe a quem escreve adequar o infinito pensamento aos caracteres disponíveis. Por falar nisso, será que já ultrapassei o limite?
(Folha de S. Paulo – Domingo – 28/8/2011)
JOSUÉ GOMES DA SILVA escreve aos domingos nesta coluna.
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Saiu na Coluna do Elio Gaspari (FSP – 21/8/2011)
O golpe parlamentar do PT e do PMDB
A choldra perderá o direito de escolher metade da Câmara, mas ganhará a obrigação de enriquecer os partidos |
ENQUANTO O PAÍS vê o serviço de faxina da doutora Dilma, a comandita PT-PMDB, ajudada por discretos silêncios do PSDB e do DEM, prepara um golpe parlamentar de proporções inauditas desde que, na ditadura, baixou-se o Pacote de Abril de 1977. Essa jararaca de muitas bocas move-se há meses no escurinho do Congresso. Se ninguém fizer nada, a matéria será aprovada ainda neste ano.
O deputado Henrique Fontana (PT-RS) apresentou à Comissão de Reforma Política um anteprojeto que institui o voto de lista preordenada para a composição de metade da Câmara. O eleitor deverá votar duas vezes, uma no candidato e outra na lista. Além disso, pretende buscar na Bolsa da Viúva todos os recursos para as campanhas eleitorais, atribuindo às direções dos partidos a distribuição do dinheiro. A choldra pagará a conta toda, mas só escolherá metade de seus deputados.
Tudo o que há de ruim no atual sistema, ruim continuará. As coligações mudarão de nome, chamando-se federações. Para piorar, se um micropartido se juntar a outro, grande, bicará seus recursos.
Os defensores da jararaca dizem que a reforma destina-se a revigorar a democracia, fortalecendo os partidos. Tudo bem. José Genoino e Delúbio Soares, ex-presidente e ex-tesoureiro do PT, são réus na quadrilha que aguarda julgamento no STF. Roberto Jefferson, o cronista do mensalão, é o presidente de honra do PTB. Valdemar Costa Neto presidiu o PL. Alfredo Nascimento, defenestrado do Ministério dos Transportes, preside o PR. Baleia Rossi, filho do ex-ministro da Agricultura, preside o PMDB paulista.
O aspecto golpista do projeto está na maneira como querem votar a essência da proposta. Matéria dessa magnitude exige uma emenda constitucional, para a qual seriam necessários os votos de 308 deputados e 49 senadores. Querem descer o voto de lista e o avanço sobre a Bolsa da Viúva goela abaixo como projeto de lei, coisa que pode passar até mesmo com 129 votos na Câmara e 21 no Senado.
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Nelson Werneck Sodré
TRAPAÇAS DA MEMÓRIA
Está nas livrarias “Nelson Werneck Sodré – Entre o Sabre e a Espada”, um coleção de 21 artigos e depoimentos sobre o historiador comunista, cujo centenário de nascimento transcorre neste ano. Sodré foi militar e, passando para a reserva, chegou a general. Seu “Memórias de um Soldado” é certamente um dos melhores retratos da vida nos quartéis e das divisões políticas que envenenaram a tropa no século passado.
Há poucas semanas lembrou-se o centenário do nascimento do brigadeiro Francisco Teixeira, também comunista. Teixeira comandava a força aérea no Rio de Janeiro e a ele se deve a decisão de rebarbar a maluquice de um bombardeio do Palácio Guanabara em 1964.
Sodré e Teixeira foram cassados e presos durante a ditadura. Pareciam destinados ao esquecimento. Outro militar fez a trajetória inversa, tornando-se um dos mais poderosos generais do regime e a ele se deveu boa parte da concepção e da estratégia da abertura política iniciada por Ernesto Geisel em 1964. Parecia destinado à lembrança. Pois é. Hoje é o dia do centenário de nascimento do general Golbery do Couto e Silva, criador do SNI e chefe do gabinete militar nos governos de Geisel e João Figueiredo.
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Um dos artigos da Folha de S. Paulo de domingo (21/8/2011)
CARLOS HEITOR CONY
Metástase
RIO DE JANEIRO – A imagem é mais do que sovada: de tanta corrupção que funciona como um câncer no organismo da nação, penetramos naquele estágio quase terminal da metástase. Não é um órgão, o baço, o fígado, o pulmão, o seio ou a pele que contraíram o tumor maligno: ele se espalhou e sua cura é cada vez mais problemática -se é que há cura radical para isso.
Dona Dilma deu azar. Geralmente no período que é considerado como a lua de mel do governante sempre aparecem problemas, alguns graves, mas a corrupção só começa a fazer estragos letais da metade para o fim do mandato.
Bem preparada, movida por ótimas intenções e lubrificada por apoios consideráveis, Dilma possui todas as condições para executar o seu programa de governo, alguns dos quais estão se iniciando, mas de forma confusa. Numa reunião com a cúpula do governo, propõe e recebe propostas para erradicar a miséria, mas o telefone toca: alguém a avisa que o secretário-executivo de tal ministério está sendo preso pela polícia por alta corrupção. A ela só compete, inicialmente, pedir que não usem algemas, até que tudo seja apurado
A erradicação da miséria no país se transforma na erradicação das algemas. A reunião acaba brutalmente, cada qual vai examinar a própria consciência para ver se poderá ser o próximo.
A mídia e a internet estão congestionadas de mensagens e protestos contra a calamidade. Mas é pouco. Pensando nisso, a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) está propondo marchas populares nas principais cidades, fazendo a voz das ruas chegar aos escalões responsáveis. Foi assim no caso do impeachment de Collor.
E foi justamente a ABI, dirigida na época por Barbosa Lima Sobrinho, ao lado de Lavenère-Wanderley, então presidente da OAB, que botaram os caras-pintadas nas ruas. Todos sabemos o resultado.
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Um dos editoriais da Folha de S. Paulo de 21/8/2011 (domingo) – editoriais@uol.com.br
Escolha no Supremo
Dilma Rousseff indicará seu segundo ministro para o STF; influência positiva da Corte cresceria com um articulador mais conciso, claro e discreto
A escolha de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) pelo presidente da República é prerrogativa particularmente sensível. Afinal, trata-se de escolher alguém com mandato vitalício (até a idade de 70 anos) para figurar entre 11 guardiões da Constituição.
É, portanto, uma escolha definitiva. Precisa tomar em conta aspectos de personalidade, trajetória e convicções pessoais do indicado, que ainda necessitará de aprovação da maioria absoluta do Senado Federal. A gravidade e o ritual do ato serão reeditados em breve, com a escolha de um substituto para a ministra Ellen Gracie.
A indicação deveria partir de um diagnóstico sobre o STF. Quais aspectos precisam ser reforçados, quais corrigidos? Que tipo de jurista e com que carreira poderia contribuir mais para amplificar o papel positivo que o STF tem desempenhado na vida do país?
Com a aposentadoria de Gracie, a presidente Dilma Rousseff tem a oportunidade e a responsabilidade de indicar um ministro do Supremo pela segunda vez. Não há, contudo, indícios claros sobre seu diagnóstico acerca do STF.
A Corte, como é visível para todos, tem tomado decisões de grande repercussão na esfera política brasileira, um movimento que já foi chamado -quase sempre com ânimo crítico- de “ativismo judicial”. União homoafetiva, terra indígena Raposa/Serra do Sol, fidelidade partidária e verticalização das eleições são exemplos.
A interferência nas decisões políticas do país é saudável, sobretudo nos casos em que Legislativo e Executivo se omitem. Não pode, contudo, ser arbitrária. A conduta democrática implica que o STF justifique para a sociedade -de modo mais conciso e explicativo do que se acha nos votos e relatórios- a vinculação entre decisões e princípios constitucionais.
O Supremo exibe hoje uma de suas composições mais plurais, do ponto de vista ideológico, o que é positivo. Mas isso não pode redundar em falta de unidade ou clareza nas deliberações. Processos fundamentais -como nos casos Battisti e Ficha Limpa- foram decididos após situação de impasse na Corte e resultaram em fundamentações atabalhoadas. Com a impressionante prolixidade dos votos dos ministros, reduz-se a possibilidade de o cidadão entender e valorizar os julgamentos.
Seria importante que o próximo ministro viesse ajudar na confecção de decisões lapidares e bem fundamentadas, que de fato condensem a opinião majoritária do tribunal -e não um agregado confuso de opiniões minoritárias.
Para isso, ele ou ela deve ser um articulador, capaz de negociar e redigir votos que dialoguem com as preocupações dos colegas. Escusado dizer que, para exercer tal papel, sua trajetória deve despertar o respeito dos pares. Se oriundo do próprio Judiciário, deve ser capaz de expurgar motivações corporativas de seus votos.
Por fim, o ministro necessita ter consciência de que o ativismo do STF deve manifestar-se nos autos. Debates acalorados com integrantes do Executivo, articulação frequente com membros do Legislativo e pendor para entrevistas bombásticas não enriquecem o perfil desejável para o Supremo.
( A FSP chama de “diagnóstico” o balanço que ela sugere a ser feito no STF antes da indicação da pessoa que vai substituir a Ellen Gracie. Ela sugere uma indicação que se mantenha na modelagem de um Judiciário defensor de ideias, ações e interesses liberais.
E a FSP está certa relativamente ao diagnóstico, porém, ele deveria ser feito com indagações diferentes e mais aprofundadas do que as patrocinadas pelo jornal. Seria preciso uma espécie de balanço e de “faxina esquerdista” (não como a que está na última moda e em curso no Executivo) no Judiciário inteiro: dos pés do sistema (juiz de comarca) até a cabeça (STF).
A Dilma deveria escolher outra mulher, e nem precisa ser jurista ajuramentada em algum curso de Direito de universidade renomada. A Constituição garante à Presidenta que basta ter profundo saber jurídico, porém, a pessoa deveria vir de um perfil marxista, ser comprometida com a justiça e, obviamente, como determina a Constituição, ter uma indubitável reputação garantida e comprovadamente ilibada, sem nenhum vínculo invisível com a iniciativa privada ou com duvidosos interesses político-partidários, sobretudo ligada aos direitistas assumidos e aos atuais ex-esquerdistas que odeiam jornalistas. Há que existir alguém assim, sem interesses escusos e ilícitos em alguma universidade…
Teria de ser alguém diferente de alguns notadamente aplinistas sociais e profissionais que, com atitudes irrefutavelmente lacaiescas no STF, garantem o próprio futuro bilionário com rechonchudas aposentadorias pagas por nossos impostos e prósperos negócios providos pelos liberais.
Não é fazendo joguitos políticos e manipulando as Leis (mesmo que seja questionadas leis criadas em regimes ditatoriais) para agradar a elite da comunicação social e para atender aos apelos de um grupelho de pseudo-esquerdistas e novos ricos raivosos advindo de ex-partidos de esqueda que o Judiciário brasileiro vai se impor com respeito à sociedade. Isso custa caro para a reputação ilibada.)
Obrigada pelo seu comentário.