COMUNICAÇÃO | JORNALISMO | DEMOCRACIA | MÍDIA | CIDADANIA
1º/10/2012
“Liberdade de expressão é muito cara no Brasil”, diz jornalista Fábio Pannunzio
Crédito:Reprodução
Obrigado pela Justiça a retirar um post do ar e com novos custos para arcar, analisou e decidiu interromper a atividade. “Este é o último post do Blog do Pannunzio. Escrevo depois de semanas de reflexão e com a alma arrasada — especialmente porque ele representa um vitória dos que se insurgem contra a liberdade de opinião e informação”, assim começa seu relato. Leia a íntegra aqui.
“No Brasil, para você exercer totalmente seu direito constitucional, precisa ter estrutura, do contrário, vai morrer na praia”, disse. Pannunzio lamenta que seja preciso pagar tão caro por levar informações para a população e por “denunciar esses malfeitores”. “É uma amargura vê-lo [blog] morrer”, afirmou.
O jornalista não está muito otimista com as mudanças que possam ocorrer na legislação brasileira. Para ele, a questão da censura judicial ainda é parte “da nossa cultura”. “O país só vai mudar e amadurecer na medida em que a crítica for considerada positiva e parte do debate”, finalizou.
No ar desde 2009, o blog contém quase oito mil textos. O jornalista explicou que seu objetivo era manter um espaço de manifestação pessoal e de reflexão política. “Jamais aceitei oferta de patrocínio e o mantive exclusivamente às expensas do meu salário de repórter por achar que compromissos comerciais poderiam compuscar sua essência”, escreveu.
Antes do blog, o jornalista enfrentou apenas um processo judicial em três décadas de carreira – e ganhou. Desde o início do blog, ele recebeu uma “enxurrada” de processos. Entre os autores das ações estão o deputado estadual matogrossense José Geraldo Riva, “o maior ficha-suja do País”; uma quadrilha paranaense de traficantes de trabalhadores que censurou o blog no fim de 2009; e o secretário de segurança de São Paulo, Antônio Ferreira Pinto, “cuja orientação equivocada” transformou “a Rota naquilo que ela era nos tempos bicudos de Paulo Maluf”.
Ferreira Pinto, inclusive, é o autor do processo que motivou o encerramento do blog. O jornalista recebeu do escritório de advocacia que o representa o comunicando da decisão liminar de primeiro grau para retirada do ar do post “A indolência de Alckmin e o caos na segurança pública”.
De acordo com Pannunzio, o texto contém uma “crítica dura e assertiva” sobre os desvios da política do atual secretário e pelo governador, mas sem “afirmações caluniosas, injuriosas ou difamatórias”.
O jornalista explica que retirou o conteúdo do ar por respeitar a decisão, mas que irá discuti-la em juízo. O espaço e acervo continuarão disponíveis. Eventualmente, pode voltar a “dar pitacos”, mas a produção sistemática de textos está encerrada. “Espero voltar ao blog, quando perceber que o País está maduro a ponto de não confundir críticas políticas com delitos de opinião”, escreveu.
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Jornal paraguaio chama Dilma de “descarada ” e diz que discurso na ONU foi hipócrita
Reprodução
O editorial que tem como gancho o discurso da presidente na 67º Assembleia Geral da ONU, em Nova York, e destaca falas de Dilma em que ela diz que o Brasil tem sido firme para proteger a integração e a democracia na região. O texto destaca que a mandatária brasileira assume uma postura imperial de grande arbitrariedade na política regional.
“Por exemplo, quando um país como Paraguai submete seu presidente a um processo de juízo político de ‘mau desempenho de suas funções’ de acordo com o artigo 225 da Constituição, na visão da presidente esse Estado merece todo tipo de sanções”. O jornal cita o processo de impeachment sofrido pelo presidente Fernando Collor de Mello, em 1992, e ainda aponta o ex-presidente como base aliada de Dilma.
Lei proíbe imprensa britânica de tornar públicas acusações contra professores
30/9/2012
Governo traz limite técnico, diz jornalista
Trabalhar para o governo traz problemas técnicos e éticos, avalia o jornalista Ricardo Viveiros, 62.
Dono da empresa de comunicação que leva seu nome, ele completa, em 2012, 25 anos de atuação sem atender a esse segmento “por opção”.
Tecnicamente, diz, há a dificuldade de construir imagem para um cliente que muda a cada eleição ou mandato. Outros problemas são a falta de acompanhamento de desempenho e de transparência nos objetivos, diz ele.
“Prefiro manter a postura de jornalista”, diz Viveiros, que foi repórter de rádio, TV, jornais e revista.
A decisão, porém, limita o porte da empresa. A Ricardo Viveiros tem 30 clientes fixos e 50 funcionários (só a FSB tem 450).
Fonte: Folha de S. Paulo
7/9/2012
Ao ler essas declarações da professora de filosofia da Universidade de São Paulo (USP), lembrei-me de minha adolescência, quando, durante uma aula de geografia política, a professora, para explicar de forma simplificada o que era, na época, a guerra fria, disse, no meio da explicação de todo um contexto econômico, político e histórico-cultural, assim: “pessoal, é o seguinte: toda vez que aparecer no nome do país República Democrática não sei das quantas, é ditadura; e toda vez que aparecer a palavra ditadura, é democracia”. A despeito das perseguições político-profissionais a jornalistas — e não importa em que veículo esse jornalista perseguido atua —, o que é liberdade de pensamento, liberdade de expressão, imprensa livre, liberdade de imprensa para capitalistas, neocapitalistas, socialistas, sociais democratas e essa coisa que temos hoje no Brasil? E as outras “liberdades”? Como fica o direito dos cidadãos de ser informado e de jornalistas de informar a verdade? Por exemplo, a liberdade de noticiar denúncias contra políticos de qualquer tendência ou agrupamento político que se aventura pelos caminhos nefastos da corrupção?
Mídia, obstáculo à democracia
Marilena Chauí argumenta: sociedade democrática exige muito mais do que pensam os liberais; imprensa brasileira comporta-se como guardiã dos privilégios oligárquicos
(Também publicado no site da campanha Para Expressar a Liberdade)
No evento de lançamento da Campanha Nacional pela Liberdade de Expressão, realizado no dia 27/8, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a professora Marilena Chauí falou sobre democracia, e a sociedade frente ao poder e a manipulação da mídia. Leia abaixo a versão integral desta palestra:
I. Democracia e autoritarismo social
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.
Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la:
1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia ( igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?
3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
4. graças à idéia e à prática da criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita aos cidadãos instituir contra-poderes sociais por meio dos quais interferem diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, conseqüentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;
6. única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;
7. forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os principais traços da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da representação — o representante não é visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura temporal da ação política.
Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se da eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do capital; a economia e a política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços, privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio, aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.
II. Os meios de comunicação como exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.
Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc….
No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.
A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.
A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.
Enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio, na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver. O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária, educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir na vida. O principal especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros — em suma, o chamado “formador de opinião” e o “comunicador”.
Ideologicamente, o poder da comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e idéias, pois, dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais terríveis desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução Francesa, Hegel considerou que uma de suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade e da igualdade que definem a sociedade democrática.
III.
Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de lazer e cuidados corporais.
As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é exibida, os hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém: “o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou desagrada.
Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.
Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita slogans grandiloqüentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda é informação”.
Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda. Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.
Não é casual, mas uma conseqüência necessária dessa privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão.
É sintomático que, hoje, se fale em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido, isto é, que se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos.
Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”, portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.
É possível perceber três deslocamentos sofridos pela idéia e prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da idéia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social pela idéia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação. Esses deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo escreveu que o povo estava contra a opinião pública!
O caso mais interessante é, sem dúvida, o do jornalismo impresso. Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”, determinação da página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).
O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, freqüentemente, inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.
Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm conseqüências graves sob dois aspectos principais:
1) uma vez que o jornalista concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de um fato e a ser tomada como um acontecimento real;
2) os efeitos da concentração do poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a idéia de opinião pública. Hoje, porém, os conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.
Esses dois aspectos incidem diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão de credibilidade e plausibilidade. Rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública.
De fato, a desinformação é o principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais, no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de maneira a impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.
Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.
Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem conseqüências; existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a existência de um espetáculo e só permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua transmissão.
Como operam efetivamente os noticiários?
Em primeiro lugar, estabelecem diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite e buscando sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora: em seqüência, apresentam, no início, notícias locais, com ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com ênfase em crises e conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos (maremoto, terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem com as notícias nacionais, enfatizando as idéias de ordem e segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E, nos finais de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro, proteção a espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento de bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem, obrigado.
Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. Como desconhecemos as determinações econômico-territoriais (geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e as conseqüências dos fatos noticiados, não podemos compreender seu verdadeiro significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num mesmo tempo (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação, mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.
Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as imagens escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é o mundo.
A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia a própria realidade fica totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
Na perspectiva da democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa cósmica de informações. Ou seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já coletados.
Fonte: Outras Palavras
10/3/2012
“O Farol Paulistano” (1827-1831): as luzes da política nos primórdios da imprensa em São Paulo
Marco inicial da imprensa periódica em São Paulo, o jornal O Farol Paulistano veio a público em 7 de fevereiro de 1827 e encerrou suas atividades cerca de quatro anos mais tarde, pouco após a abdicação de D. Pedro. Seu proprietário e principal redator foi José da Costa Carvalho, futuro Marquês de Monte Alegre, que, apesar de baiano, fixou-se em São Paulo ainda jovem e ali costurou laços de amizade, família e negócios. Por sua terra natal, tomou assento na Câmara dos Deputados nas duas primeiras legislaturas, ao passo que por São Paulo foi membro do Conselho da Presidência e do Conselho Geral. Com a saída de cena do imperador, em 1831, tornou-se membro da Regência Trina Permanente, fato que talvez possa explicar o encerramento abrupto do jornal, ocorrido às vésperas da ocupação deste posto por Costa Carvalho, em 17 de junho deste mesmo ano.
No princípio, o Farol circulava uma vez por semana, passando a ser bissemanal em junho de 1827 e trissemanal em outubro de 1829. Impresso em tipografia própria situada no centro da capital paulista, onde hoje se estende a rua Líbero Badaró, o FarolFarol contava com quatro páginas, esporadicamente seis ou oito, que por sua vez compunham as partes básicas do jornal: o artigo principal, conhecido como “do interior”, as correspondências, as notícias nacionais e internacionais, os anúncios, as variedades e a seção de publicação de documentos oficiais.
O primeiro jornal paulista estava em estreita sintonia com a imprensa brasileira da primeira metade do século XIX. Isso significa que, muito mais do que um veículo de notícias, ele era um instrumento de luta política que procurava discutir temas cruciais para a época, tal como a instauração de um governo constitucional representativo. Com isso, desempenhava papel fundamental enquanto órgão doutrinador do posicionamento político dos seus leitores, de forma que o próprio vocábulo “farol” ensejava a ideia de iluminar, de esclarecer algo.
O Farol alinhava-se com a intitulada ala “moderada” dos liberais do Primeiro Reinado e início da Regência, grupo este que compunha a maioria da oposição ao governo de D. Pedro e que alcançaria o poder após a Abdicação. Com relação ao que atualmente chamamos de “linha editorial”, o Farol pode ser dividido, grosso modo, em três momentos que constituem menos uma cronologia rígida do que uma sucessiva incorporação e reordenação de princípios.
O primeiro deles delineou-se entre o início da circulação do periódico e estendeu-se, em linhas gerais, até maio de 1828. Teve como principais características a definição de um padrão de discurso, a busca por um espaço na esfera pública da imprensa periódica e a demarcação de um cenário político conflituoso, no limite bipolar, onde se debatiam “liberais” e “absolutistas”. O momento seguinte deu-se aproximadamente entre maio de 1828 e meados de 1830. A investida no conflito ideológico entre liberalismo e absolutismo refreou, ao passo que as críticas em relação ao Ministério – visto como arbitrário, anticonstitucional e inimigo do regime representativo – ganharam força. O terceiro e último momento perdurou da segunda metade de 1830 até o encerramento do periódico. A questão do “exaltamento liberal” – termo utilizado pelos próprios contemporâneos para designar uma postura política mais aguerrida, a qual dialogava com temas espinhosos como o aumento dos poderes provinciais, a supressão do Poder Moderador e a instauração da república – foi paulatinamente ganhando espaço, tornando-se um dos tópicos centrais da folha. Pela primeira vez, os opositores de O Farol deixaram de ser exclusivamente representados por aqueles elementos afinados com o governo de D. Pedro, para advirem do próprio campo liberal, situação que se materializou no debate travado com jornais “exaltados” como A Voz Paulistana. Tal confronto teve como pano de fundo três eixos centrais: a reforma constitucional, a federação e o republicanismo. Se em princípio qualquer um deles foi refutado pelo Farol, pouco a pouco, devido ao curso dos acontecimentos dentro e fora do Parlamento, o jornal de Costa Carvalho mudou de conduta e abriu espaço para discutir a plausibilidade dessas questões, procedimento que acompanhava a estratégia dos “moderados” em trazer para si as rédeas da conjuntura política do Império.
Os dez exemplares pertencentes à Brasiliana USP – um de 1827 e os demais de 1828 – correspondem aos dois primeiros momentos acima mencionados. Até meados de 1828 é possível notar a publicação de artigos maniqueístas e de alto teor político-pedagógico, a aproximação ou o afastamento em relação aos periódicos em circulação na Corte, e a fixação de uma leitura própria sobre o andamento dos negócios públicos do Império. Já em fins de 1828 as críticas emitidas pelo Farol tornaram-se mais substantivas, incidindo sobre pontos centrais do processo de organização do aparelho estatal e da discussão vinculada ao Parlamento como, por exemplo, a regulamentação das Câmaras Municipais e o início da elaboração do Código do Processo Criminal. Ao percorrer as páginas do nº 129 (12/07/1829) podemos encontrar, a um só tempo, um movimento acirrado de oposição à nomeação de um novo senador pelo Ceará, críticas ao jornal O Censor – tido como cúmplice do Senado – além de comentários sobre o novo ministro da guerra.
O Farol Paulistano consagrou-se como o periódico mais influente da província de São Paulo até 1831. Jornais de outras províncias, como a Aurora Fluminense de Evaristo da Veiga (Rio de Janeiro) e o Universal de Bernardo Pereira de Vasconcelos (Minas Gerais), extraíam trechos da folha paulista para reforçarem suas posições políticas, artifício que também se dava de forma inversa. O periódico de Costa Carvalho constitui, sem exagero, documento dos mais instigantes para o estudo da história política de São Paulo durante os primeiros anos do Império.
Lançada em São Paulo no mesmo ano que se realiza a Semana de Arte Moderna, Klaxon (1922-1923) é a primeira revista modernista do Brasil.
Em “O Alegre combate de Klaxon”, excelente introdução á edição fac-similar da revista, Mário da Silva Brito afirma que “em Klaxon aparece, sob forma de artigos, poemas, comentários, críticas de arte, piadas e farpas zombeteiras, o estado de espírito do grupo de jovens que elaborou a ideologia modernista”. Do comitê de redação, participam ativamente Menotti del Picchia e Guilherme de Almeida. Porém , ainda que a revista não o registre de forma explícita, sabe-se hoje, por intermédio de Aracy Amaral, que Mário de Andrade foi “diretor e líder da revista“. Mesmo assim, de um número para outro prevalece o espírito de grupo anunciado no texto introdutório : “KLAXON tem uma alma coletiva”. Essa apresentação tem todas as características de um manifesto e, embora venha assinada pela Redação, ela é, segundo Mário da Silva Brito, de autoria de Mario de Andrade.
Das diversas revistas modernistas que proliferam no Brasil dos anos 1920, Klaxon sem dúvida é plasticamente a mais audaciosa , a mais renovadora e a mais criativa, não só por sua belíssima diagramação , que lembra técnicas da Bauhaus, como pelas modernas ilustrações de Brecheret e Di Cavalcanti. Seu caráter cosmopolita é explícito: “KLAXON sabe que a humanidade existe. Por isso é internacionalista”[1]. A revista traz artigos e poemas de autores franceses, italianos e espanhóis , todos em suas línguas originais; é, além disso, poemas de Manuel Bandeira e Serge Milliet (que assinava assim na época) compostos em francês. Estes últimos são ainda influenciados por uma certa estética simbolista. Mas na revista predomina o tom futurista (“KLAXON não é futurista. KLAXON é klaxista”) e um desejo de abolir o passado para viver o presente, o moderno. Essa ânsia de atualidade leva os redatores a afirmarem que Klaxon “quer representar a época de 1920”, numa espécie de glorificação da sincronia.
A negação da realidade, em favor da arte como expressão cerebral e construtiva, aparece na afirmação: “KLAXON sabe que a natureza existe. Mas sabe que o moto lírico, produtor da obra de arte, é uma lente transformadora e mesmo deformadora da natureza”. São aqui retomados os postulados do criacionismo na relação arte/natureza, que Mário de Andrade absorvera através dos textos de Huidobro publicados em L’Esprit Nouveau.
Irreverente e sarcástica, Klaxon apresenta um perfil de típica agressividade vanguardista, conforme relembra Menotti del Picchia: “é uma buzina literária, fonfonando, nas avenidas ruidosas da Arte Nova, o advento da falange galharda dos vanguardistas”.
[1] Em Ramón Gómez de la Serna supôs acertadamente que Mário de Andrade era o fundador de Klaxon, e seu conhecimento do “desvairismo” leva a acreditar que teve nas mãos Paulicéia Desvairada, que começa com o célebre verso: “Está fundado o Desvairismo”.
Fabris, Annatersa. O futurismo paulista. São Paulo: Perspectiva, 1994.
Amaral, Aracy . A propósito de Klaxon. Jornal O Estado de S.Paulo – Suplemento Literário, São Paulo, 03 fev. 1968.
Brito, Mario da Silva. O alegre combate de Klaxon.Introdução fac-símile dos 9 números da Revista Klaxon – Mensário de Arte Moderna. São Paulo: Martins; Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo, 1976.
Jorge Schwartz é Professor Titular da Universidade de São Paulo e Diretor do Museu Lasar Segall.
27/2/2012
The Future of the Press
The report of Lord Justice Leveson’s inquiry can be a positive moment, promoting a better press and a free one
Lord Justice Leveson has one of the least enviable jobs in public life. His assignment is to adjudicate between the demand for privacy and the principle of free speech. He must do so against the backdrop of a public outcry, an unfinished criminal investigation and a galloping technological revolution.
He has taken evidence from comedians making serious points and some serious people behaving like comedians. He has heard many different arguments. Today, the inquiry is hearing from The Times. This seems the appropriate moment to make clear to our readers the newspaper’s view on the future of the press.
We make two points above all. The first is that we believe in the freedom of the press and argue that preserving this freedom requires resisting any form of statutory regulation. The second is a more ambitious, optimistic argument. The report of the Leveson inquiry, for all the inauspicious circumstances of its establishment, can prove to be a positive moment, one where Britain gains both a better and a freer press.
It can ensure that newspapers treat people better; it should take a firm view on questions such as prior notification, the publication of corrections and the independent oversight of the press. It must also ensure that the pursuit of stories in the public interest is more robustly protected, with a clear defence that applies to all the laws that govern information gathering.
The phone-hacking scandal
The phone-hacking scandal has exposed a number of unpleasant truths about the press. It appears that the News of the World routinely used illegal means to unearth stories of questionable, if any, public interest.
As the evidence of wrongdoing came to light, News International, Rupert Murdoch’s company that also owns The Times, was unable or unwilling to police itself. This was a disgrace.
It was, of course, the press that put Fleet Street in the dock. The dogged investigative reporting that unearthed the phone-hacking scandal deserves respect, even if the story was exaggerated and key details misreported. The Leveson inquiry was a necessary response to the public indignation over the phone-hacking scandal and the broader concerns about privacy and the power of the press.
Freedom of speech
The starting point of The Times is that liberty is guaranteed by freedom of speech. A free press and a people free to express themselves are the best checks on the behaviour of the rich and the powerful. The value of journalism is to tell many people what few people know. The public has more to fear from secrecy than to gain from privacy. A muffled press does not make for a quieter world, but for a cacophony of rumour.
This newspaper is therefore an unrelenting advocate of press freedom. It is an implacable opponent of government oversight — direct or indirect — of the press. Journalists should question politicians, not answer to them. There should be no price for critical coverage, no prize for currying favour. The Times never wants its journalists to walk into Downing Street, or any other government office, thinking that it would be prudent to stay on the right side of the minister.
This translates into a deep-seated opposition to any form of state regulation of the press. If any future regulator is run, overseen, empowered or appointed by government, then politicians will loom over the press.
A statutory backstop to independent regulation would either be meaningless or it would mean government regulation. And even a rewriting of the regulatory system recognised by an Act of Parliament has its dangers: a Leveson Act would give Westminster a mechanism for legal control over the press. If MPs decide they do not like the press they are getting, they could easily amend the Act. It gives politicians a foot in the door.
The internet
There is another, more practical reason to avoid state regulation. The ground is shifting. So much news is not published by newspapers, but put out on the web by people who are free, unregulated and largely beyond the reach of the law.
The obvious danger for Lord Justice Leveson is that he tackles the printing press, just as its power is waning, but skirts the issue of the internet. This could further disadvantage professional newsrooms: newspapers may well have a smaller readership than a blog, a tweet or a Facebook page, but still have to cross a higher threshold to publish. It would also make the whole exercise of the Leveson inquiry redundant — like issuing a road safety manual for the horse and carriage the same year that Henry Ford brings out the Model T.
The public and the press
That said, it is clearly time for a meaningful intervention rebalancing the relationship between the public and the press. There needs to be a new set of rules put in place to ensure that newspapers treat people better.
People who are misrepresented or mistreated by newspapers deserve quick and easy access to a meaningful form of redress. Corrections should be in a regular, prominent place. Editors should be willing to remedy a substantial mistake on the front page by at least flagging a correction on the front page. And it would be helpful if the regulator posted newspaper corrections on its website and circulated them to all editors and newsdesks.
Newspapers should contact the person or institution that they are writing about before the story runs. This is for reasons of decency — it is better to tell something unpleasant to someone’s face than go behind their back; it is for reasons of accuracy — you want to know their side of the story; and it is for reasons of fairness — it gives them a chance to inform friends, family and colleagues of negative coverage to come.
Editors must be able to justify intrusions into any individual’s private life made without prior notification. Such notification should be considered best practice, rather than be made obligatory. This is not just because obligation might produce a surge in attempted injunctions. It might also make it impossible to publish: for instance, the subject of the story could switch their phone off, meaning the journalist cannot notify them and the paper cannot publish.
Independent regulation
A new set of rules requires a new guardian of the rules. The regulator of the press needs to have the confidence of the public. And this simply does not exist at the moment.
There has to be a major change. We propose a move from self-regulation to independent regulation. Journalists cannot go on marking their own homework. News organisations can no longer set the rules of the regulator or appoint the people on it. Their only role must be to pay for it, and to respect its judgment.
The new regulator needs to be more than just a clearing house for complaints: it needs to have investigative and punitive powers too. This means launching inquiries where there is credible third- party evidence of wrongdoing. Where the regulator’s findings suggest illegal behaviour, it should refer the news organisation to the police or any other relevant statutory powers. And punitive powers mean the power to fine.
The new regulatory system needs to sound in the pocket of proprietors. There are several ways that this could happen, each of which needs to be explored: regulated newsrooms could be guaranteed zero-rated VAT on their products, both in print and in digital; they could sign a commercial contract binding themselves into the new arrangement; or the advertising industry, which itself boasts the Advertising Standards Authority, could be persuaded to agree to a reciprocal arrangement in which publishers and advertisers support each other’s codes and regulators. The link with advertising, crucially, would apply to internet sites seeking to make money.
There could be other incentives worth exploring. The new regulator might provide a mechanism to resolve disputes on issues in libel law, as well as privacy. This could provide easy access to quick remedies and, for all sides, cheaper justice.
The public interest
These measures, for all their advantages, carry a danger that Lord Justice Leveson will wish to avoid. They could produce a chilling effect on press freedom, empowering only the company with bottomless pockets and the rich individual with a limitless appetite for complaints. So it is important that the inquiry also provide a robust defence for reporting in the public interest.
In the absence of a First Amendment — the part of the US Constitution that forbids Congress from abridging freedom of the press — the principle of being able to report and comment has a great tradition in Britain but little legal protection.
Journalists have undermined their own case by failing, very often, even to attempt to make the public interest case for the stories that they publish. Lord Justice Leveson has every right to insist that in future they do.
It will always be a matter of judgment whether, say, Sir Fred Goodwin’s affair with someone who worked for him at RBS was an important story about his conduct as a chief executive or nobody’s business but his, hers and his family’s. An editor must make that judgment and be able to defend it, if necessary, to a regulator or a court, balancing the power and influence of the individual concerned against the level of intrusion and the methods used.
It is essential that the press be given greater power to safeguard freedom of expression through a more widely enforceable public interest defence. The public interest does not simply mean interesting to the public, but something in which the public has an interest, something in which the public has a stake. Journalists should be able to make a public interest defence when they report criminal activity or threats to national and local security; when they try to expose corruption, dishonesty, hypocrisy and ethical wrongdoing; when they reveal the true behaviour of organisations, institutions and individuals of power and influence; and when they enable the public to make more informed decisions about their lives.
Lord Justice Leveson must see that this public interest defence applies to all laws that affect information gathering. As things stand, there is a public interest defence to blagging, but not hacking; to privacy infringements, but not bribery.
Looking back over the past decade, it is clear that the biggest failing of the press has been to tell its readers too little, not too much. In examining the alleged threat posed by Iraq in the run-up to war, in reporting the calamitous risks taken by banks before the financial crisis and in understanding the dysfunction at the heart of British government for much of the decade, newspapers did not delve nearly deeply enough. The greatest danger today is that the phone-hacking scandal results in a new set of rules that misses the bigger point. The public deserve to know more, not less.
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Fonte: The Times
A História e o saber crítico de Alberto Dines
Texto de Arnaldo Grizzo Filho e Arnaldo Schor
Observatório da Imprensa: “O ápice do meu trabalho”
Algumas bancas de jornais permaneciam abertas na Vila Madalena e as luminárias começavam a acender. O trânsito caótico virou doença crônica da cidade de São Paulo, mas às seis e meia da tarde é infernal. Isso incomoda muito mais quando se está nervoso, cheio de insegurança e com medo de perder a hora.
Um Gol verde estaciona em frente aos Jornalistas Associados, na rua Laboriosa. Descem três garotos. Tensos, fumam um cigarro antes de bater à porta. Conversam um pouco, acertam os últimos detalhes e executam o difícil ato de tocar a campainha. Um vulto passa pela janela da frente da casa. Abre-se a porta. “Vamos entrando”. Um senhor de cabelos grisalhos os recebe cordialmente, mas sem cerimônias, e aponta uma sala onde estivera trabalhando ao computador. Sentam-se e começam a tão cobiçada entrevista.
Antes, pela manhã, contataram o senhor Alberto Dines para confirmar o horário do encontro. O susto foi grande: “Tá tudo errado! Esses professores não estão fazendo o trabalho direito, mandam os alunos fazer entrevista atrás de entrevista. Aí o jornalismo vira isso: só se reproduz o que o outro disse. Ninguém mais fica parado num farol observando as coisas. Estudante não me entrevista mais. Essa vai ser a última vez. Bom, cheguem por volta das seis e meia”. E lá estavam os três, no horário combinado, sentados em frente a um jornalista de renome. Não podiam titubear, o tempo concedido era pouco. Logo começaram, meio engasgados, é verdade. Mas rapidamente ficaram à vontade.
De repente toca o telefone, pela primeira vez. Mau sinal. Dines atende e diz que sairia em pouco tempo. Retomam a conversa. Apressam-se as perguntas. O maldito toca novamente. Ele torna a dizer que logo sairia, que estava terminando de dar uma entrevista. Desta vez falava com a irmã. Faltava abordar alguns pontos. Recomeçaram. O relógio de parede bate sete. Sete e meia. Oito. “Acho que é isso”, finaliza um dos rapazes. Como Dines mesmo diria, eles vão agora reproduzir o discurso alheio.
Alberto Dines, 67 anos, jornalista desde 1952, consagrou-se ao assumir, na década de 60, a redação do Jornal do Brasil, quando foi um dos principais responsáveis pela reforma por que passou o jornal. Depois disso, trabalhou em outras publicações, incluindo Folha de S. Paulo e Pasquim. Exatamente na Folha, em 1975, depois de um ano como professor convidado na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, começou a escrever o “Jornal dos Jornais”. Era a primeira coluna de crítica à imprensa no Brasil e o início do seu trabalho em media criticism. Por que o interesse pelo tema? Tudo depende da visão que Dines tem do trabalho jornalístico. Para ele, o jornalista é um observador da realidade e deve ter grande capacidade de contestação. É um analista da sociedade, capaz de ver o que está certo e o que não está.
Ele continua criticando. Quem é o alvo? “O sistema”. Desde os leitores até os jornalistas. “Como os jornalistas não alteram o sistema, os leitores podem ser incentivados a recusar o tipo de mensagem que estão recebendo”. Como esse trabalho está repercutindo? “Muito bem. Devido ao número de inimigos que consegui…”. Quando começou, em 75, dizia coisas extremamente arrojadas para a época. Agora virou premissa. “Você vai a um seminário qualquer e vê jornalistas fazendo críticas à mídia, o que seria impensável há 24 anos”.
Hoje, vive o que chama de “o ápice do meu trabalho”. O Observatório da Imprensa já tem mais de três anos na internet e, em maio, completou um ano como programa de televisão. Dines diz que o Observatório é um espaço para reflexões. E tem motivos reais para se gabar: ninguém tinha feito metajornalismo com este formato ainda.
O Frias disse: “Você vai criar inimigos”
“É, a gente vai aperfeiçoando… As coisas aconteceram por acaso. Eu vim com a idéia de tentar desenvolver aquilo que tinha visto nos Estados Unidos. Quando o Frias me convidou para trabalhar lá (na Folha de S. Paulo), eu disse: ‘Quero fazer mais uma coisa além do que a gente combinou, mas não quero ganhar um tostão a mais’. Expliquei meu projeto. Ele retrucou: ‘Isso vai te dar problema, você vai criar muitos inimigos’. Mas insisti. O Jornal dos Jornais tinha muitos erros. Era a crítica dentro do próprio veículo e estávamos na época da auto-censura. Foi muito complicado. Eu estava sozinho, não tinha acesso a todos os jornais e não via todos os noticiários na televisão. Naquela época não havia o conceito de ombudsman. Mas teve um efeito extraordinário. Quando o governo fez pressão em cima da Folha, o Jornal dos Jornais foi mencionado, ele incomodava. Eu continuei, mas em 77 a coluna acabou. O jornal não tinha tradição e eu não estava preparado para fazer a crítica científica. Intuitivamente fiz algumas coisas. Aquilo era, sobretudo, uma espécie de tribuna para você pegar o governo, pegar a censura”.
Tudo isso culminou no Observatório. A idéia surgiu a partir do Labjor, o Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo da Unicamp, do qual Dines é um dos idealizadores. “O Labjor foi criado para atuar em três frentes. Uma dentro da universidade, não para graduar jornalistas, mas para dar cursos de pós-graduação e especialização. A segunda atividade é voltada ao mercado de trabalho, fazendo projetos e programas de treinamento. O terceiro eixo, onde entra o Observatório, é a atuação junto à sociedade. Então, escrevi um artigo e pusemos num site. Mas era estático. Pensamos: ‘Não, não pode, tem que ter periodicidade’. Fomos descobrindo sozinhos. Até que eu decidi que seria quinzenal. Foi todo um processo de evolução”.
“Não ganho nada e perco dois fins de semana”
Dines é a cara do Observatório. Quer queira, quer não, é difícil dissociar um do outro. Mas ele diz que não é o dono da crítica. “O Observatório é amplo, tem cem pessoas colaborando em cada edição. Esse é o nosso avanço. Não é personalizado, não sou eu. Eu dou a minha opinião. Existem dez, vinte, trinta pessoas fazendo isso também. Não há ninguém que diga: ‘Eu mandei um comentário e não foi publicado’. Não é publicado quando é ofensivo, ou se é um comentário que não diz respeito à imprensa. Isso não sai”. Entretanto, no Observatório, não se adota uma linha única? “A gente tem o maior cuidado com a nossa postura. Nem no programa, nem no site, há uma linha. O Observatório está aberto a todos. Quem quiser que diga o que quiser, desde que não ofenda”.
O que ainda falta no Observatório? Para ele, só dinheiro. “Não ganho nada e perco dois fins de semana por mês por causa do Observatório. Só quatro pessoas recebem, e uma miséria. Deveria haver recursos, não para que eu ganhasse, mas para chamar mais gente, bons jornalistas que recebessem para escrever. Hoje você tem jornalistas que estão com a mão na massa, trabalhando em jornal, sem tempo para se dispor ao idealismo porque precisam sobreviver. Temos dois anunciantes. No dia em que tivermos pelo menos uns quatro vai dar para pagar as pessoas”. Segundo ele a receita é simples: “Eu precisava parar uma semana, alguns dias e sair, rodar a bolsinha e procurar anunciante”.
O subtítulo do Observatório é “Você nunca mais vai ler jornal do mesmo jeito”. E a TV? E o rádio? “Não teve outra forma. ‘Você nunca mais vai ver a mídia do mesmo jeito’, não ia soar”. Mas parece, realmente, que se privilegia a análise da mídia impressa. “O jornal impresso dá o formato da mídia. Ele é o princípio e o fim; ele pauta e é pautado pelos outros. Trata-se do veículo elementar. Sem dúvida, com mais dinheiro, contrataríamos sujeitos com televisões em casa para acompanhar todos os noticiários. Outra idéia seria desenvolver um programa com as escolas de jornalismo, que fariam comentários em cima da imprensa eletrônica. Mas precisaria de dinheiro para pagar um monitor que coordenasse esse trabalho. Por enquanto, o impresso é mais acessível. Mas também é mais importante”.
“É uma escala de valores revoltante”
Se existe um modelo ideal de jornalismo, para ele, é o americano. “Chegam as eleições e, no editorial, eles dizem: ‘Vamos apoiar o candidato tal por isso e isso’. Apoiam no editorial, não no noticiário. Aqui, os jornais manipulam”. Então, o problema é a falta de isenção? Existe ainda a trivialidade, a inconseqüência. “É uma escala de valores revoltante. No Domingo seguinte à desvalorização do Real a Folha deu uma chamada de primeira página dizendo: ‘Olha, a desvalorização vai afetar o preço dos produtos importados, então preparem-se, porque o vinho francês e as viagens ao exterior vão ficar mais caras’. Dois exemplos de Maria Antonieta. Eles acreditam que o leitor é um imbecil”.
Um grande problema do jornalismo não seria a empresa jornalística?
Segundo Dines, não. “O New York Times, melhor jornal do mundo, dá lucros espetaculares”. O lucro é legítimo, permite o investimento. Entretanto, não se pode esquecer dos pressupostos da atividade jornalística. “Um serviço público tem compromissos com a sociedade, com a educação. Então, o jornal tem que encontrar um meio de ganhar dinheiro sem se envergonhar disso”. Mas não fica muito fácil cair numa postura tendenciosa e interesseira? É difícil saber até onde vai a autocrítica e a capacidade que os jornais têm de se envergonhar de alguma coisa.
A imprensa piorou. (…) É o sistema.”
“Acho que a imparcialidade não existe, mas você não pode se esquecer de que hoje a imprensa exerce um papel político e que deve tentar a isenção. Para isso, o importante é criar um conjunto de opiniões diversificadas. Um jornal deve apresentar estas opiniões e assumir na hora H. Para isso serve o editorial. Agora, quando começa a se manifestar na manipulação da informação, numa manchete carregada para um lado ou para outro, aí eu acho calhorda”.
Há outros problemas. E a falta de maturidade de muitos jornalistas? Também. “O jornalista deveria se formar e depois ir, por exemplo, para Presidente Prudente. Trabalharia na Tribuna de Presidente Prudente como ilustrador, repórter, fotógrafo… Depois de adquirir experiência, viria para Ribeirão Preto. É assim nos Estados Unidos. Você vem vindo, vem vindo, até que chega no New York Times”. Há também o ensino acadêmico neste processo de formação profissional. “Sempre defendi o diploma obrigatório. Entretanto, as escolas não aproveitaram a obrigatoriedade para criar um novo padrão de jornalismo. São um reforçador do mercado. O correto seria se contrapor a ele, no sentido de preparar gente que viesse com disposição de mudar”. Então o diploma obrigatório não é essencial? “Não, não é. Eu sou um jornalista razoável e não tenho o científico. Mas é melhor que exista a escola, desde que orientada a ajudar na preparação desse profissional, que tem uma função muito especial. O jornalismo é também um estado de espírito. As escolas precisam estimular isso”.
Se a crítica existe é porque as coisas não vão bem. “A imprensa piorou, ficaram muito visíveis as falhas. Visíveis a olho nu”. De quem deve partir a mudança? “Não adianta querer personalizar. É o sistema. Deve vir da empresa, do administrador, do chefe e dos profissionais”.
“A imprensa não pode dar sempre a última palavra”
“Precisa de incrementos jurídicos”. Do jeito que está não pode ficar. A gente vê muitas aberrações por aí. Essa história de Escola Base já cansou… “Que seja no código penal… Sei lá, onde couber. Isso é obrigatório, tem em todo lugar. Não sei se deve levar o nome de lei de imprensa. O código penal, ou outro código qualquer, deve conter mecanismos para regular a imprensa. É claro que os donos de jornais não querem nenhum tipo de regulamento. No mundo de hoje, a imprensa, a empresa jornalística, está se expandindo muito rapidamente em atividades que não são próprias do jornalismo e transformou-se em um negócio que não era a sua finalidade”.
O ombudsman, então, não serve? “Serve e tem a maior importância”. Ele afirma que existem vários estágios. Um deles é a ação jurídica. “Ombudsman não vai falar em direito de resposta: ‘Não, fulano de tal precisa ter dois centímetros de resposta’. Quem diz é o juiz. O sistema de contra-poder começa com a sociedade discutindo a mídia e o ombudsman fazendo a análise dentro do jornal. Sozinho, nenhum destes elementos funciona. Necessitamos de regulamentos. A imprensa não pode dar sempre a última palavra. Está provado que ela não exerce uma atividade insuspeita”.
Um jornalismo coerente é possível. “Basta que o autor da matéria, quem fez o jornal, questione se está fazendo corretamente. Ao criar essa pergunta interior, estaremos dando um passo. Claro que tem muita gente cínica que faz uma manchete destorcida e vai dizer que foi correto. Mas, se analisarmos nosso trabalho de acordo com valores éticos, as coisas podem melhorar”.
“Há um filme muito interessante”, dizia ele, referindo-se a O Quarto Poder. Mas Dines não concorda com o apelido: “Decididamente não é. Não é mesmo. Se os jornais baseiam todas as suas decisões nas pesquisas de opinião, o quarto poder não é a imprensa, são os institutos de opinião pública. Veja, não é o público, porque o instituto pode manipular. A coisa se diluiu em prejuízo da imprensa. Ela abriu mão de ser o quarto poder, mas ainda tem condição de ser o quinto ou o sexto”.
Fonte: O Xis da Questão
19/2/2012
Trabalho Intelectual, Comunicação e Capitalismo
A re-configuração do fator subjetivo na atual reestruturação produtiva
César Ricardo Siqueira Bolaño
O final do século XX trouxe à luz uma transformação fundamental na história da espécie humana, que alguns puderam detectar, mas não explicar completamente. Trata-se, por certo, de uma reestruturação profunda do capitalismo, induzida pela revolução microeletrônica, que provoca um aumento inusitado das assimetrias e da exclusão. O caráter intrinsecamente contraditório de todo desenvolvimento capitalista abre, não obstante, possibilidades de ação transformadora. A tendência ao apagamento das fronteiras entre trabalho manual e intelectual – que age fundamentalmente hoje no sentido da constituição de uma inteligência coletiva a serviço do capital – carrega também a possibilidade de dissolução do Sujeito filosófico nos sujeitos históricos, classistas, abrindo novas perspectivas de liberação. Urge fazer a crítica da economia política do conhecimento.
Reestruturação Capitalista, Subsunção do Trabalho Intelectual e as Novas Indústrias da Comunicação.
O Capitalismo dos séculos XVIII e XIX era um sistema de mercados basicamente concorrenciais, em que os diferentes capitais individuais eram obrigados a aceitar níveis de preços e salários, determinados segundo um modo de auto-regulação pelo próprio mercado, o que tornava possível a existência do Estado Liberal, não intervencionista, ocupado exclusivamente com as suas funções clássicas de manutenção da ordem e das condições gerais externas necessárias ao processo de acumulação do capital, sem interferir diretamente sobre esta última. Um Estado que garantia, por outro lado a sua legitimidade a partir da existência de uma esfera pública, que Habermas (1961) classifica como crítica e restrita, na medida em que o acesso a ela era limitado por critérios de propriedade e educação. Os debates públicos que a animavam pressupunham a existência do que o autor chama de “jornais políticos”, sobretudo a partir do momento em que, com a efetiva constituição do Estado Liberal, aquela esfera pública, originalmente literária, acaba assumindo importância crucial na própria estrutura daquele, que a incorpora formal e explicitamente como instância de poder.
Mas o capitalismo apresenta uma tendência inelutável à concentração e à centralização, que levará, na virada do século XIX, ao surgimento da grande empresa capitalista, da sociedade por ações e do grande capital financeiro, que garante a articulação entre a banca e a indústria, potencializando a acumulação, o que transforma profundamente o sistema, inaugurando a sua fase chamada monopolista, onde prevalecem mercados organizados sob a forma de oligopólios. Do ponto de vista da regulação de preços e salários, o Capitalismo Monopolista caracteriza-se pela permanência de rigidezes, que exigem a presença de um Estado intervencionista contraposto aos interesses dos grandes capitais e, simetricamente, dos grandes sindicatos. Estes últimos são também fruto da concentração e centralização do capital, que leva à criação de enormes coletivos de trabalhadores.
No que se refere ao progresso técnico, a passagem ao Capitalismo Monopolista está ligada ao desenvolvimento de uma nova matriz tecnológica, da qual fazem parte o motor a combustão interna movido a petróleo, a metalurgia do ferro e do aço e todas as inovações que irão se desdobrando ao longo do século XX, garantindo a expansão territorial e setorial do sistema. Marx dá uma relevância fundamental, nesse processo, que analisa na sua origem, ao momento da “produção de máquinas por meio de máquinas”. A idéia é que o elemento central da Revolução Industrial original, a passagem da subsunção formal à real do trabalho no capital, realizada pela máquina-ferramenta, que desqualifica e substitui o trabalhador especializado do período manufatureiro, não se havia completado até o momento em que as próprias máquinas fossem produzidas industrialmente e não pela manufatura ou o artesanato.
A esta passagem, que potencializa brutalmente a expansão do capitalismo, permitindo a construção de máquinas “ciclópicas” e das ferrovias que vão cortar o planeta, levando aquele modo de produção a todos os recantos, podemos chamar de Segunda Revolução Industrial. Ela está na origem das disputas imperialistas que levaram às duas guerras mundiais. O aspecto tecnológico envolvido, como na Revolução Industrial inglesa original, é central basicamente porque permite o avanço da subsunção do trabalho. Esta é a chave para a compreensão do processo. A subsunção real do trabalho significa que o trabalhador perdeu a sua autonomia e o controle que tinha sobre o processo de produção, cuja estrutura e ritmo passam a ser ditados pela máquina. Esta condensa o conhecimento que o capital extraiu do trabalhador artesanal no período da manufatura e desenvolveu, com o apoio das ciências. Assim, é a máquina que passa a usar o trabalhador – e não mais o contrário – e o capitalismo pode expandir-se, revolucionando o modo de produção.
Uma das inovações principais daquela segunda fase do capitalismo foi a implantação da chamada organização científica do trabalho, conhecida pelo nome de taylorismo, em homenagem ao seu fundador, e a criação da linha de montagem fordista. Aquilo que muitos autores chamam de paradigma taylorista-fordista de produção nada mais é do que a produção em massa, inclusive de bens de consumo duráveis, reunindo um contingente enorme de trabalhadores que, nessas condições, organizar-se-ão também em sindicatos e em partidos de massa, para reivindicar participação nos brutais ganhos de produtividade que o novo modelo de produção enseja. Apoiados no poder de barganha que lhes dá a sua concentração nas grandes plantas industriais do capitalismo monopolista e nos ganhos de produtividade que elas trazem embutidos, os trabalhadores realizarão as suas grandes conquistas sociais, materializadas na redução da jornada de trabalho e em níveis salariais crescentes, sobretudo a partir da Segunda Guerra Mundial, quando o sistema entra numa trajetória ascendente inédita.
Na verdade, o período de crescimento do pós-guerra, apoiado, por outro lado, por um Estado intervencionista poderoso, nos principais países capitalistas, capaz de, numa situação de elevadas taxas de crescimento econômico, realizar uma política social de uma magnitude nunca antes imaginada, levando ao que se denomina de Welfare State, é uma fase extremamente feliz do desenvolvimento capitalista, durante a qual se conjugam uma série de fatores capazes de garantir crescimento com distribuição de renda e níveis crescentes de bem estar econômico para as mais amplas massas da população daqueles países e inclusive, em muito menor medida, de países periféricos, como o Brasil, em que o modelo fordista se implanta tardiamente.
Assim, a produção em massa é apoiada pelo consumo de massa, conforme a proposta do próprio Ford, no momento em que criou a moderna linha de montagem, respaldado pelos ganhos salariais, pelas facilidades dadas pelo Welfare State, que garante condições básicas de vida para os trabalhadores, como a saúde, a educação, sistemas de transporte subsidiados e moradia barata, e pelo sistema de crédito ao consumo. Nessas condições, desenvolvem-se os grandes meios de comunicação de massa, veículos da publicidade comercial e da propaganda política.
O surgimento da Indústria Cultural, sob o Capitalismo Monopolista, é visto por Habermas, no livro citado, como o fim da esfera pública burguesa e a constituição de um sistema de manipulação das consciências. Assim, justamente no momento em que as massas logram conquistar o acesso à esfera pública, antes limitada por critérios de exclusão, o seu caráter crítico é esterilizado, surgindo os grandes meios de comunicação de massa, primeiro os jornais de massa da virada do século, depois o rádio e a televisão, como elementos de controle social, visando à manutenção da hegemonia da classe capitalista, anulando o caráter revolucionário e explosivo que uma esfera pública crítica teria no momento em que incorporasse camadas sociais não comprometidas com a ordem burguesa.
Tudo o que foi dito acima permite qualificar esta posição de Habermas como simplista, pois o que se observa é uma solidariedade muito grande entre os diferentes elementos que garantem a coesão do modelo de regulação social implantado no período do pós-guerra, mas cujas peças vinham sendo montadas desde a virada do século. Sabemos que o processo todo foi extremamente conturbado, marcado pelas duas grandes guerras e uma crise sem precedentes no início dos anos 30. Não há dúvidas, por outro lado, que a manipulação é uma realidade do sistema, mas a capacidade de luta e de organização dos trabalhadores deve ser entendida como o elemento fundamental de todo o processo, que garantiu, no Leste, a revolução socialista e, no Ocidente, a soldagem de toda a estrutura hegemônica que garantia às mais amplas massas da população condições de vida que rivalizavam efetivamente com as conquistas obtidas nesse sentido pelos países do bloco soviético.
Assim, a tese da manipulação deve ser problematizada, ainda mais se considerarmos que a Indústria Cultural representa, em certo sentido, uma vitória da cultura popular, formada na Idade Média, por oposição à cultura de elite, na medida em que se opõem fundamentalmente, desde o início, à cultura burguesa da obra de arte única, que só a influencia de forma muito secundária. Não reside aí, afinal, o tão conhecido caráter conservador e saudosista dos expoentes da Escola de Frankfurt? O fato é que Habermas não logra, no livro citado, superar o pessimismo frankfurtiano, que apenas adquire um caráter distinto, de defesa não mais da cultura erudita, mas de uma racionalidade burguesa, presente na constituição original da esfera pública, que ele analisa de forma tão brilhante na primeira parte do seu trabalho. Autores como Morin (1962) ou Barbero (1987), entre tantos outros, estudaram as raízes populares da cultura de massa, citando o folhetim, o teatro de rua, o circo, a festa popular etc. Paula Montero, num artigo de divulgação recentemente publicado, colocou a questão de forma bastante feliz:
Muitos autores já demonstraram que a cultura das classes populares é a matéria-prima por excelência da construção das nacionalidades nos Estados gerados nestes últimos 150 anos. Com efeito, embora esse tipo de estruturação burocrática se inaugure no campo jurídico e da política, é no campo da cultura que ele ganha espessura. Isto porque, para que os Estados nacionais se legitimem, é preciso que eles constituam culturalmente seu povo, homogeneizando o território e universalizando as particularidades locais. Esse processo de construção simbólica da nacionalidade, que procura incluir e dar um sentido nobre ao modo de vida das camadas pobres é tradicionalmente obra dos intelectuais (Montero, 1999, p. 3).
Trata-se, portanto, de uma questão de hegemonia. O interessante a notar aqui é que a Indústria Cultural acaba cumprindo, em essência, aquele papel que era do intelectual gramsciano ao qual a autora se refere, numa situação em que a produção cultural adota, ela também, a forma mercadoria. Já tive a oportunidade de discutir em profundidade o tema das relações entre capital, Estado e Indústria Cultural, na perspectiva de uma Economia Política da Comunicação (Bolaño, 2000). Aqui quero apenas ressaltar que aquela dialética apontada no trecho citado não deixa de existir no momento em que a “infraestrura se industrializa”. A idéia de nação, que é a base do poder das elites locais, permanece operando, ainda que a essa função ideológica da produção cultural venha a somar-se aquela dupla funcionalidade econômica (produção de mercadoria cultural e publicidade comercial) a que Garnham (1979) se refere.
Vivemos hoje uma nova transformação na estrutura do sistema. As raízes dos processos atualmente em curso devem ser procuradas na crise, iniciada nos anos 70, daquele padrão de desenvolvimento que presidiu o longo período expansivo do pós-guerra, respaldado pelos acordos de Bretton Woods, que garantiam a hegemonia do dólar nas relações econômicas internacionais. Com base na estrutura do sistema financeiro montado nessas condições é que foi possível reconstruir a Europa e o Japão, destruídos pela guerra, e expandir o modelo fordista para o conjunto dos países desenvolvidos e também, parcialmente, para os países do chamado Terceiro Mundo, inclusive o Brasil. Não é possível aqui entrar na análise fina daquele modelo de desenvolvimento, mas sabemos que a crise se deve ao esgotamento do potencial dinâmico dos setores que puxaram a expansão (automotivo, eletro-eletrônico e da construção civil) e das contradições internas de uma economia de endividamento crescente, que gerou o descolamento entre as órbitas financeira e produtiva, responsável pelos sobressaltos que passaram a acontecer recorrentemente no sistema a partir da crise do endividamento externo dos países do Terceiro Mundo, em 1982, e cuja última expressão conhecida foi justamente a crise brasileira do final de 1998.
O movimento de reestruturação do capitalismo que se inicia com a crise aponta para, obviamente, a manutenção e, inclusive, acentuação da concentração e centralização do capital, mantendo-se, portanto, intactas as condições que levaram ao surgimento do Estado intervencionista do Capitalismo Monopolista, ao mesmo tempo em que, como conseqüência desse próprio processo, os estados nacionais perdem capacidade de regular a economia, frente ao poderio inusitado do sistema financeiro internacional e do grande capital produtivo oligopolista globalizados. Nessas condições, e dadas as conseqüências da própria crise sobre o Estado, reduzindo sua capacidade de manter no mesmo patamar anterior as conquistas do Welfare State, ao mesmo tempo em que os setores econômicos estruturados a partir dos seus investimentos diretos transformam-se em opção de investimento capitalista, a ideologia neo-liberal adquire uma hegemonia global impressionante, em detrimento do keynesianismo vigente no período anterior.
Sob a batuta do neo-liberalismo, iniciar-se-á um processo de grande envergadura de desregulamentação, privatização e questionamento do Estado do bem estar social, que pretende abrir espaço para a acumulação privada, revertendo a tendência de crise, o que, diga-se de passagem, efetivamente não ocorre, mantendo-se a taxa de acumulação extremamente deprimida durante todo o longo período, de mais de quinze, quase vinte anos de implantação sistemática dos programas vinculados àquela ideologia hegemônica nas principais instâncias de poder econômico internacional. Seria importante apontar a diferença fundamental entre o significado dessas políticas para os países do primeiro e do terceiro mundos, o que não cabe nos limites deste texto. Vale dizer apenas que, grosso modo, enquanto, nos primeiros, a desregulamentação e as eventuais privatizações estão ligadas a uma estratégia nacional de posicionamento frente à concorrência internacional em setores chave para o futuro do capitalismo, nos outros, trata-se de alienar o patrimônio nacional, sem nenhuma contrapartida aparente, sob a pressão do endividamento externo e dos programas de estabilização ditados pelo Fundo Monetário Internacional.
Note-se que, tanto nos países centrais como nos demais, o sistema vem se tornando cada vez mais excludente, pelas próprias características do modelo dito neo-liberal, o que, se não coloca tecnicamente limites à capacidade futura de reprodução ampliada do capital, põe-na de qualquer modo em cheque, visto que, mantendo-se essa tendência, as condições para a legitimação da dominação serão cada vez mais precárias, colocando mais uma vez na ordem do dia a velha disjuntiva “socialismo ou barbárie”. Nessas condições, e dado o colapso das experiências do chamado socialismo real, o pensamento conservador norte-americano tem nos brindado com a idéia nada alvissareira de um explosivo conflito de civilizações, com um evidente potencial regressivo. Em todo caso, a questão cultural deve adquirir grande relevância no debate político e acadêmico.
No que se refere à questão das tecnologias, já são bastante evidentes quais serão importantes para a retomada do desenvolvimento, a partir de uma eventual saída da crise atual: biotecnologias, micro-eletrônica, informática, telecomunicações, novos materiais. Entre elas, adquirem proeminência as chamadas Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s), responsáveis por uma mudança de grande envergadura na estrutura da esfera pública. Antes de nada, é preciso dizer que, do ponto de vista da produção de mercadorias, as novas tendências apontam para uma preservação do caráter fortemente excludente que o sistema adquiriu na última crise. Assim, as tecnologias informacionais aplicadas à produção e a robotização, além de se traduzirem de imediato numa redução importante dos postos de trabalho, são adotadas de acordo com o novo paradigma da produção flexível, dirigindo a produção a segmentos de consumidores, à diferença do paradigma da massificação do período do fordismo. Assim, coletivos reduzidos de trabalhadores, com alta qualificação, produzem para segmentos específicos da população, produtos diferenciados. A mesma tendência de redução dos empregos e de segmentação verifica-se no setor de serviços.
A Indústria Cultural que, como setor econômico, sofre as mesmas injunções por que passa todo o sistema produtivo, reproduz essa lógica excludente. O surgimento da televisão segmentada a pagamento, por oposição à TV de massa gratuita é exemplar: oferta de dezenas e até centenas de canais para a parte do público com suficiente poder aquisitivo para não apenas adquirir o acesso ao sistema, mas ainda pagar mensalmente pelo serviço (e pagar preços também diferenciados segundo o tipo de consumo), enquanto que, para a maioria da população, radicaliza-se o modelo da TV de massa, com o avanço dos reality shows e das igrejas eletrônicas, para citar os dois exemplos atuais mais notórios. Na internet, esse corte é ainda mais radical. Cria-se, assim, aquilo que o eufemismo francês chama de sociedade a duas velocidades.
Quando falamos de um público consumidor restrito, estamos ainda falando de centenas de milhões de pessoas em todo o mundo, capazes de garantir um desenvolvimento sustentado da acumulação do capital. Nunca é demais lembrar que segmentação e massificação, homogeneização e diferenciação, antes de opor-se radicalmente, complementam-se. Podemos dizer que o que ocorre hoje é um aumento da massificação com segmentação de públicos e reforço da tendência de individualização, inerente ao capitalismo. E o mundo todo se transforma num imenso Brasil: de um lado, uma massa integrada, com acesso aos novos meios de comunicação e, inclusive, possibilidades de comunicação interativa mais ou menos importantes, conectado a uma rede global e, de outro, a imensa maioria, à qual se destina uma sub-cultura de massa do mais baixo padrão.
Analisei essa situação recentemente (Bolaño, 1997), apontando que estamos no limiar da constituição de uma nova esfera pública, articulada pela internet e pelos meios de comunicação internacionalizados, que retoma o caráter crítico, mas restrito, da esfera pública burguesa dos séculos XVIII e XIX (e, mais, com as mesmas regras de exclusão: poder econômico e conhecimento), restando para a imensa maioria da população o paradigma da cultura de massa, da manipulação e do Estado nacional, que perde, com o neoliberalismo, boa parte do poder de decisão em matéria de política econômica, em favor dos organismos multilaterais que representam o poder dos oligopólios industriais e financeiros, mas mantém o poder de controle sobre a população local, chamada, de tempos em tempos, a participar de processos eleitorais cada vez mais inócuos.
Mas há uma segunda tendência presente no atual desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação: a informatização geral da sociedade. Todos os processos produtivos e comunicativos, domésticos e institucionais, passam a ser mediados pelas TIC’s e pelas redes telemáticas. Uma das conseqüências desse processo é a constituição daquele ciberspace que é a base da nova esfera pública global a que me referi no parágrafo anterior. Não se pode deixar de considerar o caráter potencialmente liberador desse fenômeno. Já tive a oportunidade de analisar essa contradição, inerente a todo desenvolvimento capitalista, entre as possibilidades liberadoras abertas pelo progresso técnico e os impedimentos a sua realização, impostos pelas mesmas forças responsáveis pela sua implantação, em um artigo onde trato de recuperar criticamente a contribuição de Pierre Lévy (1994) e sua utopia liberal (Bolaño, 1998). Para superar essa contradição e garantir a realização da promessa humanizadora que as tecnologias carregam, será preciso superar as relações de produção alienadas que aprisionam esse potencial liberador. Mas quais serão as forças sociais capazes de levar adiante essa bandeira?
A idéia da subsunção do trabalho intelectual no capital, permitida justamente pelo desenvolvimento das tecnologias informacionais, paralela ao da intelectualização geral de todos os processos de trabalho (Bolaño, 1995) pode ser tomada como uma chave interpretativa para se responder a essa questão e definir, coerentemente com a matriz teórica apontada ao início, o conceito de Terceira Revolução Industrial.
Para uma análise da atual reestruturação capitalista à luz de uma leitura de Sohn-Rethel sobre a separação entre trabalho manual e intelectual.
Vimos que, em Marx, a idéia de Revolução Industrial remete essencialmente ao processo histórico de passagem da subsunção formal à subsunção real do trabalho no capital. O mesmo ocorre com a chamada Segunda Revolução Industrial, ligada, para o autor, à mesma passagem no último setor da produção material ainda, até aquele momento, organizado sob forma artesanal ou manufatureira: o da produção das próprias máquinas. Nos dois casos, a componente tecnológica do processo é crucial porque permite um avanço da subsunção do trabalho e, conseqüentemente, a expansão da lógica capitalista e da exploração do trabalho vivo. Assim, o elemento principal da Primeira Revolução Industrial foi a máquina-ferramenta e, o da Segunda, a produção de máquinas por meio de máquinas.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, podemos afirmar que o elemento central da Terceira Revolução Industrial é aquilo a que Pierre Lévy (1994) chamou de “tecnologias da inteligência” (mais especificamente, as tecnologias informacionais). O fato marcante deste final de século é o surgimento, em decorrência do desenvolvimento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC’s) e das redes telemáticas, de uma tendência ao apagamento de fronteiras entre trabalho manual e intelectual, manifesta tanto naquilo que venho chamando de subsunção do trabalho intelectual, quanto na intelectualização geral dos processos de trabalho na indústria e no setor de serviços (Bolaño, 1995, 1997 b).
Alfred Sohn-Rethel foi o autor que, na história do pensamento marxista, teve o mérito de haver esclarecido no essencial o problema da separação entre trabalho manual e intelectual. Na apresentação da sua tradução de Sohn-Rethel (1989) ao português, Cesare Galvan (1995) lembra que “a própria constituição do trabalho intelectual (aquele trabalho ao qual damos hoje o nome de ciência moderna) é um processo de separação, de constituição ‘a parte’, com relação ao mundo do trabalho tout court, que desde já se identifica com o trabalho manual” (p. vi). É isso precisamente o que o autor alemão esclarece. Galvan explica: “a separação entre trabalho intelectual e manual é a outra face da constituição daquele complexo científico-tecnológico que entregou a grupos determinados o controle daquilo que o trabalho manual produz. Daí a importância do tema para qualquer tentativa de superação do atual sistema de dominação” (idem).
Em “Indústria Cultural, Informação e Capitalismo” (Bolaño, 2000), tive a oportunidade, no capítulo primeiro, de realizar um exercício metodológico derivacionista, procurando definir o conceito de informação, acompanhando a derivação, feita por Marx, do capital a partir da mercadoria. Minha pretensão, naquele momento, era chegar a um conceito não idealista de informação, adequado às determinações gerais do modo de produção capitalista em cada um dos momentos de sua caracterização teórica, seguindo o caminho do abstrato ao concreto, com o objetivo de particularizar a Indústria Cultural, entendida como forma de manifestação das contradições da informação, no que se refere à comunicação de massa, numa determinada situação histórica, mais precisamente, aquela vigente sob o chamado Capitalismo Monopolista, visando construir um quadro analítico, suficiente para uma abordagem empírica posterior dos sistemas audiovisuais e dos diferentes mercados culturais.
Não é possível reproduzir aqui aquele exercício, nem sequer resenhar o conjunto dos resultados obtidos. Basta dizer, esquematicamente, que ele passa por três momentos. Primeiro, o da informação na circulação mercantil enquanto aparência que mascara a essência do modo de produção, ao afirmar, neste caso, a ideologia burguesa da liberdade de informação, adequada à aparência de liberdade, igualdade e propriedade que o mundo da troca exala. No segundo momento – o da produção – todas as determinações anteriores se intervertem, explicitando-se o caráter explorador do sistema. Aí, a informação já não é puramente máscara, ideologia, mas, antes, poder. Suas características, inversas em relação ao momento precedente, podem ser claramente expostas analisando-se o processo comunicativo adequado ao processo de trabalho como processo de valorização do capital.
Se, no primeiro momento, falávamos de mercadoria, informação e da ideologia enquanto fetiche, como na primeira parte do livro primeiro d’O Capital, neste segundo, falamos de capital, conhecimento e poder. A informação é agora informação de classe. Os conceitos de massa e de comunicação de massa vêm justamente para mascarar esse fato, indiscutível quando nos detemos na análise do processo de trabalho como processo de valorização. Mas só poderemos entender os problemas da comunicação de massa, da Indústria Cultural, da mercantilização da própria informação, das TIC’s etc., de forma mais determinada, considerando, num terceiro momento, a informação num nível mais concreto de análise, onde o capital já não é visto como uma instância única, mas como multiplicidade de capitais em concorrência. É aí que a informação se torna mercadoria, sem, contudo, abandonar as suas determinações anteriores, mas adquirindo, isto sim, a sua forma capitalista mais adequada para o cumprimento daquelas funções (ideologia e poder) determinadas em níveis mais abstratos de análise.
Nesse ponto é possível definir as condições de possibilidade para o aparecimento dos grandes meios de comunicação de massa, conseqüência do próprio desenvolvimento das infra-estruturas de transportes e comunicações que os capitais industriais, comerciais e financeiros, assim como o Estado, exigem para o seu funcionamento corrente. As condições de necessidade, por sua vez, já haviam sido postas nos momentos anteriores da nossa derivação, a qual fica, assim, completada. Também podemos falar nas condições de possibilidade e de necessidade da mercantilização da informação, as primeiras dadas pelo próprio fato de que o processo social exige a criação daqueles requisitos infra-estruturais necessários à sua produção, armazenamento, manipulação, controle, circulação e, as segundas, pelas exigências de controle dos processos econômicos, especialmente os processos de trabalho, inclusive intelectual.
Vale a pena determo-nos por uns instantes na análise do segundo momento citado, tratando de avançar sobre algumas questões apenas apontadas naquela ocasião. Um dos resultados da derivação então realizada é que a Revolução Industrial e, portanto, a constituição do modo de produção capitalista exige, como pré-condição, não apenas uma acumulação primitiva de capital, mas também uma acumulação primitiva de conhecimento por parte do capital industrial, o que se realiza ao longo do período manufatureiro, como se pode claramente ler nos chamados “capítulos históricos” do livro primeiro d’O Capital. Trata-se precisamente da passagem da subsunção formal à real do trabalho no capital, que permite a expansão do modo de produção capitalista e a destruição dos laços que uniam a velha burguesia comercial e bancária às estruturas de poder do antigo regime.
A base dessa transformação é a ruptura da unidade entre trabalho manual e intelectual que existia no artesanato. Note-se que se tratava já de uma unidade reconstruída historicamente sobre a base de um conhecimento empírico produzido ao longo do tempo pelos trabalhadores independentes, dentro do seu sistema artesanal, muito específico e delimitado espacial e temporalmente. Uma unidade localizada, que jamais chegou a questionar a separação fundamental decorrente da ruptura original ocorrida na Grécia antiga. Poderíamos especular sobre a eventual possibilidade de uma superação completa daquela ruptura fundadora. Le Goff (1957) já havia ressaltado o caráter artesanal do trabalho intelectual profissional quando do seu surgimento no Ocidente cristão no século XII, bem como o caráter corporativo da instituição universitária que se constitui no século XIII.
Mas o que ocorreu foi algo muito diferente de uma reconciliação. Criado pelo trabalho, o potencial revolucionário que aquela reunificação carregava só pode ser realizado pelo capital e, por uma ironia da história, através justamente da sua ruptura, ampliando ainda mais o fosso entre quem pensa e quem executa. Se a manufatura e – fundamentalmente – a indústria capitalista destroem a autonomia do trabalho artesanal, o mesmo não ocorre com os trabalhos artístico e intelectual, ainda que ambos tenham sido obrigados a adaptar-se, ao longo da história, aos interesses hegemônicos da acumulação capitalista.
Sohn-Rethel estuda a origem daquela separação na Grécia antiga, onde surge o pensamento abstrato, a filosofia, a matemática pura e a ciência pura da natureza. Ele mostra justamente, na perspectiva do materialismo histórico, que a existência da abstração real da troca de mercadorias e seu corolário, a forma dinheiro, é a condição objetiva sine qua non para o surgimento da abstração do pensamento e, portanto, da separação entre trabalho manual e intelectual. A partir desse momento, o controle dos meios de produção mental tornar-se-á parte fundamental das estruturas de poder e de controle social. A restauração limitada da unidade no artesanato aparece obviamente como possibilidade e promessa, na medida em que serve para fundamentar a construção de um horizonte de referência para a superação futura daquela separação, mas, concretamente, não representou, em nenhum momento, uma ameaça efetiva ao sistema de dominação então vigente, dados os próprios limites internos do sistema corporativista, ditados pela estreiteza da sua base técnica e pela sua inserção no modo de produção feudal e na estrutura hierárquica do poder na Idade Média e sob o Absolutismo.
Coube ao capital industrial realizar a revolução do modo de produção, através de um duplo movimento: por um lado, a desapropriação do conhecimento dos artesãos e, por outro, a sua articulação com o conhecimento decorrente do desenvolvimento científico que se dava no campo propriamente intelectual. A Revolução Industrial significa também, na verdade, uma revolução na relação entre poder e conhecimento, ao colocar em primeiro plano o elemento empírico e pragmático extraído do conhecimento usurpado à classe trabalhadora artesã. Isso implica uma transformação da forma de pensamento, com repercussões fundamentais sobre as ciências, a tecnologia e a filosofia, e cujas raízes intelectuais remontam, como mencionei, citando Le Goff, ao século XII e não apenas ao Renascimento, sendo crucial também para a construção de uma nova estrutura de poder em que a relação do trabalho intelectual com o capital tornar-se-á cada vez mais intestina.
Esse movimento secular de aproximação do trabalho intelectual ao modo de produção chega hoje a um ponto de maturação fundamental, com o desenvolvimento das tecnologias informacionais, que colocam na ordem do dia a questão da subsunção real do trabalho intelectual no capital e, simetricamente, da possibilidade de uma superação da divisão entre corpo e espírito no trabalho e do atual sistema de dominação. Um momento importante desse longo processo foi, sem dúvida, o desenvolvimento, no século XX, da Indústria Cultural, possibilitada pelas técnicas de reprodutibilidade a que os teóricos da escola de Frankfurt se referem, começando por Benjamin (1936), e que parecia haver atingido seu ponto extremo com a constituição dos sistemas de radio e televisão, nos quais a organização capitalista extrapola os limites das técnicas de reprodução e distribuição, submetendo a própria produção de bens culturais, conforme observou com justeza Adorno em uma conferência citada por Beaud et ali. (1991). Garnham (1979), seguindo a trilha dos teóricos frankfurteanos na perspectiva, mais correta, da Economia Política da Comunicação, aponta que essa “industrialização da superestrutura” representa um segundo momento na análise materialista histórica da questão cultural sob o capitalismo, por oposição ao momento, mais antigo, mas que permanece presente, subsumido ao atual, em que prevalecia a figura do intelectual burguês tradicional.
Cesareo (1974) utiliza a feliz expressão “intelectual parcial” para referir-se a esse segundo momento. Mas hoje já não se trata simplesmente do tipo de “alienação” do intelectual integrado pelo sistema dos media, que o autor italiano tinha em mente. O atual processo de informatização geral da sociedade representa uma mudança qualitativa muito mais profunda. Os impactos das TIC’s atingem o mundo do trabalho, as formas de coordenação inter e intra-empresariais e institucionais e os modos de consumo e de vida de milhões de pessoas por todo o globo, constituindo-se em fator de importância crucial para as grandes transformações por que o mundo vem passando nesta virada de século.
Os economistas geralmente insistem na importância da chamada revolução da micro-eletrônica no interior dessa mudança na matriz tecnológica. É essa revolução que está na raiz do desenvolvimento das novas TIC’s, elemento central, por sua vez, na reestruturação da esfera pública, com o surgimento da televisão segmentada, da internet e todas as inovações ligadas ao conjunto dos processos de comunicação, que modificam a estrutura das indústrias culturais, criando inclusive novas, e alteram as formas de interação e de reprodução simbólica do mundo da vida, para usar o conceito habermassiano (Lebenswelt). Nesse sentido, podemos falar em uma nova mudança estrutural da esfera pública, pois as novas TIC’s põem em cheque o sistema global das Indústrias Culturais, vigente desde os anos 50, ao atingir o seu núcleo central, a televisão de massa. Pode-se perceber claramente hoje a coerência entre essa mudança e aquela do padrão de desenvolvimento capitalista e do modo de regulação de que falei acima. Podemos, portanto responder à questão formulada no início do parágrafo anterior, dizendo que se trata de uma transformação tão importante como a da passagem do capitalismo concorrencial ao monopolista, na última virada de século, que redundou, posteriormente, na passagem do Estado liberal para o intervencionista e na constituição daquele padrão de desenvolvimento vigente no período entre o pós-guerra e o início da crise atual.
Isso, numa primeira aproximação. Se atentarmos, agora, para as características específicas desta Terceira Revolução Industrial, veremos que ela se distingue fundamentalmente das duas primeiras pelo fato de que, agora, o que vivemos é um processo duplo de subsunção do trabalho intelectual, inclusive o cultural e artístico, e de intelectualização generalizada dos processos de trabalho convencionais, de modo que as energias que o capital procura extrair do trabalhador são fundamentalmente mentais e não mais essencialmente físicas, o que, diga-se de passagem, não representa em si nenhum ganho real para a classe trabalhadora mas, num certo sentido, o contrário (Bolaño, 1997 b). Assim, a transformação atual é qualitativamente distinta das duas anteriores, de modo que seu significado pode ser visto como tão importante quanto o da Revolução Industrial inglesa do século XVIII, tratando-se, portanto, de uma segunda onda de expansão da lógica do capitalismo industrial, que chega a promover agora um grau extremo daquela “industrialização da superestrutura”, se é que ainda se pode usar essa velha metáfora.
Mais do que invadir a cultura, o capital torna-se cultura, no sentido mais amplo do termo, e a forma mercadoria passa a monopolizar o conjunto das relações sociais, inclusive aquelas mais internas ao mundo da vida e, antes, mais resistentes à expansão da lógica capitalista. A primeira conseqüência desse movimento é que a cultura adquire uma importância crucial para o próprio modo de produção, em cujo âmago agora se situa, tornando fundamentais, por sua vez, os conflitos que se dão na esfera cultural, inclusive pela característica de mediador que tem o trabalho intelectual, o qual mantém, nesta nova situação, uma relação com o capital semelhante àquela que o trabalho da classe operária tradicional mantinha (segunda conseqüência), com a diferença (terceira) de que estamos ainda no início do processo de passagem da subsunção formal à real do trabalho intelectual no capital, o que dá ao primeiro um grau de autonomia que o trabalhador manual perdeu há muito tempo.
O significado revolucionário dessa transformação fundamental do trabalho – e conseqüentemente da própria estrutura da classe trabalhadora – em que as funções de coordenação e comunicação ganham uma importância nunca antes imaginada, é tanto maior quanto o novo padrão de consumo exige também o aumento da intelectualização do próprio público de interesse, reforçando o caráter de mediador cultural que tem o trabalho intelectual.
Assim, mais uma vez, o capitalismo abre possibilidades transformadoras, ao mesmo tempo em que as nega, ao canalizar todas as energias mentais extraídas da nova classe trabalhadora para a manutenção do sistema de exploração, excluindo ademais a maioria da população mundial das condições mínimas de vida digna. O trabalhador intelectual vive a contradição de servir, na medida em que é obrigado a vender sua força de trabalho, para garantir a satisfação das suas necessidades humanas, historicamente determinadas, ao sistema de exploração, exclusão e violência do capital, ao mesmo tempo em que percebe que esse mesmo sistema restringe suas capacidades criadoras e o separa da imensa maioria dos seus semelhantes, condenados a condições de vida desumanas.
Nessas condições, o trabalhador intelectual, essa nova camada proletarizada, deve, superando os interesses mesquinhos e as hierarquias que a dividem, ajudar a organizar a luta contra a alienação e pela construção de uma sociedade mais justa, reconhecendo o seu papel histórico de mediador no processo de emancipação do Homem. Dois fatores poderão facilitar essa difícil empreitada: o caráter marcadamente comunicacional e relacional do modo de produção hoje e a autonomia relativa de que ainda dispõe no seu trabalho.
Para uma crítica da economia política do conhecimento
O intuito de Sohn-Rethel, na sua obra maior, era o de ir além da Crítica da Economia Política e, partindo da demonstração de que o surgimento do pensamento abstrato – da filosofia, da matemática pura e da ciência pura da natureza – está ligada ao desenvolvimento prévio da abstração da troca, da forma mercadoria e da forma dinheiro, avançar na crítica materialista histórica da teoria conhecimento de Kant. Muito mais modestamente, procurei apontar os caminhos metodológicos para uma crítica das teorias da comunicação (Bolaño, 2000) e da informação (Bolaño 2000, 1997 b; Bolaño e Vasconcelos, 2000). A retomada da contribuição de Sohn-Rethel será importante para o aperfeiçoamento do instrumental teórico lá proposto e para o conhecimento da atual estrutura do sistema capitalista, como se pode inferir do exposto acima. Não é possível, evidentemente, realizar este tipo desenvolvimento teórico nos limites deste artigo.
Mas a atual reestruturação do modo de produção capitalista, no sentido exposto, acabou levando a própria ciência econômica a colocar-se o problema co conhecimento como elemento central de estudo. O mérito coube a economistas heterodoxos de fora do campo do marxismo.
Dominique Foray publicou recentemente uma revisão do tema, fazendo questão de distinguir o processo histórico de desenvolvimento do que chama de “economia fundada sobre o conhecimento” – como conseqüência da articulação de uma tendência de longo prazo de aumento dos “recursos consagrados à produção e à transmissão dos conhecimentos (educação, formação P&D, coordenação econômica)” com o que chama de um “evento tecnológico maior”, qual seja, o surgimento das novas tecnologias da informação e da comunicação (Foray, 2000, p. 3) – da disciplina “economia do conhecimento”, cujos antecedentes localiza nos anos 60 do século passado, lembrando os trabalhos precursores de Nelson (1959) e Arrow (1962), e cita a Simon (1982), Hayek (1986) e Machlup (1984), como “os primeiros grandes autores modernos de uma economia geral dos conhecimentos (isto é, não confinada no domínio da ciência e da tecnologia)” (Foray, 2000, p. 6), sem esquecer da obra pioneira do francês Maunoury (1972). O autor distingue ainda o campo da economia do conhecimento daquele, mais abrangente, da economia da informação e cita o importante trabalho nessa área dirigido por Pascal Petit (1998).
Mesmo sendo obviamente impossível entrar aqui a fundo no tema, vale a pena retomar a questão chave, segundo o autor – uma reconhecida autoridade, que se baseia num amplo conhecimento da bibliografia internacional – de toda a moderna economia do conhecimento: a da sua codificação. Uma análise desse problema na perspectiva teórica acima proposta nos permitirá entender melhor aquele da subsunção do trabalho intelectual, mostrando, por outro lado, como estão imbricados os dois processos que Foray trata de separar analiticamente, pois só o pensamento crítico e dialético pode esclarecer a relação que existe entre o ser e a consciência.
O saber tem uma dimensão tácita incontornável, que dificulta a realização de diversas operações, desde a troca, difusão e aprendizado dos conhecimentos – que se tornam mais custosos devido à necessidade de mobilidade dos seus detentores e de seu desejo de colaboração – até a sua estocagem e memorização, o que envolve um “risco de des-invenção” importante, passando pela própria pesquisa, visto que os conhecimentos tácitos não são classificáveis nem repertoriáveis sistematicamente (Foray, 2000, p. 47). O grande problema econômico do nosso tempo reside em transformar o conhecimento tácito em conhecimento codificado, convertendo-o em mensagem que possa ser manipulada como informação. Assim, pode-se definir a codificação como a operação que consiste em plasmar o conhecimento sobre um suporte, liberando-o da sua ligação a uma pessoa, o que permite reduzir custos e aumentar a confiabilidade das operações de estocagem, memorização, transporte, transferência, reprodução, acesso e pesquisa, ao tornar o conhecimento reprodutível, o que, por outro lado, faz com que “um conhecimento codificado se aproxime das características de uma mercadoria” (idem, p. 48).
Ocioso apontar que tudo isso se aplica sem restrições à industrialização da cultura (Bolaño, 2000). Mas o mais interessante é notar que estamos falando de um processo em tudo semelhante ao descrito por Marx, nos capítulos históricos do livro primeiro d’O Capital, de acumulação primitiva do conhecimento. De fato, o conhecimento se destaca do sujeito e fica plasmado em um elemento do capital constante, podendo ser “transferido independentemente da transferência de outros recursos, tais como as pessoas que haviam incorporado os conhecimentos tácitos” (idem, ibidem). Em outra passagem, bem mais adiante, o autor é ainda mais claro:
“o conhecimento é extraído da pessoa que o desenvolveu, torna-se independente dessa pessoa, classificado e re-utilizado [permitindo] … a numerosos empregados pesquisar e encontrar o conhecimento … sem precisar contatar a pessoa que o desenvolveu inicialmente” (idem, p. 95).
Claro que essa é apenas uma das estratégias da firma a respeito, pois, em outros casos, é interessante manter o conhecimento tácito, fonte de vantagens competitivas, no interior da própria empresa, estimulando o desenvolvimento de redes interpessoais e de uma cultura organizacional que permita tirar o maior proveito. O tema é fascinante, mas não será possível entrar nas minúcias neste texto. Em todo caso, vale ressaltar que essa segunda possibilidade em nada altera as determinações gerais acima propostas, mas acrescenta uma complicação adicional, remetendo, de um lado, à questão dos limites à subsunção e dos graus de liberdade que o próprio sistema é obrigado a deixar a pelo menos uma camada de trabalhadores intelectuais. É interessante observar como Foray, com base em preocupações muito distintas das nossas, apresenta claramente o problema:
“Assim, a dimensão tácita do conhecimento permite àquele que o detém exercer um certo controle, pois só a demonstração voluntária e a aprendizagem sur place permitem a aquisição. Há, portanto, uma forte excludência natural ligada ao conhecimento devido a esta dimensão tácita. Esta representa um recurso transitório do capital intelectual, produzindo rendas para os cientistas que detêm o savoir-faire. Eles se beneficiam disso até que o novo conhecimento seja suficientemente codificado, articulado, explicitado e, portanto, difundido para eliminar essas rendas” (idem, p. 68).
Note-se que o autor jamais fala em trabalho intelectual, mas, como neste belo trecho, em capital intelectual. Mas trata-se, obviamente, da mesma coisa. O processo que ele descreve é justamente aquele de extração do conhecimento do trabalhador individual e de sua incorporação ao capital, ou ao trabalhador coletivo que este cria em seu proveito, exatamente como ocorreu com a primeira Revolução Industrial. A diferença aqui é que, dadas as especificidades desta nova etapa de desenvolvimento capitalista, o processo de expropriação, por assim dizer, do saber torna-se recorrente, pois, na chamada economia do conhecimento, a produção do valor passa sempre necessariamente por um momento de criação intelectual, subsumido ao processo global de acumulação do capital. Seria interessante retomar aqui todas as velhas discussões sobre, de um lado, aquilo que ficou conhecido na literatura marxista sob o nome de aristocracia operária e, de outro, o trânsito ao socialismo.
Sem entrar nessa discussão, vale ressaltar que, como fica muito claro nesse trecho, e em todo o instigante trabalho de Foray, a socialização da produção chegou a um nível extraordinariamente desenvolvido. A própria existência de uma nova disciplina como a economia do conhecimento evidencia esse fato, o que explica muitos fenômenos, como, por exemplo, o dos chamados custos de aquisição, isto é, do “custo dos investimentos intelectuais necessários para formar uma comunidade capaz de compreender e de explorar o conhecimento” (idem, p. 69), comunidade essa que pode ser relativamente reduzida, no caso de uma matéria muito especializada, ou “quase universal”, quando se trata de uma técnica ou saber elementar. Em todo caso, seria importante acrescentar que aquela comunidade mais restrita funciona – em articulação direta ou indireta com outras comunidades mais ou menos restritas – crescentemente como parte de uma inteligência coletiva maior a serviço da acumulação capitalista.
Em todo caso,
“um efeito de segunda ordem concerne o impacto da codificação sobre a organização espacial e a divisão do trabalho. A aptidão de codificar os conhecimentos permite a externalização da produção de conhecimentos e autoriza as firmas a adquirir quantidades mais importantes de conhecimento a um dado custo” (idem, p. 48 e seg.).
Mas, essa externalização, que reduz, assim, os custos de operação, está ligada à não excludência, uma das três características econômicas do conhecimento – “bem fluido e portátil” –, que torna difícil recompensar a firma que arcou com os elevados custos fixos da própria codificação. Esse é um paradoxo da economia do conhecimento: a existência de externalidades positivas não pecuniárias, altamente desejáveis em princípio para a sociedade, não estimula o investimento privado. Todo o problema das empresas (e das autoridades em grande medida, para garantir a incitação à inovação tecnológica) será o de como internalizar as externalidades:
“é preciso, portanto, dar aos agentes privados meios de se apropriarem dos benefícios pecuniários associados ao uso do conhecimento, o que implica que um preço seja pago por esse uso. Ora, isso só é possível se o uso do conhecimento for restringido” (idem, p. 65).
Mas a questão é delicada quando se trata de conhecimento científico e tecnológico. Neste caso, “o que se freia ao se restringir o uso … não é apenas a fruição individual de alguns consumidores. É sobretudo a acumulação e o progresso coletivo” (idem, ibidem). Eis o dilema do conhecimento, ligado ao seu caráter de bem público: “só a expectativa de um preço positivo pelo uso garantirá a alocação de recursos para a criação, mas só um preço nulo garantirá um uso eficiente do conhecimento, uma vez que ele tenha sido produzido” (idem, p. 66). A cooperação entre empresas e instituições é então apresentada como “solução local e temporária ao dilema”, o que aponta claramente para a importância de se considerar o tema dos pólos, redes e clusters na perspectiva dos impactos espaciais das tecnologias da informação e da comunicação (Bolaño e Sicsú, 2001).
Estas tecnologias, aponta Foray, como citei acima, não são as responsáveis isoladas pela constituição das economias fundadas no conhecimento, mas o seu surgimento representa um momento crucial desse processo, especialmente aquelas ligadas ao desenvolvimento dos chamados “sistemas expertos, baseados na invenção de novas linguagens, novos modelos e novas técnicas que melhoram fortemente a codificabilidade dos saberes processuais” (o know-how, por oposição aos conhecimentos factuais ou know-what, para os quais se desenvolveram novos sistemas de estoque de informação que não alterariam fundamentalmente os métodos tradicionais de codificação surgidos a partir da grande revolução que foi a invenção da escritura), na medida em que permitem a codificação de toda uma gama de conhecimentos, desde aquele “do artesão (que consiste na mobilização de uma soma de conhecimentos conhecidos e memorizáveis), àquele do reparador (que chega a saber resolver um enigma), até aquele, finalmente, do estrategista (que consiste em definir uma tática, reconstruindo simultaneamente fins e meios em função das circunstâncias)” (Foray, 2000, p. 56). Claro que, nessa gradação, os saberes mais complexos têm sido codificados de forma mais limitada. Há ainda um terceiro tipo de conhecimento: aquele que dá acesso a outros conhecimentos (know-who), cuja codificabilidade permanece muito difícil, dependendo ainda de um maior desenvolvimento dos mecanismos artificiais de pesquisa em redes eletrônicas.
Em termos gerais, as novas TIC aumentam consideravelmente as possibilidades de codificação, aumentando a rentabilidade desse tipo de operação, seja ao desenvolver as técnicas de impressão que reduzem o custo da codificação dos conhecimentos mais simples, seja ao permitir o desenvolvimento de novas linguagens, aumentando a capacidade de modelização de fenômenos complexos, seja enfim ao constituírem-se em suporte para as redes telemáticas através das quais só o conhecimento codificado pode circular. Esses efeitos contribuem para que se introduzam “interdependências dinâmicas entre o crescimento da capacidade das TIC e o aumento dos recursos alocados na codificação”, criando um “círculo virtuoso de retroações positivas” (idem, p. 57).
O que só faz aumentar as características de bem público do conhecimento, tornando mais agudo o que Foray apresentou como o dilema das externalidades positivas e que nós podemos entender, a nosso modo, como a contradição de um modo de produção em que a produção é cada vez mais socializada.
Considerações finais
Trata-se, portanto, de um novo momento em um processo muito mais antigo de desenvolvimento das forças produtivas, que tem um ponto de inflexão fundamental com a Revolução Industrial e a constituição do capitalismo, mas cujas raízes podem ser encontradas nos séculos XII e XIII, quando se dá aquele processo de profissionalização do trabalho intelectual, de que falava Le Goff (1957), e se inicia aquele outro, de quantificação geral da realidade (Crosby, 1997).
A explicação profunda do fenômeno, em todo caso, nos é dada por Sohn-Rethel, ao definir, na análise da contribuição de Galileo, “a matemática como limite entre mão e cabeça”, entendida aquela à maneira dos gregos, desde Tales e Pitágoras, como “uma disciplina sem contradições, rigorosamente dedutiva, a qual, com base em determinados axiomas e postulados, promete resultados inequívocos” (Sohn-Rethel, 1989, p. 63), ou como “propriedade do pensamento em sua forma de socialização … que … caracteriza o trabalho mental em sua separação do trabalho manual” (idem). Segundo o autor, o que era fundamentalmente novo em Galileo, em relação ao
“ponto de vista do trabalho manual dos seus predecessores, foi que ele escolhia seu ponto de vista de antemão no terreno do movimento. Isso separou-o do ponto de vista do artesão, fez com que ele concebesse o movimento como condição do ser, lado a lado com o estado de imobilidade, portanto ambos igualmente inerciais … As leis dinâmicas da natureza são as leis do movimento, as quais vão se somando como resultado de pesquisa científica avançada para responder ao postulado do automatismo … Em 1623, em seu Saggiatore (A balança de ouro) Galileo determinou os fundamentos do método da nova ciência como procedimento matemático e experimental” (idem, p. 66 e seg.).
Caberia a Newton, em 1707, oferecer o modelo de um experimento de medida. Em todo caso,
“pela matematização, a ciência do novo tempo comparte sua quantificação com o conceito de valor da economia das mercadorias, a cujos interesses ela serve direta e indiretamente. Como sua igualdade de origem com o capital e seu modo de produção está completamente obscurecida para os detentores da ciência, estes se regozijam pela independência imaginária da motivação de seu pesquisar em sua era clássica com base na universalidade de sua forma conceitual e em sua distância ideal do capital” (idem, p. 67).
No tempo das biotecnologias e do projeto genoma já ninguém acredita realmente nessa independência imaginária. O esclarecimento feito por Sohn-Rethel pode ser tomado como o fundamento básico para a crítica da economia política do conhecimento. Em “Trabalho Socializado e Apropriação Privada”, traduzido também por Galvan e incluso no volume citado, publicado pela UFPb, Sohn-Rethel chega efetivamente a discutir a questão atual que nos interessa, ao analisar o significado histórico do taylorismo, numa perspectiva que, repensada à luz da informatização geral que presenciamos hoje, poderia esclarecer pontos importantes levantados talvez algo prematuramente por Lojkine (1995).
Não há obviamente espaço aqui para aprofundarmos esta crítica, mas, com o que foi dito até aqui, já temos o suficiente para estabelecer que a informática cumpre a promessa contida na gênese da economia do conhecimento, abrindo uma nova era para o capitalismo. O referencial marxista de Sohn-Rethel nos permitirá compreender esse fenômeno na sua essência, mostrando a unidade essencial que une aquilo que Foray chama de “economia fundada sobre o conhecimento” – que não é outra coisa senão uma nova etapa do sistema em que, como deve ter ficado claro, determinadas tendências se radicalizam, atingindo um certo ponto de maturidade – à economia política do conhecimento, e empreender a sua crítica.
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15/2/2012
Jornalismo público na contramão do sensacionalismo
Por Bianca Alighieri Luz em 18/09/2007 na edição 451
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KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. São Paulo. Geração Editorial, 2003.
O relógio marcava 13h30. As pessoas no restaurante dividiam a atenção entre suas refeições e a televisão. A mulher na TV vestia roupas tão simples quanto a sala de sua casa, de onde ela, ao lado do filho doente, implorava por doações de medicamentos, fraldas… alimentos. Enquanto isso, no estúdio, o apresentador berrava por justiça e, incansavelmente, criticava todas as esferas governamentais, certo de que exercia o papel social do jornalismo.
No outro dia, a cena se repetia com outro cidadão e uma nova mazela social; novos olhos se comoviam e vidravam na televisão, gerando mais espectador e, conseqüentemente, mais anunciantes para a emissora.
Segundo Márcia Franz Amaral, nota-se que desde a década de 1980 predomina no jornalismo brasileiro “a idéia da utilidade social da mídia e da necessidade dos jornais responderem às demandas cotidianas dos cidadãos. Servir o leitor passa a ser mais do que uma função social, torna-se uma atividade lucrativa”. A observação de Amaral se completa no discurso de Luiz Martins (2002), que diz:
“Ocorre, porém, que um dos critérios de noticiabilidade é a hierarquização dos ‘fatos noticiáveis’ segundo sua importância. Pode acontecer, então, que o noticiamento desejado seja reconhecido, mas ganhe o destino da cesta do lixo se algo mais importante no entender dos selecionadores vier a se sobrepor.”
“Clima de suspense”
O que se vê é uma tentativa frustrada de se fazer um jornalismo popular, que se utiliza do drama alheio para gerar receita, seja na venda de exemplares, seja com anunciantes. Como diz Amaral, “somos especialistas em abordar o segmento popular da grande imprensa a partir da condenação: sensacionalismo, degradação, ganância, lixo cultural, anti-jornalismo… A impressão que se tem é que o jornalismo ocupa um lugar desprovido de preocupações sociais e a ele cabe falar para aqueles dispostos a ouvi-lo”.
Com as redações cada vez mais próximas dos setores de marketing, criou-se um jornalismo dito popular que transforma as mazelas do cotidiano em acontecimentos extraordinários. É interessante o comparativo feito por Ramão Gomes Portão (1980) entre o tratamento de choque dado à notícia e a divulgação de um produto.
“Para valorizar providências rotineiras na área da política, por exemplo, dentro da praxe administrativa ou das normas legislativas, as medidas agora são anunciadas num clima de suspense, previamente trabalhadas para conseguir a conotação de mensagem de impacto. O mesmo critério é observado no lançamento de qualquer produto.”
Políticas editoriais omissas
O jornalismo que se apresenta hoje à sociedade acredita que publicar imagens de chacinas, de gente desesperada por uma ajuda, é exercer uma função social. Kovach e Rosentiel (2003) defendem o conceito da imprensa-cidadã como aquela que tira as pessoas da letargia e oferece uma voz aos esquecidos. Entretanto, o cidadão comum só é notícia quando morre, quando é preso ou quando está necessitado, sempre apresentado da maneira mais impactante possível.
O que se tem hoje é um jornalismo dito popular que tenta atrair o cidadão comum, tanto como leitor como fonte, através do sensacionalismo, que por sua vez desperta a curiosidade do público, gerando receita para o veículo. É difícil encontrar reportagens que não coloquem o cidadão na situação de desdém, que não façam dele mercadoria. Ele não tem voz para sugerir ou para apresentar suas idéias ou os projetos sociais de sua comunidade. Ele só pode clamar, dramaticamente, por socorro. Isso quando seu fato não é substituído pelos jornalistas por uma informação que traga menos benefício social, porém atraia mais anunciantes.
Na contramão deste jornalismo sensacionalista aparece o Jornalismo Público, descrito por Luiz Martins da seguinte maneira:
“O que tem caracterizado, no entanto, o jornalismo público é a intenção de não apenas se servir dos fatos sociais no que eles apresentam de dramático, mas agregar aos valores/notícia tradicionais elementos de análise e de orientação do público quanto a soluções dos problemas, organizações neles especializadas e indicações de serviços à disposição da comunidade.”
Ainda segundo o autor, este conceito de jornalismo busca uma identidade com o público “através de um jornalismo comprometido com os avanços social, econômico, cultural e humano, e não apenas faturando em cima das mazelas do cotidiano”. Entretanto, Martins afirma que os meios de comunicação de massa brasileiros não se declaram praticantes do jornalismo público, o que revela, senão desconhecimento dessa categoria como um campo específico, pelo menos a inexistência de algo programático, que faça parte de suas políticas editoriais.
Expansão da cidadania
Ao contrário dos jornais ditos populares, como Agora, Extra, Diário Gaúcho e o Dia, que têm em sua linha editorial o cidadão comum como fonte principal, os demais veículos de comunicação só se voltam para eles quando da produção de factóides. Segundo Martins, “o ideal seria que a prática de um verdadeiro jornalismo público abrisse espaço para as entidades sem fins lucrativos e voltadas para causas de interesse social”.
Para Amaral, o que falta na imprensa brasileira é o “hábito de pensarmos o jornalismo no plural… sem por isso termos que abrir mão dos princípios éticos. As mesmas razões éticas que nós, jornalistas, temos para não sujeitar nossa atividade ao mercado de bens materiais, deveriam levar-nos a refletir mais sobre o mercado simbólico envolvido na atividade jornalística”.
O que se espera do jornalismo hoje é que ele não se paute pela “ruptura da rotina”, mas que agende “permanentemente assuntos que não são novos”. Nesse momento, entram em ação as redes de informação para o Terceiro Setor, que devem ter como proposta substituir o sensacionalismo da pauta das redações por exemplos de cidadania, sejam eles produzidos pela própria sociedade civil ou por grandes corporações. Que o cidadão se torne fonte, que a sociedade civil organizada fale, mas para reportagens que busquem a expansão da cidadania, e não o deleite pelo sensacionalismo.
14/2/2012
O capital da convergência
Reproduzido do Observatório da Imprensa
Por Marcos Dantas em 13/12/2011 na edição 672
Num seminário do Fórum Nacional para a Democratização das Comunicações (FNDC) que se realizou no Rio de Janeiro em maio passado, lá pelas tantas, depois de estar bem informada, por explanações e discussões, sobre “o que é” a chamada “convergência tecnológica” ou “convergência de mídia”, a arguta e lutadora deputada Luiza Erundina (PSB-SP) indagou: “E o capital? Onde entra o capital nisso tudo?”. Pois é…
A “convergência” costuma nos ser apresentada como uma espécie de panaceia tecnológica que surge entre nós assim como um fenômeno tão natural quanto o morro do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro, e, não raro, apesar do significado inequívoco da expressão, parece querer definir um “novo setor” das comunicações: telecomunicações, radiodifusão… e “convergência”. No imaginário e, ao cabo, nas práticas políticas, “convergência” então acaba confundindo-se com “banda larga” ou “internet”.
Sabemos que os discursos não são neutros. Sempre expressam interesses de grupos de poder ou contrapoder, estratégias interiores daquilo que Pierre Bourdieu designaria “campo simbólico”: algum segmento social com suas regras endógenas de disputa ou manutenção de poder, seus atores na posição e na oposição, logo seus discursos mutuamente legitimadores.
Produção fracionada
O discurso que se constrói sobre uma “convergência” paradoxalmente divergente, não escaparia a essas condições humanas, digamos assim. Omitir o “capital”, consciente ou inconscientemente, visa despolitizar esse debate até para, possivelmente, focar a “política” ali onde os atores hegemônicos situam o seu campo preferencial de disputa, seja por força de suas vivências pessoais, profissionais e políticas, seja, daí, pelos seus hábitos cristalizados de pensar.
Antes de ser explicada tecnologicamente, a convergência (agora sem aspas) precisa ser entendida como um movimento de mudança da lógica de acumulação do capital, seja em seu conjunto, seja no campo específico das comunicações sociais. Assim como o velho modelo radiodifusão/telecomunicações/imprensa é um modelo histórico, construído nas condições econômicas, políticas e culturais das duas primeiras décadas do século 20, logo sujeito a superação como qualquer modelo histórico; a convergência é um novo modelo que se veio construindo a partir dos anos 1980, na esteira das grandes transformações kondratieffianas do capital ao longo da mesma década.
Ela resulta de investimentos do Estado (Estados Unidos, Japão, Eurolândia) e de grandes corporações capitalistas (Sony, Toshiba, Nokia, Phillips, Apple, Microsoft, Intel, IBM etc.), num processo que envolveu muitas disputas e desavenças, ao lado de acordos e alianças, ao longo dos últimos 20 anos. Em geral, esse processo aconteceu nos países capitalistas centrais e nós, brasileiros, à esquerda, no centro ou à direita, ignoramo-lo olímpica e provincianamente.
Essencialmente, nesta nova etapa, o capital iria necessitar de excelentes infraestruturas de comunicação capazes de reduzir a nanossegundos as “transações” financeiras, comerciais, mercadológicas entre qualquer ponto do globo e outro, não importando a distância. Daí as reformas “neoliberais” que tornaram corporações como AT&T, Telefónica, British Telecom, NTT, algumas outras, grandes jogadores globais e detentoras exclusivas das infraestruturas por onde trafegam hoje, no mundo, desde transferências de fundos na casa dos bilhões de dólares, até inocentes “torpedos” entre casais de namorados.
Ao mesmo tempo, para sustentar o processo permanente de produção e expansão do consumo, num mercado que não mais se expande horizontalmente, logo precisa estar sendo constantemente “renovado” (os mesmos consumidores jogando fora coisas “fora de moda” compradas há 6 meses ou 1 ano, para comprar novas coisas), os meios de comunicação precisariam ser completamente reestruturados, visando atender a uma nova realidade sociocultural na qual o consumo “de massa” ia dando lugar ao consumo “segmentado”.
Em síntese, o padrão “fordista”, um padrão tanto econômico quanto cultural, era substituído por um novo padrão, “flexível”, na definição de David Harvey, onde, a um processo de produção fracionado, segmentado, espacialmente descentralizado, conectado pelas redes mas não pelo cara a cara, corresponderia também uma cultura (de consumo) individualizada, atomizada, “customizada”, microidentitária.
Interesses entrecruzados
Desde a década 1980, nos países capitalistas centrais, esse novo padrão de consumo cultural começou a ser atendido por um novo modelo segmentado de televisão: a televisão por assinatura. E os “consumidores” em geral, aceitaram muito bem o novo formato já que correspondia melhor às suas novas “expectativas”. O fim dos monopólios públicos de telecomunicações e de radiodifusão nos países centrais permitiu avançar os novos serviços e, daí, a edificação de novos poderosos conglomerados mediáticos transnacionais, embora sediados em alguns pouquíssimos países, principalmente nos Estados Unidos.
Em pouco mais de dez anos (década 1990), a antiga radiodifusão aberta (representada nos EUA, pelas setuagenárias redes NBC, CBS e ABC; na Eurolândia, pela BBC e suas similares ditas “públicas”; no Japão, pela estatal NHK), perderam o monopólio das audiências que até então detinham, em favor dos novos canais CNN, Fox, Cartoon Network, ESPN etc., etc. Em muitos países, Estados Unidos entre eles, a audiência da TV aberta já não chega a 10% dos lares; em alguns, estatisticamente, caiu a zero. Em todo o mundo, hoje, metade dos lares que têm televisão já estão conectados ao serviço pago, por cabo ou satélite. As famílias preferiram trocar os seis ou sete canais de TV generalista aberta e “livre”, por centenas de canais segmentados ao gosto do freguês, mesmo que pagos.
Ao mesmo tempo, impulsionada pela America Online (AOL), pela Microsoft (Internet Explorer), pela Intel (chips para microcomputadores), tendo por trás os interesses do Estado estadunidense (ICANN), expandiu-se a internet mundo a fora, impulsionando novas práticas socioculturais de produção ou acesso a conteúdos audiovisuais, paralelamente ao desenvolvimento de novos “modelos de negócios” adaptados a essas práticas (Google, iPod-iTunes da Apple, Face-book etc.). Sobretudo as novas gerações são cada vez mais estimuladas, ou midiaticamente educadas, a se constituírem em audiências completamente adaptadas e inseridas nos “jardins murados” que se vão consolidando no controle da internet.
Este amplo universo de produção, programação e distribuição de conteúdo audiovisual é controlado, globalmente, por 10 ou 15 grandes corporações mediáticas, a maioria e as maiores delas centralizadas e sediadas nos Estados Unidos. Na impossibilidade de, num pequeno artigo, apresentarmos todas elas, descrevamos apenas uma: a Time-Warner, cuja sede fica em Nova York.
A corporação controla as seguintes “divisões” (ou “marcas”) produtoras de conteúdos (filmes, séries, programas de auditório, desenhos infantis, jornalismo etc.): HBO, CNN, Time Inc (revistas e jornais), Warner Brothers, Cartoon Network etc. Controla as seguintes “divisões” programadoras de conteúdos (ou “canais de televisão”, “salas de cinema”, “portais de internet”): HBO, TNT, TCM, Cartoon Network, AOL, Cinemax etc. Nos Estados Unidos, detém ainda uma operadora de cabo (TimeWarner Cable) e outros 47 canais “abertos” de televisão.
Como é da “natureza” do capitalismo avançado, a Time-Warner não tem propriamente um “dono”. Seu capital está distribuído por um amplo conjunto de acionistas, centralizados em fundos de pensão, clubes de investimento, bancos de investimento etc. Os principais desses acionistas são: Dodge&Cox (7,14% do capital), AXA (5,79%), Capital Group (4,6%), Fidelity (4,13%), Goldman Sachs (3,25%), Liberty Media (3%), Vanguard (2,95%) etc. Estes e outros repartem entre si os lucros de um faturamento mundial superior a USD 43 bilhões, em 2008.
O curioso é que podemos encontrar esses mesmos grupos financeiros participando no ca-pital das corporações que julgaríamos concorrentes da Time-Warner. O Fidelity, por exemplo, detém 5,5% do capital da Disney (segunda maior corporação global, disputando a liderança cabeça-a-cabeça com a Time-Warner); 11,5% do capital Google; 6,4% do capital da Apple; etc. O AXA também detém 2,9% do capital da Disney; 12,2% do capital da CBS; 1,26% do capital da Microsoft e 3,86% do capital da Apple. O Vanguard também participa do capital da Disney (2,9%), 2,5% do capital da Microsoft… desnecessário prosseguir. Os interesses desses conglomerados são intrinsecamente entrecruzados, inclusive, não raro, será possível identificar as mesmas pessoas ocupando cadeiras em diferentes conselhos e boards.
Heranças do passado
Todas essas grandes corporações midiáticas globais já estão presentes no Brasil, há mais de década. Hoje, em nosso país, cerca de 14 milhões de lares (cerca de 20% do total) já aderiram aos canais TNT, Cartoon Network, CNN, Fox, ESPN, Sony, Warner, HBO etc. Este número segue crescendo. A tendência mundial, tendência do capitalismo, evidentemente avança entre nós – e não poderia ser diferente. No entanto, avança sem que esta realidade presente e futura domine a agenda de debate sobre a democratização das comunicações, ainda presa a um passado em acelerada decomposição.
Mais de 70% dos lares brasileiros de “classe A” (e, no Brasil, qualquer família a duras penas de classe média é considerada “classe A”), já aderiram à TV por assinatura. “Classes B” e “C” acompanham, não raro no “gatonet”. Para eles, o destino da TV aberta já está selado. E o que se decida aí, pouco lhes incomodará. Importante será a “liberdade do consumidor” para cada vez mais informar-se pelo noticiário da CNN, assistir ao show da Oprah, ou acompanhar o Dr. House…
Entendendo que democracia e mercado não são, necessariamente, idéias e práticas complementares, fica a pergunta: como introduzir o debate democrático nessa nova configuração do capital? Enquanto a agenda estiver mais preocupada em resolver heranças de um passado que vai sendo rapidamente ultrapassado, e menos em enfrentar os desafios do presente, dificilmente construiremos respostas. E este novo mundo “convergente” (entre aspas) do capital midiático-financeiro com centros de decisão fora do país, poderá seguir avançando desregulamentado entre nós (diante de um outro que se quer sob “controle social”), produzindo seus indeléveis resultados subjetivos sem que a sociedade sequer venha a se dar conta das teias nas quais se enredou.
Chegará um dia em que sentiremos saudades da Globo…
***
[Marcos Dantas é professor da Escola de Comunicação da UFRJ, vice-presidente da União Latina de Economia Política da Comunicação – Capítulo Brasil (ULEPICC-Br)]
8/2/2012
Códigos deontológicos
Fonte: objETHOS – Observatório da Ética Jornalística
A conduta jornalística é regrada por códigos deontológicos. Eles são discutidos e elaborados no âmbito da própria profissão, são ditados por empresas ou associações de classe, ou ainda constam de documentos internos de organizações jornalísticas.
Conheça a Coleção de Códigos Deontológicos do objETHOS:
- ÁFRICA DO SUL – Código de Prática Profissional da Imprensa: nossa tradução
- ALEMANHA – Código de Imprensa Alemã: aqui Tradução para o português, aqui
- ARGENTINA – Código do Fórum de Jornalismo Argentino: tradução aqui
- AUSTRÁLIA – Código de Ética da Associação Australiana de Jornalistas: nossa tradução
- BANGLADESH – Código do Conselho de Imprensa: nossa tradução aqui
- BOTSUANA – Código de Ética: tradução
- BRASIL – Código da Associação Nacional dos Jornais (ANJ): linhas seguidas pelas empresas do setor.
- BRASIL – Código de Ética da Radiodifusão Brasileira: documento da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV (Abert)
- BRASIL – Código de Ética do Jornalista Brasileiro: quarta versão do documento liderado pela Fenaj e publicado em 2007.
- BRASIL – Princípios Éticos da Associação Nacional dos Editores de Revista (ANER): documento que orienta as publicações seriadas no Brasil.
- CANADÁ – Diretrizes Éticas da Associação Canadense de Imprensa: nossa tradução
- CHILE – Código da Ordem Chilena de Jornalistas: nossa tradução aqui
- CHINA – Código de Ética de Hong Kong: nossa tradução aqui
- ESPANHA – Código Deontológico da Catalunha: aqui
- ESPANHA – Código Deontológico da Espanha: leia a tradução está aqui
- EUA – The New York Times: manual de ética jornalística
- EUA – Associated Press: valores e princípios
- EUA – Código da American Society of Business Publication Editors: aqui
- EUA – Código da American Society of News Editors (ASNE): normas também conhecidas como Cânones do Jornalismo.
- EUA – Código da American Society of Newspaper Editors: aqui
- EUA – Código da Society of Profesional Journalists: aqui e nossa tradução aqui
- EUA – Código de Ética da Associated Press Managing Editors: aqui
- EUA – National Press Photographers Association: código de ética
- EUA – Online News Association: código de ética
- EUA – Radio-Television News Directors Association: código de conduta
- EUA – Society of American Business Editors and Writers: aqui
- EUROPA – Lista de códigos de países europeus: aqui
- FRANÇA – Carta dos Jornalistas Franceses: traduzida e original aqui
- GRÉCIA – Código de Ética Grego: aqui
- HOLANDA – Guias profissionais: aqui Tradução para o português, aqui
- ÍNDIA – Normas de Conduta Jornalística: nossa tradução aqui
- INDONÉSIA – Código do Conselho de Imprensa: aqui a nossa tradução
- IRAQUE – Código de Ética Iraquiano: aqui a nossa tradução
- JAPÃO – Cânone do Jornalismo Japonês: nossa tradução aqui
- MÉXICO – Código de Ética: tradução para o português
- MUNDO – Federação Internacional de Jornalistas (FIJ): declaração de princípios e conduta profissional
- NIGÉRIA – Documento da Organização de Imprensa Nigeriana: tradução aqui
- NORUEGA – Código de Ética da Imprensa: aqui
- PAQUISTÃO – Código do Conselho de Imprensa traduzido aqui
- PORTUGAL – Código de Ética: aqui
- QATAR – Código de Ética do Grupo Al Jazeera: tradução para o português
- QUÊNIA – Código adotado pelo Conselho de Mídia do Quênia: tradução para o português
- REINO UNIDO – Código de Conduta da União dos Jornalistas do Reino Unido: traduzido e no original
- REINO UNIDO – Código de Práticas dos Editores do Reino Unido: aqui
- REINO UNIDO – Guias editoriais da BBC: aqui
- RÚSSIA – Código dos Jornalistas Russos: aqui e nossa tradução
- SRI LANKA – Código de Ética dos Jornalistas em português
- SUÉCIA – Conduta dos jornalistas na TV, rádio e imprensa suecas: aqui
- TAILÂNDIA – Código de Ética: nossa tradução
- TANZÂNIA – Código do Conselho de Mídia da Tanzânia: nossa tradução
- TURQUIA – Código de Ética do Conselho de Imprensa Turco: o código e a tradução aqui
- ZIMBÁBUE – Código de Conduta para Profissionais de Mídia do Zimbábue: nossa tradução
7/2/2012
Diploma
Leia parecer sobre regulamentação da profissão de jornalista da revista Conjur de 20/6/2006
Os decretos que não foram recepcionados pela Constituição de 1988
“Tanto pela exigência do diploma, quanto pela invasão preconizada em áreas e atividades sociais que jamais poderão ser controladas por reservas instituídas por imposições legais autocráticas como a pretendida, o projeto agride frontalmente o Texto Constitucional em vigor e discrepa dos valores básicos e fundamentais constitutivos do Estado Democrático de Direito”
Para o advogado Lourival J. Santos não resta dúvidas que é inconstitucional o Projeto de Lei Complementar 79/04, aprovado pelo Congresso Nacional e submetido à apreciação do presidente Luis Inácio Lula da Silva para sanção. Santos é o autor do parecer sobre a matéria encaminhado ao presidente pela Associação Nacional de Jornais e Revistas, Associação Brasileira de Radio e TV e outras entidades patronais de comunicação. O presidente tem até o dia 28 de julho para sancionar ou vetar o projeto.
O Projeto de Lei reforça a regulamentação da profissão de jornalista já prevista no Decreto-Lei 972 de 1969. Prevê como premissa para o exercício da profissão a obrigatoriedade do diploma em curso superior de jornalismo. Além disso, relaciona as funções privativas dos profissionais habilitados. Às 11 funções previstas originalmente no decreto editado pelo regime militar, o novo projeto acrescenta outras 12.
O parecer sustenta que a nova Lei de Direito de Autor qualifica o trabalho jornalístico como obra intelectual protegida. Por esta razão a livre difusão da produção jornalística não poderá ser impedida pela ausência de um diploma, por força do que dispõe o inciso IX do artigo 5º da Constituição. Lourival Santos sustenta ainda que, a prevalecer o novo texto, o diploma de jornalista “funcionaria como salvo-conduto para a expressão cultural de qualquer natureza”.
Leia a integra do Parecer
OPINIÃO LEGAL SOBRE A INCONSTITUCIONALIDADE DO PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº 079/04
“As leis inconstitucionais não são leis.
O ato legislativo é o querer expresso da
legislatura, ao passo que a
Constituição é o querer expresso do
povo. A este cabe a supremacia. Se o
ato legislativo o contradiz, írrito será:
não é lei”. (Rui Barbosa, “Obras
Completas”, Vol. XXIV, Tomo III,
Edarte São Paulo, p. 53).
CONSIDERAÇÕES PREAMBULARES
Encontra-se nas mãos do Presidente da República, para apreciação, o Projeto de Lei Complementar n° 079/04, cujo objetivo é a regulamentação da profissão de jornalista. O texto em questão previu, como premissa básica, a obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício das funções nele relacionadas, com o que seguiu o Decreto-Lei n° 972/69, regulamentado pelo Decreto n° 83.284/79, além de ampliar, sobremaneira, em relação a estes dois últimos textos legais, o rol das funções que pretende sejam privativas do profissional de jornalismo.
Tanto pela exigência do diploma, quanto pela invasão preconizada em áreas e atividades sociais que jamais poderão ser controladas por reservas instituídas por imposições legais autocráticas como a pretendida, o projeto agride frontalmente o Texto Constitucional em vigor e discrepa dos valores básicos e fundamentais constitutivos do Estado Democrático de Direito, como adiante será explanado.
INCONSTITUCIONALIDADES QUE IMPÕEM O VETO TOTAL DO PROJETO Nº 79/04
I- Harmonia e independência entre os Poderes — O projeto deverá ser vetado, integralmente, com fundamento nos artigos 2° e 102, § 2° da C.F., porquanto tramitam no Judiciário mais de uma ação judicial discutindo a inconstitucionalidade da obrigatoriedade do diploma de jornalista para o exercício da função. Uma das ações, que tem a natureza de Ação Civil Pública, foi proposta pelo Ministério Público Federal e encontra-se em grau de Recurso Extraordinário remetido, em 06/07/2006, Guia n° 2006144718, ao Supremo Tribunal Federal.
A eventual sanção do Projeto n° 79 seria fator de forte desequilíbrio dos fundamentais princípios democráticos que consagram a harmonia e a independência entre os Poderes e alicerçam o modelo político adotado pelo País a partir de 88. Ademais, pelo art. 102, § 2° do Texto Fundamental, as decisões definitivas da Suprema Corte produzem eficácia contra todos e efeito vinculante. Logo, a eventual sanção correria o risco de aprovar um Projeto de Lei natimorto.
II- Obrigatoriedade do diploma de jornalista — O Texto Constitucional de 88 não recepcionou o Decreto-Lei nº 972/69 e o seu Decreto Regulamentador nº 83.284/79 no tocante a obrigatoriedade do diploma de jornalista.
Notáveis juristas manifestaram-se a respeito do assunto, em pareceres específicos, entre eles o hoje Excelso Ministro do STF, Dr. Eros Grau, que concluiu que o desenvolvimento da profissão de jornalista independe de diploma, uma vez que o seu exercício prende-se ao estofo cultural e conhecimentos específicos do exercente, sem expor a coletividade a qualquer fator de risco.
A obrigatoriedade do diploma é coerente no caso de outras profissões como a de médico, advogado, engenheiro, farmacêutico, etc., pois a ausência de conhecimentos técnicos adequados, somente adquiridos em cursos especializados, é fator de sérios riscos para a coletividade.
Além desses motivos, a nova Lei de Direito de Autor (nº 9.610/98) qualificou o trabalho jornalístico, de qualquer natureza, como obra intelectual protegida (arts. 5°, inciso XIII, letra “h”, 7º, inciso XIII e 17, §§ 1º e 2º, c.c. artº 5º, inciso XXVIII, letra “a” da C.F.), razão pela qual a livre difusão de tais criações jamais poderá ser impedida pela ausência de um diploma, por força do que dispõe a C.F., no art. 5º, inciso IX.
Países de primeiro mundo, como é o caso dos EEUU, onde os cursos de jornalismo são concorridos e de alto nível, não obrigam o diploma.
Acrescente-se a isto o direito constitucional do cidadão de ter assegurado o acesso à informação e às fontes de cultura nacional (arts. 5º, inciso XIV e 215, “caput” da C.F.), sem qualquer embaraço.
III- Arbitrariedade na instituição de reserva de mercado de trabalho — Ao considerar privativas de jornalistas todas as atividades desenvolvidas dentro dos veículos de mídia impressa e eletrônica, incluindo rádio, televisão e internet, o legislador acometeuse contra a Constituição Brasileira, que protege os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, inciso IV, c.c. com o art. 5°, inciso VIII da C.F.), como fatores fundamentais do Estado Democrático do Direito.
A prevalecer o texto, a liberdade do cidadão, independentemente do seu conhecimento técnico e cultural, estaria cerceada para os meios de comunicação em geral, apenas e tão somente pela eventual ausência de um diploma de jornalista, que funcionaria como salvo-conduto para a expressão cultural de qualquer natureza.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Impossibilidade jurídica da obrigatoriedade do diploma jornalístico
Editado sob a constância do regime militar, por Junta Militar formada pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, no uso das atribuições que lhes conferiam os Atos Institucionais n°s 5, de 13/12/1968 e nº 16 de 01/10/1969, o Decreto-Lei nº 972/69 (art. 4º, inciso V) instituiu a obrigatoriedade do diploma, com o objetivo de exercer o controle sobre a população de jornalistas do País, bem como das publicações da imprensa.
Como se vê, tal obrigatoriedade assenta-se sobre os ditames do AI-5, um dos textos mais censórios e totalitários de que se tem notícia na história política do País. Manter-se hoje a obrigatoriedade do diploma, quando se tem em vigor uma Constituição cidadã, que designa o estado brasileiro como Estado Democrático de Direito (Art. 1°, CF) e confere ao indivíduo o acesso pleno às informações culturais de interesse da coletividade (art. 5º, XIV), significa cercear a liberdade de expressão, a duras penas conquistada pela sociedade, ao ratificar o retrocesso àquele período de triste memória em que a expressão do pensamento constituía séria ameaça ao cidadão.
O saudoso jurista Pontes de Miranda, referiu-se à ausência da liberdade da manifestação do pensamento com as seguintes e precisas palavras: “a liberdade de pensar só para si, ocultando o pensamento, de nada valeria na ordem social, tiveram-na os escravos, têm-na os que vivem sob as formas autocráticas”. (”Comentários à Constituição” de 1967, Ed. RT, 2ª edição, 1971, p. 158).
Proposta de ampliação das atividades privativas do jornalista
Ampliar a abrangência das funções do jornalista, açambarcando as mais diversas áreas do conhecimento humano, representa a antítese do desenvolvimento cultural, uma vez que é sabido que os meios de comunicação, em razão do constante e notável avanço tecnológico, cada vez mais aproximam os Países e ampliam a possibilidade de intercâmbio cultural.
Neste caso, a sanção presidencial certamente contribuirá para o isolamento da imprensa brasileira, condenando-a a não poder contar com a imprescindível e profícua colaboração de verdadeiros especialistas em determinados assuntos, somente porque estes, independentemente da cultura e da experiência, não são diplomados em jornalismo.
O cientista, o pensador, o regente, o virtuose ou o especialista em futebol, seriam impedidos de dar publicamente sua contribuição cultural, ao contrário do que ocorre em outros Países, apenas por não terem cursado uma escola superior de jornalismo. Isto seria totalmente inconstitucional, pois agrediria a liberdade de expressão das atividades intelectual, artística e de comunicação, que são princípios pétreos consagrados pela Carta Magna.
Tal liberdade é reflexa no sentido de que somente existe e se justifica no direito exercido pelo indivíduo de ter acesso livre às informações de seu interesse, o que também é princípio constitucional básico (Art. 5°, XIV c/c Art. 215, caput da CF).
O ilustre constitucionalista Profº José Afonso da Silva, ao comentar a liberdade de informação e de ser informado, destacou que “A liberdade dominante é a de ser informado, a de ter acesso às fontes de informação, a de obtê-la”. (“Curso de Direito Constitucional Positivo”, Malheiros Editores, 22ª Edição, p. 246).
Pelo exposto, no nosso entendimento o PL 79/04 deverá ser totalmente vetado por manifesta inconstitucionalidade.
São Paulo, 18 de julho de 2006.
Maurício Cardoso é diretor de redação da revista Consultor Jurídico
Revista Consultor Jurídico, 20 de julho de 200
7/2/2012
Cartas de Adorno e Marcuse
Jornal “Folha de São Paulo”, domingo, 24 de agosto de 1997
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Em sua carta, Adorno justifica a Marcuse a razão de ter chamado a polícia quando estudantes ameaçaram, em 69, invadir o prédio do instituto em que dava aulas. A resposta de Marcuse é uma defesa da rebelião estudantil
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CARTA DE ADORNO A MARCUSE
Frankfurt am Main, 5 de maio de 1969
Caro Herbert,
Tua carta de 5 de abril, recebida durante minhas curtas férias em Baden-Baden, deixou-me extraordinariamente surpreso e, franqueza contra franqueza, magoado. Como sei muito bem que a controvérsia entre nós só se resolve oralmente, não gostaria de ficar até lá devendo a resposta.
Antes de mais nada, não entendo como a situação mudou decisivamente para ti depois de uma conversa, pois, segundo confirmas expressamente, ela não contradiz em nada minhas informações e não pode conter quase nada de novo. Pelo menos, penso, deverias ter me comunicado algumas divergências no relato e dado a possibilidade de exprimir-me sobre elas. Parece-me realmente impossível formar um juízo sobre a questão à distância de seiscentas milhas. Tu fizeste-o sem nem sequer me ouvir.
A sugestão de não falar aos estudantes nem mesmo num grande espaço público veio anteriormente de ti. Ela correspondia certamente às minhas intenções. Afinal, preciso defender os interesses do Instituto -nosso velho Instituto, Herbert-, e, podes acreditar em mim, esses interesses seriam imediatamente comprometidos por esse circo. A tendência, que se alastra, de cortar as subvenções, se fortaleceria violentamente. Por isso é melhor que tu, se queres discutir com os estudantes à vontade, que o faças inteiramente por tua própria conta e risco, sem envolver o Instituto ou o Seminário. Acredito poder inferir da tua carta que compreendes esta minha reação e que não me guardarás rancor por isso.
Para falar no jargão da Oposição Extraparlamentar, não se deve caluniar abstratamente a polícia. Só posso repetir-te que ela tratou os estudantes de maneira incomparavelmente mais tolerante que estes a mim. Isso ultrapassou todos os limites. Também sou de opinião diferente da tua no que diz respeito a quando se deve chamar a polícia. Recentemente, o sr. Cohn-Bendit disse-me, durante uma discussão numa associação profissional, que eu só teria o direito de procurar a polícia se alguém quisesse espancar-me a pauladas; respondi que então talvez fosse tarde demais. O caso da ocupação do Instituto não permitia nenhum comportamento diferente do nosso. Como o Instituto é uma fundação independente e não se encontra sob a proteção da Universidade, a responsabilidade por tudo o que aqui acontecesse recairia sobre Friedeburg e sobre mim. Os estudantes tinham a intenção, em vez de participar do Seminário, de “ocupar, de maneira diferente” o Instituto, como diziam antes; no que isso daria, com pichações e tudo o mais, pode-se imaginar. Hoje eu não reagiria de modo diferente de 31 de janeiro. A exigência que os estudantes me lançaram recentemente -fazer autocrítica pública-, considero-a puro stalinismo. Isso nada tem a ver com “business as usual”.
Sei que no tocante à relação entre teoria e prática não estamos longe um do outro, embora precisássemos algum dia discutir realmente essa relação (estou justamente trabalhando em teses que se ocupam disso). Também concordaria contigo que há momentos nos quais a teoria é impulsionada pela prática. No entanto, hoje nem uma tal situação domina objetivamente, nem o praticismo monótono e brutal, com que em todo caso nos encontramos confrontados aqui, tem qualquer coisa a ver com teoria.
A tua mais forte alegação consiste em dizer que a situação é tão horrível que se deve tentar quebrá-la, mesmo reconhecendo ser isso objetivamente impossível. Eu levo o argumento a sério. Mas considero-o falso. Nós, tu assim como eu, suportamos outrora uma situação muito mais terrível ainda, o assassinato dos judeus, sem que tivéssemos passado à prática, simplesmente porque nos era vedada. Considero como uma questão de autoconsciência ter claro o elemento da frieza em cada um de nós. Dito asperamente: encaro como um auto-engano que tu, em virtude do que ocorre no Vietnã ou em Biafra, não possas mais simplesmente viver sem participar das ações estudantis. Mas, se realmente se agir assim, então não se deve protestar apenas contra o horror das bombas de napalm, mas igualmente contra as indescritíveis torturas ao estilo chinês, que os vietcongues continuamente praticam. Se não se pensar nisso também, o protesto contra os americanos tem algo de ideológico. Max, com toda razão, dá grande valor precisamente a esse ponto. Justamente eu, que afinal deixei a América, devo ter uma certa razão na minha opinião.
Reclamas da expressão de Jürgen, “fascismo de esquerda”, como “contradictio in adjecto”. No entanto, és um dialético. Como se não existissem tais “contradictiones”, como se um movimento, em virtude de suas antinomias imanentes, não pudesse transformar-se em seu contrário. Parece-me não haver dúvidas de que o movimento estudantil, na sua atual configuração, e na verdade de imediato, desemboca justamente na tecnocratização da Universidade, a qual quer supostamente impedir. Parece-me igualmente inquestionável que atitudes como as que tive de observar e de cuja descrição poupo, a ti e a mim, possuem realmente algo daquela violência sem conceito que uma vez pertenceu ao fascismo.
Portanto, respondendo sem equívocos à tua pergunta: se vieres a Frankfurt para discutir com os estudantes que dão provas de uma regressão calculada contra todos nós, então deves fazê-lo por conta própria, não sob nossa égide. A decisão cabe unicamente a ti.
Naturalmente seria ótimo se pudéssemos encontrar-nos na Suíça com Max, mas duvido que isso possa realizar-se, pois ficaremos pouco tempo em Basiléia. Seria importante para nós conversas realmente infindáveis. Para isso, Zermat seria o melhor lugar, pois, apesar de não ter lagos italianos, nem por isso te desencorajou outrora. A propósito, no início de setembro estarei na Itália; por volta dos dias 8 e 9 é certo encontrar-me em Veneza.
Afetuosamente teu
Teddy
CARTA DE MARCUSE A ADORNO
Londres, 4 de junho de 1969
Caro Teddy
Ainda mais urgente que antes sinto a necessidade de falar francamente. Ergo:
Tua carta não dá a mais leve indicação que permita diagnosticar as razões da hostilidade dos estudantes contra o Instituto. Falas sobre os “interesses do Instituto”, exortando enfaticamente: “nosso velho Instituto, Herbert”. Não, Teddy. Não foi nosso velho Instituto que os estudantes invadiram. Sabes tão bem quanto eu que há uma diferença essencial entre o trabalho do Instituto nos anos 30 e seu trabalho na Alemanha de hoje. Esta diferença qualitativa não provém do desenvolvimento da própria teoria: as “subvenções” que mencionas incidentalmente são realmente tão incidentais? Sabes que concordamos na recusa de qualquer politização imediata da teoria. Mas a nossa (velha) teoria tem um conteúdo político interno, uma dinâmica política interna que hoje, mais do que nunca, exige uma posição política concreta. Isto não significa dar “conselhos práticos”, como me atribuis na tua entrevista ao “Spiegel”. Nunca fiz isso. Como tu, considero irresponsável aconselhar do alto da escrivaninha a ação àqueles que estão dispostos, com plena consciência, a fazerem quebrar-se a cabeça pela sua causa. Mas, no meu modo de ver, isso significa que, para continuar a ser nosso “velho Instituto”, devemos hoje escrever e agir diferentemente dos anos 30. Até mesmo a incólume teoria não está imune à realidade. Tão falso quanto negar a diferença entre ambas (como tu com razão censuras aos estudantes) é manter abstratamente a diferença na sua antiga configuração, quando a realidade na qual teoria e prática se incluem (ou se distanciam) se modifica.
De fato, não se deve “caluniar abstratamente” a polícia. É evidente que em determinadas situações eu também chamaria a polícia. Em relação à Universidade (e só em relação a ela) assim o formulei recentemente: “if there is a real threat of physical injury to persons, and of the destruction of material and facilities serving the educational function of the university”. Por outro lado, acredito e repito que, em determinadas situações, a ocupação de prédios e a interrupção de aulas são atos legítimos de protesto político. Exemplo: na Universidade da Califórnia, após a inimaginável e brutal repressão da manifestação de maio em Berkeley.
Talvez o mais importante: não posso descobrir em mim a “frieza em cada um de nós” perante a terrível conjuntura; se for “auto-engano”, já deve ter penetrado tanto na carne e no sangue que não é mais frieza. Da mesma forma, não é pelo menos possível que justamente a constatação da frieza seja auto-engano e “defense mechanism”? E, de qualquer modo, parece-me desumano que não se deva protestar contra o inferno do imperialismo sem ao mesmo tempo acusar aqueles que, desesperados, se defendem por todos os meios contra esse inferno. Como princípio metódico, transforma-se imediatamente em justificação e desculpa do agressor.
Passemos ao “fascismo de esquerda”: não esqueci evidentemente que há “contradictiones” dialéticas -mas também não esqueci que nem todas as “contradictiones” são dialéticas-, muitas são simplesmente falsas. A esquerda (autêntica) não pode, “em virtude de suas antinomias imanentes”, transformar-se na direita, sem mudar essencialmente sua base social e seu objetivo. No movimento estudantil nada indica uma mudança desse tipo.
Escreves, para introduzir teu conceito de “frieza”, que, por nosso lado, também suportamos o assassinato dos judeus sem passar à prática, “simplesmente porque nos era vedada”. Sim; e hoje, precisamente, ela não nos é vedada. A diferença entre as duas situações é a que existe entre fascismo e democracia burguesa. Esta nos dá também liberdades e direitos. Mas na medida em que a democracia burguesa (em virtude de suas antinomias imanentes) se fecha à transformação qualitativa, e isso por meio do próprio processo democrático-parlamentar, a oposição extraparlamentar torna-se a única forma de “contestation”: “civil disobedience”, ação direta. E as formas dessa ação não seguem mais o esquema tradicional. Nessas formas, há muitas coisas que condeno assim como tu, mas me conformo com elas e defendo-as contra seus adversários, porque precisamente a defesa e a manutenção do status quo e seu custo em vidas humanas são muito mais elevados. Aqui se encontra sem dúvida a mais profunda divergência entre nós. É para mim simplesmente impossível falar dos “chineses no Reno” enquanto os americanos estiverem no Reno.
É certo que tudo isso requer “conversas infindáveis”. Não compreendo porque só Zermatt seria o “melhor lugar” para tal. Um lugar de mais fácil acesso para todos os participantes parece-me no campo do possível. De 16 de agosto a 11 de setembro estaremos na Suíça; de 4 de julho a 14 de agosto na casa de Madame Bravais Turenne, 06 Cabris, França.
Afetuosamente teu
As cartas reproduzidas acima pertencem ao Arquivo Herbert Marcuse de Frankfurt. Foram cedidas pela revista “praga” (Ed. Hucitec, tel. 011/530-4532), que as publicará, com outras mais, em seu número 3, a sair neste mês.
Tradução de Isabel Maria Loureiro
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7/2/2012
A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas
Na opinião dos sociólogos, a perda do apoio que a religião objetiva fornecia, a dissolução dos últimos resíduos pré-capitalistas, a diferenciação técnica e social e a extrema especialização levaram a um caos cultural. Ora, essa opinião encontra a cada dia um novo desmentido. Pois a cultura contemporânea confere a tudo um ar de semelhança. O cinema, o rádio e as revistas constituem um sistema. Cada setor é coerente em si mesmo e todos o são em conjunto. Até mesmo as manifestações estéticas de tendências políticas opostas entoam o mesmo louvor do ritmo de aço. Os decorativos prédios administrativos e os centros de exposição industrial mal se distinguem nos países autoritários e nos demais países. Os edifícios monumentais e luminosos que se elevam por toda a parte são os sinais exteriores do engenhoso planejamento das corporações internacionais, para o qual já se precipitava a livre iniciativa dos empresários, cujos monumentos são os sombrios prédios residenciais e comerciais de nossas desoladoras cidades. Os prédios mais antigos em torno dos centros urbanos feitos de concreto já parecem slums [cortiços] e os novos bungalows na periferia da cidade já proclamam, como as frágeis construções das feiras internacionais, o louvor do progresso técnico e convidam a descartá-los como latas de conserva após um breve período de uso. Mas os projetos de urbanização que, em pequenos apartamentos higiênicos, destinam-se a perpetuar o indivíduo como se ele fosse independente, submetem-no ainda mais profundamente a seu adversário, o poder absoluto do capital. Do mesmo modo que os moradores são enviados para os centros, como produtores e consumidores, em busca de trabalho e diversão, assim também as células habitacionais cristalizam-se em complexos densos e bem organizados. A unidade evidente do macrocosmo e do microcosmo demonstra para os homens o modelo de sua cultura: a falsa identidade do universal e do particular. Sob o poder do monopólio, toda cultura de massas é idêntica, e seu esqueleto, a ossatura conceitual fabricada por aquele, começa a se delinear. Os dirigentes não estão mais sequer muito interessados em encobri-lo, seu poder se fortalece quanto mais brutalmente ele se confessa de público. O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio, eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias, e as cifras publicadas dos rendimentos de seus diretores gerais suprimem toda dúvida quanto à necessidade social de seus produtos.
Os interessados inclinam-se a dar uma explicação tecnológica da indústria cultural. O fato de que milhões de pessoas participam dessa indústria imporia métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais. O contraste técnico entre poucos centros de produção e uma recepção dispersa condicionaria a organização e o planejamento pela direção. Os padrões teriam resultado originariamente das necessidades dos consumidores: eis porque são aceitos sem resistência. De fato, o que explica é o círculo da manipulação e da necessidade retroativa., no qual a unidade do sistema se torna cada vez mais coesa. O que não se diz é que o terreno no qual a técnica conquista seu poder sobre a sociedade é o poder que os economicamente mais fortes exercem sobre a sociedade. A racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia. Por enquanto, a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a lógica da obra e a do sistema social. Isso, porém, nãoi deve ser atribuído a nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia atual. A necessidade que talvez pudesse escapar ao controle central já é recalcada pelo controle da consciência individual. A passagem do telefone ao rádio separou claramente os papéis. Liberal, o telefone permitia que os participantes ainda desempenhassem o papel do sujeito. Democrático, o rádio transforma-os a todos igualmente em ouvintes, para entregá-los autoritariamente aos programas, iguais uns aos outros, das diferentes estações. Não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica e as emissões privadas são submetidas ao controle. Elas limitam-se ao domínio apócrifo dos “amadores”, que ainda por cima são organizados de cima para baixo. No quadro da rádio oficial, porém, todo traço de espontaneidade no público é dirigido e absorvido, numa seleção profissional, por caçadores de talentos, competições diante do microfone e toda espécie de programas patrocinados. Os talentos já pertencem à indústria muito antes de serem apresentados por ela: de outro modo não se integrariam tão fervorosamente. A atitude do público que, pretensamente e de fato, favorece o sitema da indústria cultural é uma parte do sistema, não sua desculpa. Quando um ramo artístico segue a mesma receita usada por outro muito afastado dele quanto aos recursos e ao conteúdo; quando, finalmente, os conflitos dramáticos das novelas radiofônicas tornam-se o exemplo pedagógico para a solução de dificuldades técnicas, que, à maneira do jam [improvisação jazzística], são dominadas do mesmo modo que nos pontos culminantes da vida jazzística; ou quando a “adaptação” deturpadora de um movimento de Beethoven se efetua do mesmo modo que a adaptação de um romance de Tolstoi pelo cinema, o recurso aos desejos espontâneos do público torna-se uma desculpa esfarrapada. Uma explicação que se aproxima mais da realidade é a explicação a partir do peso específico do aparelho técnico e do pessoal, que devem todavia ser compreendidos, em seus menores detalhes, como partes do mecanismo econômico de seleção. Acresce a isso o acordo, ou pelo menos a determinação comum dos poderosos executivos, de nada produzir ou deixar passar que não corresponda a suas tabelas, à idéia que fazem dos consumidores e, sobretudo, que não se assemelha a eles próprios.
Se, em nossa época, a tendência social objetiva se encarna nas obscuras intenções subjetivas dos diretores gerais, estas são basicamente as dos setores mais poderosos da indústria: aço, petróleo, eletricidade, química. Comparados a esses, os monopólios culturais são fracos e dependentes. Eles têm que se apressar em dar razão aos verdadeiros donos do poder, para que sua esfera na sociedade de massas ─ esfera essa que produz um tipo específico de mercadoria que ainda tem muito a ver com o liberalismo bonachão e os intelectuais judeus ─ não seja submetida a uma série de expurgos. A dependência em que se encontra a mais poderosa sociedade radiofônica em face da indústria elétrica, ou a do cinema relativamente aos bancos, caracteriza a esfera inteira, cujos setores individuais por sua vez se interpenetram numa confusa trama econômica. Tudo está tão estreitamente justaposto que a concentração do espírito atinge um volume tal que lhe permite passar por cima da linha demarcatória entre as diferentes firmas e setores técnicos. A unidade implacável da indústria atesta a unidade em formação da política. As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidade serve apenas para uma quantificação mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com seu level [nível], previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricado para seu tipo. Reduzidos a um simples material estatístico, os consumidores são distribuídos nos mapas dos institutos de pesquisa (que não se distinguem mais dos de propaganda) em grupos de rendimentos assinalados por zonas vermelhas, verdes e azuis.
O esquematismo do procedimento mostra-se no fato de que os produtos mecanicamente diferenciados acabam por se revelar sempre como a mesma coisa. A diferença entre a série Chrysler e a série General Motors é no fundo uma distinção ilusória, como já sabe toda criança interessada em modelos de automóveis. As vantagens e desvantagens que os conhecedores discutem servem apenas para perpetuar a ilusão da concorrência e da possibilidade de escolha. O mesmo se passa com as produções de Warner Brothers e da Metro Goldwyn Mayer. Até mesmo as diferenças entre os modelos mais caros e mais baratos da mesma firma se reduzem cada vez mais: nos automóveis, elas se reduzem ao número de cilindros, capacidade, novidade dos gadgets [acessórios], nos filmes ao número de estrelas, á exuberância da técnica, do trabalho e do equipamento, e ao emprego de fórmulas psicológicas mais recentes. O critério unitário de valor consiste na dosagem da conspicuous production [produção ostensiva], do investimento ostensivo. Os valores orçamentários da indústria cultural nada têm a ver com os valores objetivos, com o sentido dos produtos. Os próprios meios técnicos tendem cada vez mais a se uniformizar. A televisão visa uma síntese do rádio e do cinema, que é retardada enquanto os interessados não se põem de acordo, mas cujas possibilidades ilimitadas prometem aumentar o empobrecimento dos materiais estéticos a tal ponto que a identidade mal disfarçada dos produtos da indústria cultural pode vir a triunfar abertamente já amanhã ─ numa realização escarninha do sonho wagneriano da obra de arte total. A harmonização da palavra, da imagem e da música logra um êxito ainda mais perfeito do que no Tristão, porque os elementos sensíveis ─ que registram sem protestos, todos eles, a superfície da realidade social ─ são em princípio produzidos pelo mesmo processo técnico e exprimem sua unidade como seu verdadeiro conteúdo. Esse processo de elaboração integra todos os elementos da produção, desde a concepção do romance (que já tinha um olho voltado para o cinema) até o último efeito sonoro. Ele é o triunfo do capital investido. Gravar sua onipotência no coração dos esbulhados que se tornaram candidatos a jobs [empregos] como a onipotência de seu senhor, eis aí o que constitui o sentido de todos os filmes, não importa o plot [enredo] escolhido em cada caso pela direção de produção.
[ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985, p. 113-117]
Theodor Wiesengrund Adorno (1903-1969) e Max Horkheimer (1895-1973) foram expoentes do marxismo da chamada Escola de Frankfurt, em torno da qual gravitaram Walter Benjamin, Herbert Marcuse e Erich Fromm, entre outros intelectuais alemães antifascistas.
Fonte: Socialismo
EXCURSO 2
Juliette ou esclarecimento e moral
Nas palavras de Kant, o esclarecimento “é a saída do homem de sua menoridade, da qual é o próprio culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir de seu entendimento sem a direcção de outrem” (l). “Entendimento sem a direcção de outrem” é o entendimento dirigido pela razão. Isso significa simplesmente que, graças a sua própria coerência, ele reúne em um sistema os diversos conhecimentos isolados. “A razão… tem por único objecto o entendimento e sua aplicação funcional.” (2) Ela estabelece, “como objectivo das operações do entendimento, uma certa unidade colectiva” (3), e essa unidade é o sistema. Seus preceitos são instruções para a construção hierárquica dos conceitos. Em Kant, tanto quanto em Leibniz e Descartes, a racionalidade consiste em “levar a cabo a conexão sistemática, tanto ao subir aos géneros superiores quanto ao descer às espécies inferiores” (4). O aspecto “sistemático” do conhecimento consiste na “conexão dos conhecimentos a partir de um princípio” (5). O pensamento, no sentido do esclarecimento, é a produção de uma ordem científica unitária e a derivação do conhecimento factual a partir de princípios, não importa se estes são interpretados como axiomas arbitrariamente escolhidos, ideias inatas ou abstracções supremas. As leis lógicas estabelecem as relações mais gerais no interior da ordem, elas as definem. A unidade reside na concordância. O princípio da contradição é o sistema in nuce. O conhecimento consiste na subsunção a princípios. Ele coincide com o juízo que se inscreve no sistema. Um pensamento que não se oriente para o sistema é sem direcção ou autoritário. A razão fornece apenas a ideia da unidade sistemática, os elementos formais de uma sólida conexão conceptual. Todo objectivo a que se refiram os homens como um discernimento da razão é, no sentido rigoroso do esclarecimento, desvario, mentira, “racionalização”, mesmo que os filósofos dediquem seus melhores esforços para evitar essa consequência e desviar a atenção para o sentimento filantrópico. A razão é “um poder… de derivar o particular do universal” (6). A homogeneidade do universal e do particular é garantida, segundo Kant, pelo “esquematismo do entendimento puro”. Assim se chama o funcionamento inconsciente do mecanismo intelectual que já estrutura a percepção em correspondência com o entendimento. O entendimento imprime na coisa como qualidade objectiva a inteligibilidade que o juízo subjectivo nela encontra, antes mesmo que ela penetre no ego. Sem esse esquematismo, em suma, sem a intelectualidade da percepção, nenhuma impressão se ajustaria ao conceito, nenhuma categoria ao exemplar, e muito menos o pensamento teria qualquer unidade, para não falar da unidade do sistema, para a qual porém tudo está dirigido. Produzir essa unidade é a tarefa consciente da ciência. Se “todas as leis empíricas… são apenas determinações particulares das leis puras do entendimento” (7), a investigação deve cuidar sempre para que os princípios permaneçam correctamente ligados aos juizos factuais. “Essa concordância da natureza com nosso poder de conhecer é pressuposta a priori … pelo juízo” (8). Ela é o “fio condutor” (9) para a experiência organizada.
O sistema deve ser conservado em harmonia com a natureza. Do mesmo modo que os factos são previstos a partir do sistema, assim também os factos devem por sua vez confirmá-lo. Os factos, porém, pertencem à práxis. Eles caracterizam sempre o contacto do sujeito individual com a natureza como objecto social: a experiência é sempre um agir e um sofrer reais. É verdade que, na física, a percepção pela qual a teoria se deixa testar se reduz em geral à centelha eléctrica que relampeja na aparelhagem experimental. Sua ausência é, via de regra, sem consequência prática, ela destrói apenas uma teoria ou, no máximo, a carreira do assistente responsável pelo experimento. As condições do laboratório, porém, são a excepção. O pensamento que não consegue harmonizar o sistema e a intuição desrespeita algo mais do que simples impressões visuais isoladas: ele entra em conflito com a prática real. Não apenas a ocorrência esperada deixa de ter lugar, mas também o inesperado acontece: a ponte cai, a sementeira definha, o remédio faz adoecer. A centelha que assinala da maneira mais pregnante a falha no pensamento sistemático, o desrespeito da lógica, não é nenhuma percepção fugidia, mas a morte súbita. O sistema visado pelo esclarecimento é a forma de conhecimento que lida melhor com os factos e mais eficazmente apoia o sujeito na dominação da natureza. Seus princípios são o da autoconservação. A menoridade revela-se como a incapacidade conservar a si mesmo. O burguês nas figuras sucessivas do senhor de escravos, do empresário livre e do administrador é o sujeito lógico do esclarecimento.
As dificuldades no conceito da razão, provenientes do facto de que seus sujeitos, os portadores de uma e a mesma razão, se encontram em oposição uns aos outros, estão escondidas no esclarecimento ocidental por trás da aparente clareza de seus juízos. Na Crítica da Razão Pura, ao contrário, elas se exprimem na relação obscura do ego transcendental com o ego empírico e nas demais contradições não resolvidas. Os conceitos kantianos são ambíguos. A razão contém enquanto ego transcendental supra-individual a Ideia de uma convivência baseada na liberdade, na qual os homens se organizem como um sujeito universal e superem o conflito entre a razão pura e a empírica na solidariedade consciente do todo. A Ideia desse convívio representa a verdadeira universalidade, a Utopia. Mas ao mesmo tempo, a razão constitui a instância do pensamento calculador que prepara o mundo para os fins da autoconservação e não conhece nenhuma outra função senão a de preparar o objecto a partir de um mero material sensorial como material para a subjugação. A verdadeira natureza do esquematismo, que consiste em harmonizar exteriormente o universal e o particular, o conceito e a instância singular, acaba por se revelar na ciência actual como o interesse da sociedade industrial. O ser é intuído sob o aspecto da manipulação e da administração. Tudo, inclusive o indivíduo humano, para não falar do animal, converte-se num processo reiterável e substituível, mero exemplo para os modelos conceituais do sistema. O conflito entre a ciência que serve para administrar e reificar, entre o espírito público e a experiência do indivíduo, é evitado pelas circunstâncias. Os sentidos já estão condicionados pelo aparelho conceptual antes que a percepção ocorra, o cidadão vê a priori o mundo como a matéria com a qual ele o produz para si próprio. Kant antecipou intuitivamente o que só Hollywood realizou conscientemente: as imagens já são pré-censuradas por ocasião de sua própria produção segundo os padrões do entendimento que decidirá depois como devem ser vistas. A percepção pela qual o juízo público se encontra confirmado já estava preparada por ele antes mesmo de surgir. Se é verdade que a secreta utopia contida no conceito da razão atravessava as diferenças ocasionais dos sujeitos apontando para seu interesse idêntico recalcado, por outro lado a razão, na medida em que funciona condicionada pelos fins como uma mera ciência sistemática, nivela com essas diferenças justamente o interesse idêntico. As únicas determinações válidas que ela admite são as classificações da actividade social. Ninguém é diferente daquilo em que se converteu: um membro útil, bem-sucedido ou fracassado, de grupos profissionais e nacionais. Ele é um representante qualquer de seu tipo geográfico, sociológico. A lógica é democrática, nela os grandes não têm nenhuma vantagem sobre os pequenos. Aqueles pertencem à categoria das pessoas eminentes, ao passo que estes se contam entre os objectos eventuais da assistência social. A ciência em geral não se comporta com relação a natureza e aos homens diferentemente da ciência actuarial, em particular, com relação à vida e à morte. Quem morre é indiferente, o que importa é a proporção das ocorrências relativamente às obrigações da companhia. É a lei do grande número, não o caso individual, que se repete sempre na fórmula. A concordância do universal e do particular também não está mais oculta em um intelecto que percebe cada particular tão-somente como caso do universal e o universal tão-somente como o lado do particular pelo qual ele se deixa pegar e manejar. A ciência ela própria não tem consciência de si, ela é um instrumento, enquanto o esclarecimento é a filosofia que identifica a verdade ao sistema científico. A tentativa de fundamentar essa identidade, que Kant empreendeu ainda numa intenção filosófica, levou a conceitos que, no plano científico, são destituídos de sentido, porquanto não são simples instruções em vista da manipulação segundo as regras do jogo. A ideia de uma autocompreensão da ciência contradiz a ideia da própria ciência. A obra de Kant transcende a experiência como simples operação, razão por que ela é hoje – em virtude de seus próprios princípios – renegada pelo esclarecimento como dogmática. Com a confirmação do sistema científico como figura da verdade – confirmação essa que é um resultado da obra de Kant – o pensamento sela sua própria nulidade, pois a ciência é um exercício técnico, tão afastado de uma reflexão sobre seus próprios fins como o são as outras formas de trabalho sob a pressão do sistema.
As doutrinas morais do esclarecimento dão testemunho da tentativa desesperada de colocar no lugar da religião enfraquecida um motivo intelectual para perseverar na sociedade quando o interesse falha. Como autênticos burgueses, os filósofos pactuam na prática com as potências que sua teoria condena. As teorias são duras e coerentes, as doutrinas morais propagandísticas e sentimentais, mesmo quando parecem rigoristas, ou então são golpes de força consecutivos à consciência da impossibilidade de derivar a moral, como o recurso kantiano às forças éticas como um facto. Sua tentativa de derivar de uma lei da razão o dever do respeito mútuo – ainda que empreendida de maneira mais prudente do que toda a filosofia ocidental – não encontra nenhum apoio na crítica. É a tentativa usual do pensamento burguês de dar à consideração, sem a qual a civilização não pode existir, uma fundamentação diversa do interesse material e da força, sublime e paradoxal como nenhuma outra tentativa anterior, e efémera como todas elas. O burguês que deixasse escapar um lucro pelo motivo kantiano do respeito à mera forma da lei não seria esclarecido, mas supersticioso – um tolo. A raiz do optimismo kantiano, segundo o qual o agir moral é racional mesmo quando a infâmia tem boas perspectivas, é o horror que inspira a regressão à barbárie. Caso desaparecesse – escreve Kant, seguindo aqui a lição de Haller (10) – uma dessas grandes forças éticas, o amor recíproco e o respeito, “então o nada ( da imoralidade) se abriria como um abismo para tragar como uma gota d’água o reino inteiro dos seres ( morais)”. Mas, segundo Kant, as forças éticas, perante a razão científica, são de facto impulsos e comportamentos não menos neutros do que as forças aéticas, nas quais se convertem tão logo deixem de se orientar para aquela possibilidade oculta, buscando a reconciliação com o poder. O esclarecimento expulsa da teoria a diferença. Ele considera as paixões “ac si quaestio de lineis, planis aut de corporibus esset” (11). A ordem totalitária levou isso muito a sério. Liberado do controle de sua própria classe, que ligava o negociante do século dezanove ao respeito e amor recíproco kantianos, o fascismo, que através de uma disciplina férrea poupa o povo dos sentimentos morais, não precisa mais observar disciplina alguma. Em oposição ao imperativo categórico e em harmonia tanto mais profunda com a razão pura, ele trata os homens como coisas, centros de comportamentos. Os dirigentes estavam dispostos a proteger o mundo burguês contra o oceano da violência aberta que realmente assolou a Europa, apenas enquanto a concentração económica ainda não havia progredido suficientemente. Antes, só os pobres e os selvagens estavam expostos à fúria dos elementos desencadeados pelo capitalismo. Mas a ordem totalitária instala o pensamento calculador em todos os seus direitos e atém-se à ciência enquanto tal. Seu cânon é sua própria eficiência sanguinária. A filosofia, da crítica de Kant à Genealogia de Nietzsche, proclamara-o; só um desenvolveu-o em todos os pormenores. A obra do marquês de Sade mostra o “entendimento sem a direcção de outrem”, isto é, o sujeito burguês liberto de toda tutela.
A autoconservação é o princípio constitutivo da ciência, a alma da tábua das categorias, mesmo quando deve ser deduzida idealisticamente como em Kant. Até mesmo o ego, a unidade sintética da apercepção, a instância que Kant define como o ponto supremo a que é preciso ligar a lógica inteira (12), é na verdade, ao mesmo tempo, o produto e a condição da existência material. Os indivíduos, que têm de cuidar de si mesmos, desenvolvem o ego como a instância da visão antecipadora e da visão de conjunto reflexionantes. Ao longo das gerações, o ego se expande e se contrai com as perspectivas da autonomia económica e da propriedade produtiva. Finalmente, ele passa dos burgueses desapropriados para os donos-de-trustes totalitários, cuja ciência acabou por se reduzir ao conjunto de métodos de reprodução da sociedade de massas submetida. Sade erigiu um primeiro monumento a seu sentido de planejamento. Graças à sua inflexível organização, a conjuração dos poderosos contra o povo está tão próxima do espírito esclarecido desde Maquiavel e Hobbes quanto a república burguesa. Este espírito só é hostil à autoridade, quando ela não tem o poder de impor a obediência, e à força quando esta não é um facto. Enquanto nos abstrairmos de quem emprega a razão, ela terá tanta afinidade com a força quanto com a mediação; conforme a situação do indivíduo e dos grupos, ela faz com que a paz ou a guerra, a tolerância ou a repressão, apareçam como o melhor. Como ela desmascara nos objectivos materialmente determinados o poderio da natureza sobre o espírito, como ameaça à integridade de sua autolegislação, a razão se encontra, formal como é, à disposição de todo interesse natural. O pensamento torna-se um puro e simples órgão e se vê rebaixado à natureza. Para os governantes, porém, os homens tornam-se uma espécie de material, como o é a natureza inteira para a sociedade. Após o breve interlúdio do liberalismo, quando os burgueses mantiveram uns aos outros em xeque, a dominação revela-se como um terror arcaico sob a forma racionalizada do fascismo. “Então”, diz o príncipe de Francavilla durante um sarau na corte do rei Ferdinando de Nápoles, “é pelo mais extremo terror que é preciso substituir as quimeras religiosas. Liberte-se o povo do temor a um inferno futuro, e ele se entregará em seguida, destruído o medo, a tudo. Em vez disso, substitua-se esse pavor quimérico por leis penais de uma severidade prodigiosa e que atinjam a ele apenas. Pois só ele perturba o Estado: é em sua classe apenas que nascem os descontentes. Que importa ao rico a ideia de um freio que não cai jamais sobre sua cabeça, se ele compra com essa vã aparência o direito de atormentar todos os que vivem sob seu jugo? Não encontraremos ninguém nessa classe que não permita que se imponha a ele a mais densa sombra da tirania, desde que sua realidade recaia sobre os outros” (13). A razão é o órgão do cálculo, do plano, ela é neutra com respeito a objectivos, seu elemento é a coordenação. Aquilo que Kant fundamentou transcendentalmente, a afinidade entre o conhecimento e o plano, que imprime o carácter de uma inescapável funcionalidade à vida burguesa integralmente racionalizada, inclusive em suas pausas para respiração, Sade realizou empiricamente um século antes do advento do desporto. As equipes desportivas modernas, cuja cooperação está regulada de tal sorte que nenhum membro tenha dúvidas sobre seu papel e para cada um haja um suplente a postos, encontram seu modelo exacto nos teams sexuais de Juliette, onde nenhum instante fica ocioso, nenhuma abertura do corpo é desdenhada, nenhuma função permanece inactiva. No desporto, assim como em todos os ramos da cultura de massas, reina uma actividade intensa e funcional, de tal modo que só o espectador perfeitamente iniciado pode compreender a diferença das combinações, o sentido das peripécias, determinado pelas regras arbitrariamente estabelecidas. A estrutura arquitecónica própria do sistema kantiano, como as pirâmides de ginastas das orgias de Sade e os princípios das primeiras lojas maçónicas burguesas (a imagem cínica que a espelha é o rigoroso regulamento da sociedade de libertinos das 120 journées anuncia uma forma de organização integral da vida desprovida de todo fim tendo um conteúdo determinado. Mais do que o prazer, o que parece importar em semelhantes formalidades é o afã com que são conduzidas, a organização, do mesmo modo que em outras épocas desmitologizadas, a Roma dos Césares e do Renascimento, ou o barroco, o esquema da actividade pesava mais do que seu conteúdo. Nos tempos modernos, o esclarecimento desligou as Idéias de harmonia e perfeição de sua hipostasiação no além religioso e, sob a forma do sistema, deu-as como critérios às aspirações humanas. Depois que a utopia que instilara a esperança na Revolução francesa penetrou – potente e impotente – ao mesmo tempo na música e na filosofia alemãs, a ordem burguesa estabelecida funcionalizou completamente a razão. Ela se tornou a finalidade sem fim que, por isso mesmo, se deixa atrelar a todos os fins. Ela é o plano considerado em si mesmo. O Estado totalitário manipula as nações. Neste sentido, Sade escreve: “É preciso, replicou o príncipe, que o governo regule ele próprio a população, que ele tenha em suas mãos todos os meios de extingui-la, se ele a teme; de aumentá-la, se ele o crê necessário; e que ele não tenha jamais outra balança para sua justiça senão a de seus interesses ou de suas paixões, unicamente combinados com as paixões e os interesses daqueles que, como acabamos de dizer, receberam dele toda a porção de autoridade necessária para centuplicar a sua própria” (14). O príncipe indica o caminho trilhado desde sempre pelo imperialismo como a figura mais terrível da ratio. “…ateizai e desmoralizai incessantemente o povo que quereis subjugar; enquanto ele não adorar um deus diverso do vosso, não tiver costumes diferentes dos vossos, sereis sempre seu soberano… em compensação deixai a ele a mais extensa faculdade criminal, puni-o somente quando seus dardos se dirigirem contra vós” (15).
Como a razão não estabelece objectivos materiais, todos os aspectos estão igualmente distantes dela. Eles são puramente naturais. O princípio segundo o qual a razão está simplesmente oposta a tudo o que é irracional fundamenta a verdadeira oposição entre o esclarecimento e a mitologia. A mitologia só conhece o espírito na medida em que este está imerso na natureza, como potência natural. Assim como as forças exteriores, os impulsos internos são para ela potências vivas de origem divina ou demoníaca. O esclarecimento, ao contrário, repõe toda coerência, sentido, vida, dentro da subjectividade que só vem a se constituir propriamente nesse processo de reposição. A razão é para ele o agente químico que absorve a própria substância das coisas e a volatiza na pura autonomia da própria razão. Para escapar ao medo supersticioso da natureza, ela pôs a nu todas as figuras e entidades objectivas, sem excepção, como disfarces de um material caótico, amaldiçoando sua influência sobre a humanidade como escravidão, até que o sujeito se convertesse – em conformidade com sua Ideia – na única autoridade irrestrita e vazia. Toda força da natureza reduziu-se a uma simples e indiferenciada resistência ao poder abstracto do sujeito. A mitologia particular de que o esclarecimento ocidental (até mesmo sob a forma do calvinismo) teve de se desembaraçar era a doutrina católica da ordo e a religião popular pagã que continuava a viajar à sua sombra. Liberar os homens de sua influência, tal era o objectivo da filosofia burguesa. A liberação, porém, foi mais longe do que esperavam seus autores humanos. A economia de mercado que se viu desencadeada era ao mesmo tempo a forma actual da razão e a potência na qual a razão se destroçou. Os reaccionários românticos nada mais fizeram do que exprimir a experiência dos próprios burgueses, a saber, que em seu mundo a liberdade tendia à anarquia organizada. A crítica da contra-revolução católica provou que tinha razão contra o esclarecimento, assim como este tinha razão contra o catolicismo. O esclarecimento comprometera-se com o liberalismo. Se todos os afectos se valem, a autoconservação – que domina de qualquer modo a figura do sistema – parece constituir a fonte mais provável das máximas de acção. É ela que viria a ser liberada no mercado livre. Os escritores sombrios dos primórdios da burguesia, como Maquiavel, Hobbes, Mandeville, que foram os porta-vozes do egoísmo do eu, reconheceram por isso mesmo a sociedade como o princípio destruidor e denunciaram a harmonia, antes que ela fosse erigida em doutrina oficial pelos autores luminosos, os clássicos. Aqueles louvaram a totalidade da ordem burguesa porque viam nela o horror que, ao fim e ao cabo, tragava a ambos, o universal e o particular, a sociedade e o eu. Com o desenvolvimento do sistema económico, no qual o domínio do aparelho económico por grupos privados divide os homens, a autoconservação confirmada pela razão, que é o instinto objectualizado do indivíduo burguês, revelou-se como um poder destrutivo da natureza, inseparável da autodestruição. Estes dois poderes passaram a se confundir turvamente. A razão pura tornou-se irrazão, o procedimento sem erro e sem conteúdo. Mas a utopia que anunciava a reconciliação da natureza e do eu surgiu com a vanguarda revolucionária de seu esconderijo na filosofia alemã, e se apresentou, de um modo ao mesmo tempo racional e irracional, como a Ideia de uma associação de homens livres, atraindo para si toda a fúria da ratio. Na sociedade tal como ela é, a autoconservação permanece livre da utopia denunciada como mito, apesar das pobres tentativas moralistas de propagar a humanidade como o mais racional dos meios. Para os dirigentes, a forma astuciosa da autoconservação é a luta pelo poder fascista e, para os indivíduos, é a adaptação a qualquer preço à injustiça. A razão esclarecida é tão incapaz de encontrar uma medida para graduar um instinto em si mesmo e relativamente aos demais, como para ordenar o universo em esferas. Muito acertadamente, ela desmascarou a concepção de uma hierarquia na natureza como um reflexo da sociedade medieval, e as tentativas posteriores de comprovar uma hierarquia de valores nova e objectiva trazem na testa o estigma da mentira. O irracionalismo que se denuncia nessas reconstruções vazias está muito longe de resistir à ratio industrial. Se a grande filosofia, representada por Leibniz e Hegel, descobrira também uma pretensão de verdade nas manifestações subjectivas e objectivas que ainda não são pensamentos (ou seja, em sentimentos, instituições, obras de arte) , o irracionalismo, de seu lado, isola o sentimento, assim como a religião e a arte, de tudo o que merece o nome de conhecimento, e nisso como em outras coisas revela seu parentesco com o positivismo moderno, a escória do esclarecimento. Ele limita, é verdade, a fria razão em proveito da vida imediata, convertendo, porém, a vida num princípio hostil ao pensamento. Sob a aparência dessa hostilidade, o sentimento e, no final das contas, toda expressão humana e, inclusive, a cultura em geral são subtraídos à responsabilidade perante o pensamento, mas por isso mesmo se transformam no elemento neutralizado da ratio universal do sistema económico que há muito se tornou irracional. Desde o início, ela não pôde se fiar unicamente em sua força de atracção e teve que complementá-la com o culto dos sentimentos. Mas quando ela conclama aos sentimentos, ela se volta contra seu próprio meio, o pensamento, que também foi sempre suspeito para ela, a razão auto-alienada. A efusão que os ternos amantes exibem no filme já tem o efeito de um golpe assestado contra a teoria impassível, mas ela se prolonga na argumentação sentimental contra o pensamento que ataca a injustiça. Quando os sentimentos são erigidos assim em ideologia, o desprezo a que estão submetidos na realidade não fica superado. O facto de que, comparados à altura sideral a que a ideologia os transporta, apareçam sempre como demasiado vulgares ajuda também a proscrevê-los. O veredicto sobre os sentimentos já estava implícito na formalização da razão. A autoconservação continua a ter, enquanto instinto natural e como os demais impulsos, uma má consciência. Só a actividade industriosa e as instituições que devem servir a ela – isto é, a mediação que conquistou autonomia, o aparelho, a organização, o sistemático – gozam, tanto no conhecimento quanto na prática, da reputação de serem racionais. As emoções estão inseri das nisso.
O esclarecimento dos tempos modernos esteve desde o começo sob o signo da radicalidade: é isso que o distingue de toda etapa anterior da desmitologização. Quando uma nova forma de vida social surgia na história universal juntamente com uma nova religião e uma nova mentalidade, derrubavam-se os velhos deuses, juntamente com as velhas classes, tribos e povos. Mas é sobretudo quando um povo, os judeus por exemplo, era arrastado por seu próprio destino para uma nova forma de vida social, que os antigos e amados costumes, as acções sagradas e os objectos de veneração, se viam como que por encanto transformados em crimes nefandos e espectros medonhos. Os medos e as idiossincrasias actuais, os traços do carácter escarnecidos e detestados, podem ser interpretados como marcas de progressos violentos ao longo do desenvolvimento humano. Do nojo dos excrementos e da carne humana até o desprezo do fanatismo, da preguiça, da pobreza material e espiritual, vemos desenrolar-se uma linha de comportamentos que, de adequados e necessários, se converteram em condutas execráveis. Essa linha é ao mesmo tempo a da destruição e a da civilização. Cada passo foi um progresso, uma etapa do esclarecimento. Mas, enquanto todas as mudanças anteriores (do préanimismo à magia, da cultura matriarcal à patriarcal, do politeísmo dos escravocratas à hierarquia católica) colocavam novas mitologias, ainda que esclarecidas, no lugar das antigas (o deus dos exércitos no lugar da Grande Mãe, a adoração do cordeiro no lugar do totem) , toda forma de devotamento que se considerava objectiva, fundamentada na coisa, dissipava-se à luz da razão esclarecida. Todos os vínculos dados previamente sucumbiam assim ao veredicto que impunha o tabu, sem excluir aqueles que eram necessários para a existência da própria ordem burguesa. O instrumento com o qual a burguesia chegou ao poder – o desencadeamento das forças, a liberdade universal, a autodeterminação, em suma, o esclarecimento – voltava-se contra a burguesia tão logo era forçado, enquanto sistema da dominação, a recorrer à opressão. Obedecendo a seu próprio princípio, o esclarecimento não se detém nem mesmo diante do mínimo de fé sem o qual o mundo burguês não pode subsistir. Ele não presta à dominação os serviços confiáveis que as antigas ideologias sempre lhe prestaram. Sua tendência anti-autoritária – que apenas subterraneamente, é verdade, se comunica com a utopia implícita no conceito de razão – acaba por torná-la tão hostil à burguesia estabelecida quanto à aristocracia, da qual aliás logo se tornou também uma aliada. O princípio anti-autoritário acaba tendo que se converter em seu próprio contrário, numa instância hostil à própria razão: ele elimina tudo aquilo que é intrinsecamente obrigatório, e essa eliminação permite à dominação decretar e manipular soberanamente as obrigações que lhe são adequadas em cada caso. Depois de proclamar a virtude burguesa e a filantropia, para as quais já não tinha boas razões, a filosofia também proclamou como virtudes a autoridade e a hierarquia, quando estas há muito já haviam se convertido em mentiras graças ao esclarecimento. Mas o esclarecimento não possuía argumentos nem mesmo contra semelhante perversão de si mesmo, pois a pura verdade não goza de nenhum privilégio em face da distorção, a racionalização em face da ratio, se não tem nenhum privilégio prático a exibir em seu favor. Com a formalização da razão, a própria teoria, na medida em que pretende ser mais do que um símbolo para procedimentos neutros, converte-se num conceito ininteligível, e o pensamento só é aceito como dotado de sentido após o abandono do sentido. Atrelado ao modo de produção dominante, o esclarecimento, que se empenha em solapar a ordem tornada repressiva, dissolve-se a si mesmo. Isso ficou manifesto já nos primeiros ataques que o esclarecimento corrente empreendeu contra Kant, o “triturador universal”. Do mesmo modo que a filosofia moral de Kant limitou sua crítica esclarecedora para salvar a possibilidade da razão, assim também, inversamente, o pensamento esclarecido mas irreflectido empenhou-se sempre, por uma questão de autoconservação, em superar-se a si mesmo no cepticismo, a fim de abrir espaço suficiente para a ordem existente.
A obra de Sade, como a de Nietzsche, forma ao contrário a crítica intransigente da razão prática, comparada à qual a obra do “triturador universal” aparece como uma revogação de seu próprio pensamento. Ela eleva o princípio cientificista a um grau aniquilador. Kant, todavia, já expurgara a lei moral em mim de toda fé heteronómica, e isso há tanto tempo que o respeito por suas asseverações se tornaram um mero facto natural psicológico, como é um facto natural físico o céu estrelado sobre mim. “Um factum da razão”, como ele próprio o chama (16), “un instinct général de société”, como o denomina Leibniz. (17) Mas os factos não valem nada quando não estão dados. Sade não nega sua ocorrência. Justine, a boa dentre as duas irmãs, é uma mártir da lei moral. Juliette, porém, tira as consequências que a burguesia queria evitar: ela amaldiçoa o catolicismo, no qual vê a mitologia mais recente e, com ele, a civilização em geral. As energias ligadas ao sacramento são redirecionadas para o sacrilégio. Essa inversão, porém, é transferida pura e simplesmente à comunidade. Em tudo isso, Juliette não procede de modo algum com o fanatismo dos católicos em face dos incas. Ela apenas se dedica esclarecidamente, diligentemente, à faina do sacrilégio, que os católicos também têm no sangue desde tempos arcaicos. Os comportamentos proto-históricos que a civilização declarara tabu e que haviam se transformado sob o estigma da bestialidade em comportamentos destrutivos, continuaram a levar uma vida subterrânea. Juliette não os pratica mais como comportamentos naturais, mas proibidos por um tabu. Ela compensa o juízo de valor contrário, sem fundamento na medida em que nenhum juízo de valor tem fundamento, pelo seu oposto. Assim, quando repete as reacções primitivas, já não são mais as primitivas, mas as bestiais. Juliette, e nisso ela não é diferente do Merteuil de Liaisons Dangereuses (18), não encarna, em termos psicológicos, nem a libido não-sublimada nem a libido regredida, mas o gosto intelectual pela regressão, amor intellectualis diaboli, o prazer de derrotar a civilização com suas próprias armas. Ela ama o sistema e a coerência, e maneja excelentemente o órgão do pensamento racional. No que concerne ao autodomínio, suas instruções estão para as de Kant, às vezes, assim como a aplicação especial está para o princípio. ” A virtude”, diz Kant (19), “na medida em que está fundada na liberdade interior, também contém para os homens um mandamento afirmativo, que é o de submeter todos os seus poderes e inclinações ao seu poder (da razão), por conseguinte o mandamento do domínio de si mesmo, que se acrescenta à proibição de deixar-se dominar por suas emoções e inclinações (o dever da apatia) : porque, se a razão não toma em mãos as rédeas do governo, aquelas agem sobre os homens como se fossem seus amos.” Juliette disserta sobre a autodisciplina do criminoso. “Primeiro, imagine seu plano com vários dias de antecedência, reflicta sobre todas as consequências, examine com atenção o que poderá lhe ser útil… o que seria susceptível de traí-la, e pese essas coisas com o mesmo sangue-frio como se tivesse a certeza de ser descoberta” (20). A fisionomia do assassino deve revelar a maior calma. “… faça reinar nela a calma e a indiferença e trate de adquirir o maior sangue-frio possível nessa situação… se você não tivesse a certeza de não ter nenhum remorso, e jamais a terá senão pelo hábito do crime, se, eu dizia, você não tivesse a inteira certeza disso, em vão você trabalharia para se tornar senhora do jogo de sua fisionomia” (21). A liberdade de remorsos é tão essencial para a razão formalista quanto a do amor ou do ódio. O arrependimento apresenta como existente o passado que a burguesia, ao contrário da ideologia popular, sempre considerou como um nada; ele é a recaída, e sua única justificativa perante a práxis burguesa seria preveni-la. Ou como diz Spinoza seguindo os estóicos: “poenitentia virtus non est, sive ex ratione non oritur, sed is, quem pacti poenitet, bis miser seu impotens est”. (22) Ele acrescenta imediatamente, porém, bem no espírito do príncipe de Francavilla, o seguinte: “terret vulgus, nisi metuat” (23) e opina por isso como bom maquiavelista que a humildade e o arrependimento assim como o medo e a esperança, apesar de toda sua irracionalidade, seriam bastante úteis. ” A apatia (considerada como fortaleza) é um pressuposto indispensável da virtude”, diz Kant (24), distinguindo essa “apatia moral” (um pouco à maneira de Sade) da insensibilidade no sentido da indiferença a estímulos sensíveis. O entusiasmo é mau. A calma e a determinação constituem a força da virtude. “Tal é o estado de saúde na vida moral; ao contrário, a emoção, mesmo quando é excitada pela representação do bem, é uma brilhante e instantânea aparição que deixa atrás de si a lassidão” (25). A amiga de Juliette, Clairwil constata o mesmo do vício. “Minha alma é dura, e estou longe de achar a sensibilidade preferível à feliz apatia de que desfruto. Ó Juliette, … tu te enganas talvez sobre essa sensibilidade perigosa de que se orgulham tantos imbecis” (26). A apatia surge nos momentos decisivos da história burguesa, e mesmo da antiguidade, quando os pauci beati (27), em face da força superior da tendência histórica, se dão conta da própria impotência. Ela assinala o recuo da espontaneidade individual-humana para a esfera privada, que só então logra se constituir, assim como a autêntica forma de vida burguesa. O estoicismo – e é nisto que consiste a filosofia burguesa – torna mais fácil para os privilegiados, em face dos sofrimentos dos outros, enfrentar as ameaças a si próprios. Ele preserva o universal, elevando a vida privada ao nível de um princípio para se proteger dele. A esfera privada do burguês é o património cultural decaído da classe superior.
O credo de Juliette é a ciência. Ela abomina toda veneração cuja racionalidade não se possa demonstrar: a fé em Deus e em seu filho morto, a obediência aos dez mandamentos, a superioridade do bem sobre o mal, da salvação sobre o pecado. Ela se vê atraída pelas reacções proscritas pelas lendas da civilização. Ela opera com a semântica e com a sintaxe lógica como o mais moderno positivismo, mas diferentemente desse empregado da mais nova administração, ela não dirige sua crítica linguística de preferência contra o pensamento e a filosofia, mas, filha que é do esclarecimento militante, contra a religião. “Um Deus morto!” diz ela de Cristo (28), “nada é mais cómico do que essa incoerência do dicionário católico: Deus, quer dizer eterno; morto, quer dizer não eterno. Cristãos imbecis, o que quereis fazer com vosso Deus morto?” A transformação do que é condenado sem prova científica em algo digno de ser ambicionado, bem como do que é reconhecido sem base em provas em objecto da abominação, a transvaloração dos valores, “a coragem para o proibido” (29) sem o traiçoeiro “vamos!” de Nietzsche, sem o seu idealismo biológico, eis aí sua paixão específica. “Serão precisos pretextos para cometer um crime?” exclama a princesa Borghese, sua boa amiga, bem em seu espírito (30). Nietzsche proclama a quintessência de sua doutrina (31). “Os fracos e os malformados devem perecer: primeira proposição de nossa filantropia. E convém ainda ajudá-los a isso. O que é mais prejudicial do que qualquer vício – a compaixão activa por todos os malformados e fracos – o cristianismo…” (32) A religião cristã, “singularmente interessada em domar os tiranos e reduzi-los a princípios de fraternidade … desempenha aqui o papel do fraco; ela o representa, ela deve falar como ele… e devemos estar persuadidos de que esse laço [de fraternidade -trad.] foi, na verdade, proposto pelo fraco, foi sancionado por ele quando a autoridade sacerdotal encontrou-se por acaso em suas mãos” (33). É isso que Noirceuil, o mentor de Juliette, contribui à genealogia da moral. Maldosamente Nietzsche celebra os poderosos e sua crueldade exercida “para fora, onde começa a terra alheia”, quer dizer, perante tudo o que não pertence a eles próprios. “Eles gozam aí da liberdade de toda coerção social, eles buscam nas regiões selvagens uma compensação para a tensão provocada por um longo encerramento e clausura na paz da comunidade, eles retornam à inocência moral do animal de rapina, como monstros a se rejubilar, talvez saindo de uma série horrorosa de assassinatos, incêndios, estupros, torturas, com a insolência e a serenidade de quem cometeu apenas uma travessura de estudantes, convencidos de que os poetas terão agora e por muito tempo algo a cantar e a celebrar… Essa ‘audácia’ de raças nobres, louca, absurda, súbita, tal como se exprime, o próprio carácter imprevisível e improvável de seus empreendimentos… sua indiferença e desprezo por segurança, corpo, vida, conforto, sua terrível jovialidade e a profundidade do prazer em destruir, do prazer que se tira de todas as volúpias da vitória e da crueldade” (34), essa audácia, que Nietzsche proclama, também arrebatou Juliette. “Viver perigosamente” é também sua mensagem: ” … oser tout dorénavant sans peur” (35). Há os fracos e os fortes, há classes, raças e nações que dominam e há as que se deixaram vencer. “Onde está”, exclama o senhor de Verneuil (36), “o mortal que seria idiota o bastante para assegurar contra toda evidência que os homens nascem iguais de direito e de facto! Coube a um misantropo como Rousseau formular semelhante paradoxo, pois, extremamente fraco como era, queria rebaixar à sua altura aqueles à altura dos quais não conseguia se elevar. Mas que imprudência, pergunto eu, podia autorizar esse pigmeu de quatro pés e duas polegadas a se comparar à estatura que a natureza dotou da força e do aspecto de um Hércules? Não é como se a mosca tentasse se assemelhar aos elefantes? Força, beleza, estatura, eloquência: nos primórdios da sociedade, essas virtudes eram determinantes quando a autoridade passou para as mãos dos dominantes”. – “Exigir da força”, continua Nietzsche (37), “que ela não se manifeste como força, que ela não seja uma vontade de vencer, abater e dominar, que ela não seja uma sede de inimigos, resistência e triunfos, é um contra-senso tão grande quanto exigir da fraqueza que ela se manifeste como a força”. – “Como é que o senhor quer”, diz Verneuil, (38) “que aquele que recebeu da natureza a máxima disposição para o crime, seja pela superioridade de suas forças e a fineza de seus órgãos, seja pela educação condizente com seu estado ou suas riquezas; como é que o senhor quer, repito, que esse indivíduo seja julgado em conformidade com a mesma lei como aquele que tudo incita à virtude e à moderação? Seria mais justa a lei se ela punisse os dois homens da mesma maneira? Será natural que o homem a quem tudo convida a fazer o mal seja tratado como o homem que tudo impele a se comportar com prudência”? Depois que a ordem objectiva da natureza foi posta de lado a título de prejuízo e mito, só restou a natureza enquanto massa de matéria. Nietzsche não admite nenhuma lei “que não apenas conheçamos, mas também reconheçamos sobre nós” (39). Se o entendimento, formado segundo a norma da autoconservação, percebe uma lei da vida, esta lei é a lei do mais forte. Mesmo que o formalismo da razão a impeça de proporcionar à humanidade um modelo necessário, ela tem sobre a ideologia mentirosa a vantagem da factualidade. Os culpados, eis aí a doutrina de Nietzsche, são os fracos, eles iludem com sua astúcia a lei natural. “O grande perigo para os homens são os indivíduos doentios, não os maus, não os ‘predadores’. São os desgraçados, os vencidos, os destruídos de antemão – são eles, são os fracos que mais solapam a vida entre os homens, que envenenam e colocam em questão da maneira mais perigosa nossa confiança na vida e nos homens” (40). Eles difundiram o cristianismo no mundo, que Nietzsche não abomina e odeia menos do que Sade. ” … na verdade, não são as represálias do fraco contra o forte que estão na natureza; elas aí estão no moral, mas não no físico, já que, para empregar essas represálias, é preciso que ele use forças que não recebeu, é preciso que adopte um carácter que não lhe é dado, que ele constranja de alguma maneira a natureza. Mas o que, verdadeiramente, está nas leis dessa mãe sábia é a lesão do fraco pelo forte, já que, para chegar a esse procedimento, ele não faz senão usar os dons que recebeu. Ele não precisa se revestir, como o fraco, de um carácter diferente do seu: ele só coloca em acção os efeitos do carácter que recebeu da natureza. Por isso, tudo o que daí resulta é natural: sua opressão, suas violências, suas crueldades, suas tiranias, suas injustiças, … são, pois, puras como a mão que as gravou; e quando ele usa de todos os seus direitos para oprimir o fraco, para despojá-lo, não faz senão a coisa mais natural do mundo… Não tenhamos, pois, escrúpulos quanto ao que podemos tomar do fraco, pois não somos nós que cometemos o crime, é a defesa ou a vingança do fraco que caracteriza o crime” (41). Quando o fraco se defende, ele comete pois uma injustiça, a saber, a injustiça “de sair do carácter que a natureza imprimiu nele: ela criou-o para ser escravo e pobre, ele não quer submeter-se a isso, eis aí sua falta” (42). Nesses discursos magistrais, Dorval, o cabeça de uma respeitável gangue parisiense, desenvolve perante Juliette o credo secreto de todas as classes dominantes, que Nietzsche censurou, acrescido da psicologia do ressentimento, aos seus contemporâneos. Como Juliette ele admira “a terrível beleza do crime” (43) ainda que, professor alemão que é, se distinga de Sade por desaprovar o criminoso porque seu egoísmo “se dirige e se restringe a metas tão baixas. Se as metas são grandiosas, a humanidade usa um outro padrão e não avalia como tal o ‘crime’, nem mesmo os meios mais terríveis” (44). Desse preconceito favorável ao que é grande, que de facto caracteriza o mundo burguês, ainda está livre a esclarecida Juliette. Para ela, o escroque não é menos simpático do que o ministro simplesmente porque suas vítimas são em menor número. Para o alemão, porém, a beleza provém do alcance do acto; ele não consegue se livrar, em meio a todo o crepúsculo dos ídolos, do costume idealista de querer enforcar o pequeno ladrão e transformar os assaltos imperialistas em missões histórico-universais. Ao erigir o culto da força em doutrina histórico-universal, o fascismo alemão reduziu-o ao mesmo tempo ao absurdo que o caracteriza. Enquanto protesto contra a civilização, a moral dos senhores defendeu indirectamente os oprimidos: o ódio pelos instintos atrofiados denuncia objectivamente a verdadeira natureza do mestre disciplinador, que só se manifesta em suas vítimas. Mas enquanto grande potência e religião do Estado, a moral dos senhores entrega-se definitivamente aos civilizatórios powers that be (45), à maioria compacta, ao ressentimento e a tudo aquilo a que antes se opunha. É a realização das próprias ideias que refuta Nietzsche e ao mesmo tempo libera nele a verdade que, apesar de toda afirmação da vida, era hostil ao espírito da realidade.
Se o arrependimento já era considerado como contrário à razão, a compaixão é o pecado pura e simplesmente. Quem cede a ela “perverte a lei universal: donde resulta que a piedade, longe de ser uma virtude, se torna um verdadeiro vício tão pronto ela nos leva a interferir com uma desigualdade prescrita pelas leis da natureza” (46). Sade e Nietzsche viram que, após a formalização da razão, a compaixão subsistia por assim dizer como a consciência sensível da identidade do universal e do particular, como a mediação naturalizada. Ela constitui o preconceito mais compulsivo, “quamvis pietatis specimen prae se ferre videatur”, como diz Spinoza (47), “pois quem não é levado a ajudar os outros nem pela razão, nem pela compaixão é com razão chamado desumano”. (48) A commiseratio é a humanidade em sua figura imediata, mas ao mesmo tempo “mala et inutilis” (49), a saber, o contrário do valor viril que, da virtus romana passando pelos Medicis até a efficiency da família Ford, foi sempre a única virtude verdadeiramente burguesa. Efeminada e infantil, eis como Clairwil chama a compaixão, jactando-se de seu “estoicismo”, do “repouso das paixões”, que lhe permite tudo “fazer e tudo aguentar sem emoção” (50). “… a piedade, longe de ser uma virtude, não é senão uma fraqueza nascida do temor e do infortúnio, fraqueza que é preciso absorver, sobretudo quando nos empenhamos em embotar uma excessiva sensibilidade incompatível com as máximas da filosofia ” (51). É das mulheres que provêm “as explosões de ilimitada compaixão” (52). Sade e Nietzsche sabiam que sua doutrina da pecaminosidade da compaixão era uma velha herança burguesa. Este aponta para todas as “épocas fortes”, para as “civilizações superiores”, aquele para Aristóteles (53) e os peripatéticos (54). A compaixão não resiste à filosofia, e o próprio Kant não constituiu excepção. Para Kant, ela é “uma certa sentimentalidade” e não teria “em si a dignidade da virtude” (55). Ele não vê, porém, que o princípio da “benevolência universal para com a raça humana” (56), pelo qual tenta substituir, em oposição ao racionalismo de Clairwil, a compaixão, incorre na mesma maldição da irracionalidade lançada sobre essa “paixão bondosa” que pode facilmente tentar o homem a se tornar “um ocioso sentimental”. O esclarecimento não se deixa enganar; nele o facto universal não tem nenhum privilégio sobre o facto particular, nem o amor sem limites” sobre o amor limitado. A compaixão é suspeita. Como Sade, Nitezsche também recorre à ars poetica para uma avaliação crítica. “Segundo Aristóteles os gregos sofriam frequentemente de um excesso de compaixão: daí a necessidade da descarga através da tragédia. Vemos assim como essa inclinação lhes parecia suspeita. Ela é perigosa para o Estado, tira a necessária dureza e rigor, faz com que os heróis se comportem como mulheres em prantos etc.” (57) Zaratustra prega: “Vejo tanta bondade, tanta fraqueza. Tanta justiça e compaixão, tanta fraqueza” (58). De facto, a compaixão tem um aspecto que não se coaduna com a justiça, com a qual porém Nietzsche a confunde. Ela confirma a regra da desumanidade através da excepção que ela pratica. Ao reservar aos azares do amor ao próximo a tarefa de superar a injustiça, a compaixão acata a lei da alienação universal, que ela queria abrandar, como algo inalterável. Certamente, o compassivo defende como indivíduo a pretensão do universal – a saber, de viver – contra o universal, contra a natureza e a sociedade que a recusam. Mas a unidade com o universal, entendida como interioridade, que o indivíduo pratica, revela-se como falaciosa em sua própria fraqueza. Não é a moleza, mas o aspecto limitador da compaixão, que a torna questionável, ela é sempre insuficiente. Do mesmo modo que a apatia estóica ( que serve para adestrar a frieza burguesa, o contrário da compaixão) conservou melhor do que a vulgaridade participativa, que se adaptou ao todo, a mísera lealdade ao universal de que se afastara, assim também aqueles que desmascararam a compaixão declararam-se negativamente pela revolução. As deformações narcísicas da compaixão, como os sentimentos sublimes do filantropo e a arrogância moral do assistente social, são a confirmação interiorizada da diferença entre ricos e pobres. Todavia, o facto de que a filosofia divulgou imprudentemente o prazer proporcionado pela dureza, colocou-o à disposição daqueles que menos lhe perdoam a confissão. Os fascistas que dominaram o mundo traduziram o horror pela compaixão no horror pela indulgência política e no recurso à lei marcial, no que se uniram a Schopenhauer, o metafísico da compaixão. Este considerava a esperança de instituir a humanidade como a loucura temerária daqueles cuja única esperança é a infelicidade. Os inimigos da compaixão não queriam identificar o homem com a infelicidade, cuja existência era, para eles, uma vergonha. Sua delicada impotência não tolerava que o homem fosse objecto de lamentações. Desesperada, ela se converteu no louvor da potência que, no entanto, renegavam na prática sempre que se oferecia a eles.
A bondade e a beneficência tornam-se pecado, a dominação e a opressão virtude. “Todas as coisas boas foram outrora coisas ruins; todo pecado original transformou-se numa virtude original” (59). Juliette leva-o a sério também agora, na nova época; pela primeira vez ela procede de maneira consciente à transvaloração. Uma vez destruídas todas as ideologias, ela adopta como moral pessoal aquilo que a cristandade considerava execrável na ideologia, embora nem sempre na prática. Como boa filósofa, ela permanece, ao fazer isso, fria e reflectida. Tudo se passa sem ilusões. Quando Clairwil lhe propõe cometer um sacrilégio, ela dá a seguinte resposta: ” A partir do momento em que não cremos em Deus, minha cara, as profanações que desejas nada mais são do que criancices absolutamente inúteis… talvez eu seja mais segura do que tu; meu ateísmo está no auge. Não imagines, portanto, que eu tenha necessidade, para me fortalecer, das criancices que me propões; estou pronta a executá-las, já que te agradam, mas como simples divertimentos” – a assassina americana Annie Henry teria dito: just for fun (60) – “e jamais como uma coisa necessária, seja para fortificar minha maneira de pensar, seja para convencer os outros” (61). Transfigurada por um efémero impulso de benevolência para com a cúmplice, ela deixa que seus princípios prevaleçam. Até mesmo a injustiça, o ódio e a destruição tornam-se uma actividade maquinal depois que, devido à formalização da razão, todos os objectivos perderam, como uma miragem, o carácter da necessidade e objectividade. A magia transfere-se para o mero fazer, para o meio, em suma, para a indústria. A formalização da razão é a mera expressão intelectual do modo de produção maquinal. O meio é fetichizado: ele absorve o prazer. Assim como o esclarecimento transformava teoricamente em ilusões os objetivos com que se adornava a antiga dominação, assim também ele os priva, com a possibilidade da abundância, de seu fundamento prático. A dominação sobrevive como fim em si mesmo, sob a forma do poder económico. O gozo já parece algo de antiquado, irrealista, como a metafísica que o proibia. Juliette fala sobre os motivos do crime (62). Ela própria não é menos ávida de honrarias e dinheiro do que seu amigo Sbrigani, mas ela idolatra o proibido. Sbrigani, que é um homem dos meios e do dever, é mais avançado: “O que importa é nos enriquecer, e nós nos tornamos gravemente culpados se não atingimos essa meta; só quando estamos bem adiantados no caminho da riqueza podemos nos permitir colher os prazeres: até aí, é preciso esquecê-los”. Apesar de toda superioridade racional, Juliette conserva ainda uma superstição. Ela reconhece a ingenuidade do sacrilégio, mas acaba por tirar prazer dele. Todo gozo, porém, deixa transparecer uma idolatria: ele é o abandono de si mesmo a uma outra coisa. A natureza não conhece propriamente o gozo: ela não o prolonga além do que é preciso para a satisfação da necessidade. Todo prazer é social, quer nas emoções não sublimadas quer nas sublimadas, e tem origem na alienação. Mesmo quando o gozo ignora a proibição que transgride, ele tem sempre por origem a civilização, a ordem fixa, a partir da qual aspira retornar à natureza, da qual aquela o protege. Os homens só sentem a magia do gozo quando o sonho, liberando-os da compulsão ao trabalho, da ligação do indivíduo a uma determinada função social e finalmente a um eu, leva-os de volta a um passado pré-histórico sem dominação e sem disciplina. É a nostalgia dos indivíduos presos na civilização, o “desespero objectivo” daqueles que tiveram que se tornar em elementos da ordem social, que alimenta o amor pelos deuses e demónios; era para estes, enquanto natureza transfigurada, que eles se voltavam na adoração. O pensamento tem origem no processo de liberação dessa natureza terrível, que acabou por ser inteiramente dominada. O gozo é por assim dizer sua vingança. Nele os homens se livram do pensamento, escapam à civilização. Nas sociedades mais antigas, os festivais possibilitavam este retorno à natureza como um retorno em comum. As orgias primitivas são a origem colectiva do gozo. “Esse intervalo de universal confusão que constitui a festa”, diz Roger Caillois, “aparece assim como o espaço de tempo em que a ordem do mundo está suspensa. Eis por que todos os excessos são então permitidos. O que importa é agir contra as regras. Tudo deve ser feito ao contrário. Na época mítica, o curso do tempo estava invertido: nascia-se velho, morria-se criança… Assim, todas as prescrições que protegem a boa ordenação natural e social são então sistematicamente violadas” (63). As pessoas se abandonam às potências transfiguradas da origem; mas, do ponto de vista da suspensão da proibição, esse modo de agir tem o carácter do excesso e do desvario (64). É só com o progresso da civilização e do esclarecimento que o eu fortalecido e a dominação consolidada transformam o festival em simples farsa. Os dominadores apresentam o gozo como algo racional, como tributo à natureza não inteiramente domada; ao mesmo tempo procuram torná-lo inócuo para seu uso e conservá-lo na cultura superior; e finalmente, na impossibilidade de eliminá-lo totalmente, tentam dosá-lo para os dominados. O gozo torna-se objecto da manipulação até desaparecer inteiramente nos divertimentos organizados. O processo se desenvolve do festival primitivo até as férias. “Quanto mais se acentua a complexidade do organismo social, menos ela tolera a interrupção do curso ordinário da vida. É preciso que tudo continue hoje como ontem e amanhã como hoje. A efervescência geral não é mais possível. O período de turbulência individualizou-se. As férias sucedem à festa.” (65) No regime fascista, elas são complementadas pela falsa euforia colectiva produzida pelo rádio, pelos slogans e pela benzedrina. Sbrigani tem um certo pressentimento disso. Ele se permite algum divertimento “sur la route de la fortune”, a título de férias. Juliette, ao contrário, simpatiza com o Ancien Régime. Ela diviniza o pecado. Sua libertinagem está sob a ascendência do catolicismo, assim como o êxtase da freira sob o signo do paganismo.
Nietzsche sabe que todo gozo tem um carácter mítico. Abandonando-se à natureza, o gozo abdica do que seria possível, assim como a compaixão renuncia à mudança do todo. Ambos contêm um elemento de resignação. Nietzsche detecta-o em todos os cantos, como o gozo de si mesmo na solidão, como o prazer masoquista nas depressões do autotorturador. “Contra todos os que se contentam em gozar!” (66) Juliette procura salvá-lo recusando o amor abnegado, o amor burguês que, enquanto resistência à inteligência da burguesia, é característico de seu último século. No amor, o gozo estava associado à divinização da pessoa que o concedia, ele era a paixão propriamente humana. Mas acaba por ser revogado como um juízo de valor condicionado pelo sexo. Na adoração exaltada do amante, assim como na admiração irrestrita que lhe devia a amada, o que se repetia sempre era a transfigura da efectiva servidão da mulher. Com base no reconhecimento dessa servidão, os sexos voltavam sempre a se reconciliar: a mulher parecia assumir livremente a derrota, o homem conceder-lhe a vitória. O cristianismo transfigurou no casamento, como união dos corações, a hierarquia dos sexos e o jugo imposto ao carácter feminino pela ordenação masculina da propriedade, aplacando assim a lembrança de um passado mais feliz desfrutado pelo sexo feminino na era pré-patriarcal. Na sociedade industrial, o amor é facturado. A ruína da propriedade média e o desaparecimento do sujeito económico livre afectam a família: ela não é mais a célula da sociedade, outrora tão celebrada, já que não constitui mais a base da vida económica do burguês. Os adolescentes não têm mais a família como seu horizonte, a autonomia do pai desaparece e com ela a resistência a sua autoridade. Antes, a servidão na casa paterna acendia na moça a paixão que parecia levar à liberdade, ainda que esta não se realizasse nem no casamento nem em nenhum outro lugar. Mas, ao mesmo tempo que se abre para a moça a possibilidade do job (67), fecham-se para ela as perspectivas do amor. Quanto mais universalmente o sistema industrial moderno exige de cada um que se deixe assalariar, mais se acentua a tendência a transformar os que não foram engolfados neste mar do white trash (68), em que se converteu o trabalho e o desemprego não-qualificados, no pequeno especialista, obrigado a cuidar de sua própria vida. Sob a forma do trabalho qualificado, a autonomia do empresário – que já pertence ao passado – torna-se característica de todos os que são admitidos no processo de produção e assim também da mulher “profissional”. O respeito próprio das pessoas cresce proporcionalmente a sua fungibilidade. A oposição à família não é mais uma audácia, do mesmo modo que o namoro com o boy-friend (69) tampouco é o paraíso na terra. As pessoas assumem em face das outras aquela relação racional, calculadora, que há muito fora proclamada como uma antiga sabedoria no círculo esclarecido de Juliette. O espírito e o corpo são separados na realidade, como haviam exigido aqueles libertinos, que não passavam de burgueses indiscretos. “De novo, parece-me” -decreta Noirceuil como bom racionalista (70) – “que é uma coisa muito diferente amar e gozar… Pois os sentimentos de ternura correspondem às relações de humor e de conveniências, mas não se devem de modo algum à beleza de um colo ou ao bonito torneado dos quadris; e esses objectos que, segundo o gosto de cada um, podem excitar vivamente as afecções físicas, não têm, porém, parece-me, o mesmo direito às afecções morais. Para completar minha comparação, Bélize é feia, tem quarenta anos, sua pessoa não tem a menor graça, não tem um só traço regular, um único atractivo; mas Bélize tem espírito, um carácter delicioso, um milhão de coisas que se encadeiam com meus sentimentos e meus gostos; não tenho nenhum desejo de me deitar com Bélize, – mas nem por isso eu a amarei menos loucamente; desejarei fortemente ter Araminthe, mas eu a detestarei cordialmente tão logo a febre do desejo houver passado…” A consequência inevitável, implicitamente colocada com a divisão cartesiana do homem na substância pensante e na substância extensa, é proferida com toda clareza como a destruição do amor romântico. Este é considerado como disfarce, racionalização do instinto físico, “uma falsa e sempre perigosa metafísica” (71), como explica o conde de Belmor em seu grande discurso sobre o amor. Apesar de toda a libertinagem, os amigos de Juliette atribuem à sexualidade em oposição à ternura, ao amor terreno em oposição ao celestial, não apenas um poder um pouquinho excessivo, mas também um carácter excessivamente inócuo. A beleza do colo e o torneado dos quadris agem sobre a sexualidade não como factos a-históricos, puramente naturais, mas como imagens que encerram toda a experiência social. Nesta experiência está viva a intenção de algo diverso da natureza, o amor não limitado ao sexo. Mas a ternura, até mesmo a mais incorpórea, é a sexualidade metamorfoseada. A mão acariciando os cabelos e o beijo na fronte, que exprimem o desvario do amor espiritual, são formas apaziguadas de golpes e mordidas que acompanham, por exemplo, o acto sexual dos selvagens australianos. A separação é abstracta. A metafísica falsifica, ensina Belmor, os factos, ela impede de ver o amado como ele é, ela nasce da magia, ela é um véu. “E eu não o arranco! É fraqueza… pusilanimidade. Vamos analisar, após o gozo, esta deusa que me cegava antes.” (72) O próprio amor é um conceito não-científico: ” … as definições erróneas nos induzem sempre em erro”, explica Dolmance no memorável 5º diálogo da Philosophie dans le Boudoir, “não sei o que é isto, o coração. Este é um nome que dou apenas à fraqueza do espírito” (73). “Passemos um momento, como Lucrécio diz aos “bastidores da vida” (74), isto é, à análise “e veremos que nem a exaltação da amante nem o sentimento romântico resiste à análise… é o corpo apenas que amo e é o corpo apenas que lamento embora possa reencontrá-lo a qualquer instante”. O que é verdadeiro nisso tudo é o discernimento da dissociação do amor, obra do progresso. Através dessa dissociação, que mecaniza o prazer e distorce o anseio em trapaça, o amor é atacado em seu núcleo. Quando Juliette faz do louvor da sexualidade genital e perversa uma crítica do não-natural, do imaterial, do ilusório, a libertina já passou ela própria para o lado dessa normalidade que deprecia não somente o arrebatamento utópico do amor, mas também o gozo físico, não somente a felicidade mais celestial, mas também a mais terrena. O devasso sem ilusões que Juliette defende transforma-se, graças à pedagogia sexual, à psicanálise e à terapêutica hormonal, no homem prático e aberto que estende à vida sexual sua fé no desporto e na higiene. A crítica de Juliette é dividida como o próprio esclarecimento. Na medida em que a destruição sacrílega do tabu, que se aliou em certa época à revolução burguesa, não levou a um novo senso de realidade, ela continua a conviver com o amor sublime no sentido da fidelidade a uma utopia agora mais próxima e que põe o gozo físico ao alcance de todos.
“O entusiasmo ridículo, que nos consagrou a um indivíduo determinado e a ele só, a exaltação da mulher no amor, leva-nos de volta, para além do cristianismo, à sociedade matriarcal”. ” … é certo que nosso espírito de galanteria cavalheiresca, que ridiculamente presta homenagem a um objecto feito tão-somente para nossas necessidades, é certo, repito, que esse espírito nasce do antigo respeito que nossos ancestrais tinham outrora pelas mulheres, em razão do ofício de profetisas que exerciam nas cidades e nos campos: por medo, passamos do respeito ao culto, e a galanteria nasceu no seio da superstição. Mas esse respeito não esteve jamais na natureza, seria perda de tempo buscá-lo aí. A inferioridade desse sexo relativamente ao nosso está suficientemente bem estabelecida para que jamais possa excitar em nós um motivo sólido para respeitá-lo, e o amor que nasce desse respeito cego, não passa de um preconceito como ele próprio”. (75) É na violência, por mais que ela se esconda sob os véus da legalidade, que repousa afinal a hierarquia social. A dominação da natureza se reproduz no interior da humanidade. A civilização cristã – que permitiu que a ideia de proteger os fisicamente fracos revertesse em proveito da exploração do servo forte – jamais conseguiu conquistar inteiramente os corações dos povos convertidos. O princípio do amor foi excessivamente desmentido pelo entendimento agudo e pelas armas ainda mais aguçadas dos senhores cristãos, até que o luteranismo eliminou a antítese do Estado e da doutrina, fazendo da espada e do açoite a quintessência do evangelho. Ele identificou directamente a liberdade espiritual à afirmação da opressão real. Mas a mulher traz o estigma da fraqueza e por causa dessa fraqueza está em minoria, mesmo quando numericamente é superior ao homem. Como no caso dos autóctones subjugados nas primeiras formações estatais, assim , como no caso dos indígenas nas colónias, atrasados relativamente aos conquistadores em termos de organização e armas, bem como no caso dos judeus entre os arianos, o desamparo da mulher é a justificação legal de sua opressão. Sade formula as reflexões de Strindberg. “Não duvidemos de que haja uma diferença tão certa e tão importante entre um homem e uma mulher como entre o homem e o macaco da floresta. As razões que teríamos para recusar que as mulheres façam parte de nossa espécie são tão boas como as razões que temos para recusar que esses macacos sejam nossos irmãos. Examinemos atentamente uma mulher nua ao lado de um homem de sua idade e nu como ela e nos convenceremos facilmente da diferença sensível que existe (sexo à parte) na composição desses dois seres, veremos bem claramente que a mulher não passa de uma degradação do homem; as diferenças existem igualmente no interior, e a anatomia de ambas as espécies, feita ao mesmo tempo e com a mais escrupulosa atenção, descobre essas verdades”. (76) A tentativa do cristianismo de compensar ideologicamente a opressão do sexo pelo respeito à mulher e, assim, enobrecer a reminiscência dos tempos arcaicos, ao invés de simplesmente recalcá-la, é respondida com o rancor pela mulher sublimada e pelo prazer teoricamente emancipado. O sentimento que se ajusta à prática da opressão é o desprezo, não a veneração, e, nos séculos cristãos, o amor ao próximo dissimulou sempre o ódio proibido e obsessivo pelo objecto que não cessava de evocar a inutilidade desse esforço: a mulher. Ela pagou o culto da madona com a caça às bruxas, que não foi senão uma vingança exercida sobre a imagem da profetisa da era pré-cristã, que punha secretamente em questão a ordem sagrada da dominação patriarcal. A mulher excita a fúria selvagem do homem semiconvertido, obrigado a honrá-la, assim como o fraco em geral suscita a inimizade mortal do homem forte superficialmente civilizado e obrigado a poupá-lo. “Jamais acreditei”, diz o conde Ghigi, chefe da polícia romana, “que da junção de dois corpos pudesse resultar a de dois corações: vejo nessa junção física fortes motivos de desprezo… de nojo, mas nem um só de amor” (77). E o ministro Saint-Fonds exclama, quando uma jovem aterrorizada por ele rompe em lágrimas: “É assim que eu gosto das mulheres… ah, se eu pudesse, com uma só palavra, reduzi-las todas a esse estado (78).” O homem dominador recusa à mulher a honra de individualizá-la. A mulher tomada individualmente é, do ponto de vista social, um exemplar da espécie, um representante de seu sexo e é por isso que ela, na medida em que está inteiramente capturada pela lógica masculina, representa a natureza, o substrato de uma subsunção sem fim na Ideia, de uma submissão sem fim na realidade. A mulher enquanto ser pretensamente natural é produto da história que a desnatura. A vontade desesperada de destruir tudo aquilo que encarna a fascinação da natureza, do inferiorizado fisiológica, biológica, nacional e socialmente, mostra que a tentativa do cristianismo fracassou. “… que ne puis-je, d’un mot, les réduire toutes en cet état!” (79) Extirpar inteiramente a odiosa, irresistível tentação de recair na natureza, eis aí a crueldade que nasce na civilização malograda, a barbárie, o outro lado da cultura. “Todas!” Pois a destruição não admite excepções, a vontade de destruir é totalitária, e totalitária é só a vontade de destruir. “Estou a ponto”, diz Juliette ao papa, “de desejar como Tibério que o género humano só tenha uma cabeça para ter o prazer de cortá-la com um só golpe” (80). Os sinais de impotência, os movimentos bruscos e descoordenados, a angústia do pobre-coitado, o tumulto, provocam a vontade de matar. A explicação do ódio contra a mulher, enquanto criatura mais fraca em termos de poder físico e espiritual e marcada na testa pelo estigma da dominação, é a mesma do ódio aos judeus. Nas mulheres e nos judeus é fácil ver que há milénios não exercem nenhuma dominação. Eles vivem, embora fosse possível eliminá-los, e seu medo e fraqueza, sua maior afinidade com a natureza em razão da pressão incessante a que estão submetidos, é seu elemento vital. Isso irrita e leva a uma fúria cega o homem forte, que paga sua força com um intenso distanciamento da natureza e deve eternamente se proibir o medo. Ele se identifica com a natureza multiplicando por mil o grito que arranca a suas vítimas e que ele próprio não pode soltar. “Loucas criaturas”, escreve o presidente Blammont em Aline et Valcour sobre as mulheres, “como gosto de vê-las a se debater em minhas mãos! Elas são como o cordeiro entre as garras do leão” (81). E na mesma carta: “É como na conquista de uma cidade; é preciso se apoderar das elevações…, nós nos instalamos em todas as posições dominantes e, a partir delas, caímos sobre a praça sem temer mais a resistência” (82). Quem está inferiorizado atrai sobre si o ataque: o maior prazer é humilhar aqueles que já foram golpeados pelo infortúnio. Quanto menor o risco para quem estiver em posição de superioridade, mais tranquilo o prazer proporcionado: é só diante do desespero total da vítima que a dominação fica divertida e triunfa com o abandono de seu próprio princípio, a disciplina. O medo que não ameaça mais explode na risada efusiva, expressão do endurecimento interior do indivíduo e que ele só libera verdadeiramente na colectividade. A gargalhada sonora sempre denunciou a civilização. “De todas as lavas lançadas pela boca humana, esta cratera, a mais corrosiva é a alegria”, diz Victor Hugo no capítulo intitulado “As tempestades dos homens, piores que as tempestades do oceano (83).” “É sobre o infortúnio”, ensina Juliette (84), “que é preciso, o mais possível, fazer cair o peso de suas maldades; as lágrimas que se arrancam à indigência têm um azedume que desperta poderosamente o fluido nervoso…” (85). Em vez de se aliar à ternura, o prazer se alia à crueldade, e o amor sexual torna-se aquilo que ele sempre foi, segundo Nietzsche (86): “em seus meios, a guerra; em seu fundo, o ódio mortal dos sexos”. “No macho e na fêmea”, ensina a zoologia, “o ‘amor’ ou a atracção sexual é originariamente e sobretudo ‘sádico’; sem dúvida, é próprio do amor infligir a dor; ele é tão cruel como a fome” (87). Assim a civilização nos traz de volta à natureza terrível como se este fosse seu último resultado. O amor fatal, sobre o qual incide toda a luz da exposição de Sade, e a generosidade pudicamente impudica de Nietzsche, que gostaria de poupar a qualquer preço a vergonha a quem sofre, vale dizer: as fantasias da crueldade e da grandeza, tratam os homens, no jogo e na ficção, com tanta dureza quanto o fascismo alemão na realidade. Mas enquanto na realidade este colosso inconsciente que é o capitalismo sem sujeito leva a cabo cegamente a destruição, o desvario do sujeito rebelde espera dessa destruição sua realização e assim irradia para os homens tratados como coisas ao mesmo tempo sua frieza glacial e o amor pervertido que, no mundo das coisas, tomou o lugar do amor espontâneo. A doença torna-se sintoma de convalescença. Na transfiguração das vítimas, o desvario reconhece sua humilhação. Ele se iguala ao monstro da dominação, que ele não pode superar na realidade. Sob a forma do horror, a imaginação procura resistir ao horror. O provérbio romano, segundo o qual a severidade é o verdadeiro prazer, está em vigor, não é uma simples incitação ao trabalho. Ele exprime também a contradição insolúvel da ordem que transforma a felicidade em sua paródia onde ela a sanciona, e só a produz onde ela a proscreve. Imortalizando essa contradição, Sade e Nietzsche contribuíram para elevá-la ao conceito.
Para a ratio, o abandono à criatura adorada não passa de idolatria. O necessário desaparecimento da divinização é uma consequência da proibição da mitologia, tal como decretada no monoteísmo judeu e executada na história do pensamento sobre as diversas formas da veneração por sua forma secularizada, o esclarecimento. A desagregação da realidade económica subjacente à superstição liberou as forças específicas da negação. O cristianismo, porém, propagou o amor: a pura adoração de Jesus. Pela santificação do casamento, ele procurou elevar o instinto sexual cego, assim como tentara aproximar da terra pela graça celestial a luz cristalina da lei. A reconciliação da civilização com a natureza, que o cristianismo queria obter prematuramente através da doutrina do deus crucificado, permaneceu tão estranha ao judaísmo quanto o rigorismo do esclarecimento. Moisés e Kant não pregaram o sentimento, sua lei fria não conhece nem o amor nem a fogueira. A luta de Nietzsche contra o monoteísmo atinge a doutrina cristã mais profundamente do que a judaica. É verdade que ele nega a lei, mas ele quer pertencer ao “eu superior” (88), não ao natural mas ao mais-que-natural. Ele quer substituir Deus pelo superhomem porque o monoteísmo, sobretudo em sua forma corrompida, o cristianismo, se tornou transparente como mitologia. Mas do mesmo modo que os velhos ideais ascéticos a serviço desse eu superior são enaltecidos por Nietzsche a título de auto-superação “em vista do desenvolvimento da força dominadora” (89), assim também o eu superior revela-se como uma tentativa desesperada de salvar Deus, que morreu, e como a renovação do empreendimento de Kant no sentido de transformar a lei divina em autonomia, a fim de salvar a civilização europeia que, no cepticismo inglês já havia entregue o espírito. O princípio kantiano de “fazer tudo com base na máxima de sua vontade enquanto tal, de tal modo que essa vontade possa ao mesmo tempo ter por objecto a si mesma como uma vontade legisladora universal” (90) é também o segredo do super-homem. Sua vontade não é menos despótica do que o imperativo categórico. Ambos os princípios visam a independência em face de potências exteriores, a emancipação incondicional determinada como a essência do esclarecimento. Todavia, quando o temor da mentira (que o próprio Nietzsche nos momentos mais luminosos tachou de “quixotismo”) (91) substitui a lei pela autolegislação e tudo se torna transparente como uma única grande superstição desnudada, o próprio esclarecimento e até mesmo a verdade em todas as suas formas tornam-se um ídolo, e nós percebemos “que também nós, os conhecedores de hoje, nós ateus e antimetafísicos, também tomamos nosso fogo do incêndio ateado por uma fé milenar, aquela fé dos cristãos que também foi a de Platão, para a qual Deus é a verdade e a verdade, divina” (92). Portanto, mesmo a ciência sucumbe à crítica à metafísica. A negação de Deus contém em si a contradição insolúvel, ela nega o próprio saber. Sade não aprofundou a ideia do esclarecimento até esse ponto de inversão. A reflexão da ciência sobre si mesma, a consciência moral do esclarecimento, estava reservada à filosofia, isto é, aos alemães. Para Sade, o esclarecimento não é tanto um fenómeno espiritual quanto social. Ele aprofundou a dissolução dos laços (que Nietzsche presumia superar idealisticamente pelo eu superior) isto é, à crítica à solidariedade com a sociedade, as funções e a família (93), até o ponto de proclamar a anarquia. Sua obra desvenda o carácter mitológico dos princípios nos quais, segundo a religião, se funda a civilização: do decálogo, da autoridade paterna, da propriedade. É a inversão exacta da teoria social que Le Play desenvolveu cem anos depois (94). Cada um dos dez mandamentos vê comprovada sua nulidade perante a instância da razão formal. Seu carácter ideológico fica inteiramente comprovado. O arrazoado em defesa do assassínio, é o próprio papa que o pronuncia a pedido de Juliette. (95) Para ele, racionalizar os actos não-cristãos é uma tarefa mais fácil do que a tentativa feita outrora de racionalizar pela luz natural os princípios cristãos segundo os quais esses actos provêm do diabo. O “philosophe mitré” (96) precisa recorrer a menos sofismas para justificar o assassinato do que Maimônides e Santo Tomás para condená-lo. A razão romana, mais ainda do que o Deus prussiano, se alinha ao lado dos batalhões mais poderosos. Mas a lei está destronada, e o amor que devia humanizá-la está desmascarado como regressão à idolatria. Não foi apenas o amor romântico entre os sexos que, enquanto metafísica, sucumbiu à ciência e à indústria, mas todo o amor em geral, pois nenhum prevalece diante da razão: nem o da mulher pelo homem nem o do amante pela amada, nem o dos pais nem o dos filhos. O duque de Blangis anuncia aos subordinados que os parentes dos senhores, filhas e esposas, serão tratados tão rigorosamente, ou melhor, ainda mais rigorosamente do que os outros, “e isso justamente para mostrar-vos a que ponto são desprezíveis a nossos olhos os laços pelos quais imaginais que estamos presos” (97). O amor da mulher é substituído assim como o do homem. As regras da libertinagem que Saint-Fonds comunica a Juliette devem valer para todas as mulheres (98). Dolmance formula o desencantamento materialista do amor parental. “Esses laços decorrem do medo que têm os genitores de serem abandonados na velhice, e o cuidado interessado que dedicam à nossa infância deve proporcionar-lhes a mesma atenção em sua velhice.” (99) O argumento de Sade é tão velho como a burguesia. Demócrito já denunciara o amor parental humano como tendo motivos económicos (100). Mas Sade desencanta também a exogamia, o fundamento da civilização. Segundo ele, não há nenhum argumento racional contra o incesto, (101) e o argumento higiénico que se opunha a ele acabou sendo retirado pela ciência mais avançada. Ela ratificou o frio juízo de Sade. ” … não está absolutamente provado que as crianças nascidas do incesto têm mais tendência do que as outras a serem cretinas, surdas-mudas, raquíticas, etc…” (102) A família – cuja coesão é assegurada não pelo amor romântico entre os sexos, mas pelo amor materno, que constitui a base de toda ternura e dos sentimentos sociais (103) – entra em conflito com a própria sociedade. “Não pensem vocês que poderão fazer bons republicanos enquanto isolarem na família as crianças que devem pertencer à comunidade apenas… Se é extremamente nocivo permitir que as crianças absorvam em sua família interesses que divergem muitas vezes profundamente dos da pátria, é por isso mesmo extremamente vantajoso separá-las dela” (104). Os “laços do himeneu” devem ser destruídos por razões sociais, o conhecimento dos pais deve ser “absolument interdit(e)” aos filhos, eles são “uniquement les enfants de la patrie” (105), e a anarquia, o individualismo, que Sade proclamou na luta contra as leis, (106) desemboca no domínio absoluto do universal, a república. Do mesmo modo que o Deus derrubado ressurge em um ídolo mais duro, assim também o velho Estado-gendarme burguês ressurge na violência da colectividade fascista. Sade levou às últimas consequências o conceito do socialismo de Estado, em cujos primeiros passos Saint-Just e Robespierre haviam fracassado. Se a burguesia os enviou à guilhotina, a eles, seus políticos mais fiéis, ela também baniu seu mais franco escritor para o inferno da Bibliotheque Nationale. Pois a chronique scandaleuse de Justine e Juliette – que, produzida em série, prefigurou no estilo do século dezoito o folhetim do século dezanove e a literatura de massas do século vinte – é a epopeia homérica liberada do último invólucro mitológico: a história do pensamento como órgão da dominação. Assustado com a própria imagem reflectida no espelho, o pensamento abre uma perspectiva para o que está situado além dele. Não é o ideal de uma sociedade harmoniosa, a dealbar no futuro até mesmo para Sade: “gardez vos frontieres et restez chez vous” (107), e nem mesmo a utopia socialista desenvolvida na história de Zamé (108), mas é, sim, o facto de que Sade não deixou a cargo dos adversários a tarefa de levar o esclarecimento a se horrorizar consigo mesmo, que faz de sua obra uma alavanca para salvar o esclarecimento.
Ao contrário de seus apologetas, os escritores sombrios da burguesia não tentaram distorcer as consequências do esclarecimento recorrendo a doutrinas harmonizadoras. Não pretenderam que a razão formalista tivesse uma ligação mais íntima com a moral do que com a imoralidade. Enquanto os escritores luminosos protegiam pela negação a união indissolúvel da razão e do crime, da sociedade burguesa e da dominação, aqueles proferiam brutalmente a verdade chocante. ” … É nas mãos sujas pelo assassinato das esposas e dos filhos, pela sodomia, pelos homicídios, pela prostituição e pelas infâmias que o céu coloca essas riquezas; e para me recompensar por essas abominações, ele as põe à minha disposição”, diz Clairwil no resumo da vida de seu irmão (109). Ela exagera. A justiça da má dominação não é consequente a ponto de recompensar apenas as atrocidades. Mas só o exagero é verdadeiro. A essência da pré-história é o aparecimento do horror supremo no detalhe. Por trás do cômputo estatístico das vítimas do progrom, que inclui os fuzilados por misericórdia, oculta-se a essência que somente surge à luz na descrição exacta da excepção, ou seja, da mais terrível tortura. Uma vida feliz num mundo de horror é refutada como algo de infame pela mera existência desse mundo. Este torna-se assim a essência, aquela algo de nulo. Certamente, o assassinato dos próprios filhos e esposas, a prostituição e a sodomia, são muito mais raros entre os governantes durante a era burguesa do que entre os governados, que adoptaram os costumes dos senhores de épocas anteriores. Em compensação, quando estava em jogo o poder, estes ergueram montanhas de cadáveres mesmo nos séculos mais recentes. Comparada à mentalidade e aos actos dos senhores no fascismo, onde a dominação realizou sua essência, a descrição entusiástica da vida de Brisa-Testa (na qual, porém, é possível reconhecer aquela) cai ao nível de uma banalidade inofensiva. Os vícios privados são em Sade, como já eram em Mandeville, a historiografia antecipada das virtudes públicas da era totalitária. O facto de ter, não encoberto, mas bradado ao mundo inteiro a impossibilidade de apresentar um argumento de princípio contra o assassinato ateou o ódio com que os progressistas ainda hoje perseguem Sade e Nietzsche. Diferentemente do positivismo lógico, ambos tomaram a ciência ao pé da letra. O facto de que insistem na ratio de uma maneira ainda mais decidida do que o positivismo tem o sentido secreto de liberar de seu invólucro a utopia contida, como no conceito kantiano de razão, em toda grande filosofia: a utopia de uma humanidade que, não sendo mais desfigurada, não precisa mais de desfigurar o que quer que seja. Proclamando a identidade da dominação e da razão, as doutrinas sem compaixão são mais misericordiosas do que as doutrinas dos lacaios morais da burguesia. “Onde estão os piores perigos para ti?”, indagou um dia Nietzsche (110) “Na compaixão”. Negando-a, ele salvou a confiança inabalável no homem, traída cada vez que se faz uma afirmação consoladora.
1. Kant, Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? Kants Werke. Akademie-Ausgabe. Vol. VIII, p. 35.
2. Kritik der reinen Vernunft, op. cit., vol. III (2.a ed.), p. 427.
3. Ibid.
4. Ibid., pp. 435 sg.
5. Ibid., p. 428.
6. Ibid., p. 429.
7. Op. cit., vol. IV (lª ed.), p. 93.
8. Kritik der Urteilskraft, op. cit., vol. V, p. 185.
9. lbid.
10. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI. p. 449.
11. [Como se fosse uma questão de linhas, planos ou volumes.] Spinoza, Ethica, parte III. Prefácio.
12. Kritik der reinen Vernunft, op. cit., vol. III (2.a ed.), p. 109.
13. Histoire de Juliette, Holanda, 1797. Vol. V. pp. 319 sg.
14. Ibid., pp. 322 sg.
15. Ibid., p. 324.
16. Kritik der praktischen Vernunft, op. cit., vol. V, pp. 31, 47, 55 entre outras.
17. Nouveaux Essais sur l’Entendement Humain. Ed. Erdmann, Berlim, 1840. Livro I, cap. II., § 9, p. 215.
18. Cf. a introdução de Heinrich Mann à edição da Inselverlag.
19. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI, p. 408.
20. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 58.
21. Ibid., pp. 60 sg.
22. [“O arrependimento não é uma virtude, ou não se origina da razão, mas quem se arrepende do que fez é duas vezes miserável ou impotente”.] Spinoza, Ethica, parte IV, prop. LIV. p. 368.
23. [“O povo mete medo, a não ser que tenha medo”] .lbid., Schol.
24. Metaphysische Anfänge der Tugendlehre, op. cit., vol. VI, p. 408.
25. Ibid., p. 409.
26. Juliette, op. cit., V. II, p. 114.
27. “Poucos bem-aventurados.” (N. do T.)
28. Op. cit., vol. III, p. 282.
29. Fr. Nietzsche. Umwertung a1ler Werte. Werke. Kröner, vol. VIII, p. 213
30. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 204.
31. E. Dühren apontou esse parentesco em suas Neuen Forschungen (Berlim, 1904, pp. 453 sgg.).
32. Nietzsche. op. cit.. vol. VIlI, p. 218.
33. Juliette, op. cit., vol. I, pp. 315 sg.
34. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, pp. 321 sgg.
35. [“Ousar tudo doravante sem medo”] .Juliette, op. cit., vol. I, p. 300
36. Histoire de Justine. Holanda, 1797, vol. IV, p. 4. (Também citado em Dühren, op. cit., p. 452.)
37. Genea1ogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 326 sg.
38. Justine. op. cit., vol. IV, p. 7.
39. Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 214.
40. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 433.
41. Juliette, op. cit., vol. I, pp. 208 sgg.
42. Ibid.. pp. 211 sg.
43. Jenseits von Gut und Böse, op. cit., vol. III, p. 100.
44. Nachlass, op. cit., vol. XII, p. 108.
45. Potências existentes. (N. do T.)
46. Juliette, op. cit., vol. I, p. 313.
47. [“Embora pareça ser uma espécie de piedade”.] Ethica, parte IV, apêndice, cap. XVI.
48. Ibid., prop. L. .Schol.
49. Ibid., prop. L.
50. Juliette, op. cit., vol. II, p. 125.
51. Ibid.
52. Nietzsche contra Wagner, op. cit., vol. VIII, p. 204.
53. Juliette, op. cit., vol. I. p. 313.
54. Op. cit., vol. II, p. 126.
55. Beobachtungen über das Gefühl des Schonen und Erhabenen, op. cit.. vol. II, pp. 215 sg.
56. Ibid.
57. Nachlass, op. cit., vol. XI, pp. 227 sg.
58. Also Sprach Zarathustra, op. cit., vol. VI, p. 248.
59. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, p. 421.
60. Só pelo prazer, só para se divertir. (N. do T.)
61. Juliette, op. cit., vol. III, pp. 78 sg.
62. Op. cit., vol. IV , pp. 126 sg.
63. Théorie de la Fête, em Nouvelle Revue Française, jan. 1940, p. 49
64. cf. Caillois, op. cit.
65. Ibid., pp. 58 sg.
66. Nachlass, op. cit., vol. XII, p. 364.
67. Emprego. (N. do T.)
68. A ralé, o zé-povinho branco. (N. do T.)
69. Namorado. (N. do T.)
70. Juliette, op. cit., vol. II, pp. 81 sg.
71. Op. cit., vol. III, pp. 172 sg.
72. Op. cit., vol. III, pp. 176 sg.
73. Edition privée par Helpey. p. 267.
74. Juliette, loc. cit.
75. Ibid., pp. 178 sg.
76. lbid., pp. 188-99.
77. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 261.
78. Op. cit., vol. II, p. 273.
79. ” … se eu pudesse, com uma só palavra, reduzi-las todas a esse estado”. (N. do T.)
80. Juliette, op. cit., vol. IV, p. 379.
81. Aline et Valcour. Bruxelas. 1883. Vol. I, p. 58.
82. lbid., p. 57.
83. Victor Hugo, L’Homme qui rit. Vol. VIII, cap. 7.
84. Juliette, op. cit., vol. IV. p. 199.
85. Cf. Les 120 Journées de Sodome. Paris, 1935. Vol. II, p. 308.
86. Der Fall Wagner, op. cit., vol. VIII, p. 10.
87. R. Briffault, The Mothers. Nova York, 1927. Vol. I. p. 119.
88. Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 216.
89. Op. cit., vol. XIV, p. 273.
90. Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, op. cit., vol. IV, p. 432.
91. Die Fröhliche Wissenschaft, op. cit., vol. V. p. 275. Cf. Genealogie der Moral, op. cit., vol. VII, pp. 267-71.
92. Die Fröhliche Wissenschaft, loc. cit.
93. Cf. Nietzsche, Nachlass, op. cit., vol. XI, p. 216.
94. Cf. Le Play, Les Ouvriers Européens. Paris, 1879. Vol. I, especialmente pp. 133 sgg.
95. Juliette, op. cit., vol. IV, pp. 303 sgg.
96. O “filósofo mitrado”. (N. do T.)
97. Les 120 Journées de Sodome, op. cit., vol. I, p. 72.
98. Cf. Juliette, op. cit., vol. II, p. 234. nota.
99. La Phi1osophie dans le Boudoir, op. cit., p. 185.
100. Cf. Demócrito, Diels Fragment 278. Berlim, 1912. Vol. II. pp. 117 sg.
101. La Philosophie dans le Boudoir, op. cit., p. 242.
102. S. Reinach, “La prohibition de l’inceste et le sentiment de la pudeur”. em: Cultes, Mythes et Religions. Paris, 1905, Vol. I, p. 157.
103. La Philosophie dans le Boudoir, op. cit. p. 238.
104. Ibid., pp. 238-49.
105. Ibid.
106. Juliette, op. cit., vol. IV, pp. 240-44.
107 .[“Guardem suas fronteiras e fiquem em casa”.] La Philosophie dans le Boudoir, op. cit., p. 263.
108. Aline et Valcour, op. cit., vol. II, pp. 181 sgg
109. Juliette, op. cit., vol. V, p. 232.
110. Die Fröhliche Wissenschaft, op. cit., vol. V. p. 205.
O Conceito de Esclarecimento – (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer 1944)
Fonte: Adorno
EXCURSO 1 Ulisses ou Mito e Esclarecimento – (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer 1944)
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A dialética do esclarecimento
Fragmentos filosóficos
Excurso I
Fonte: Adorno
Ulisses ou mito e esclarecimentos
Assim como o episódio das sereias mostra o entrelaçamento do mito e do trabalho racional, assim também a Odisseia em seu todo dá testemunho da dialéctica do esclarecimento. Sobretudo em seus elementos mais antigos, a epopeia mostra-se ligada ao mito: as aventuras têm origem na tradição popular. Mas, ao se apoderar dos mitos, ao “organizá-los”, o espírito homérico entra em contradição com eles. A assimilação habitual da epopeia ao mito – que a moderna filologia clássica, aliás, desfez – mostra-se à crítica filosófica como uma perfeita ilusão. São dois conceitos distintos, que marcam duas fases de um processo histórico nos pontos de sutura da própria narrativa homérica. O discurso homérico produz a universidade da linguagem, se já não a pressupõe. Ele dissolve a ordem hierárquica da sociedade pela forma exotérica de sua exposição, mesmo e justamente onde ele a glorifica. Cantar a ira de Aquiles e as aventuras de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar, e o herói das aventuras revela-se precisamente como um protótipo do indivíduo burguês, cujo conceito tem origem naquela auto-afirmação unitária que encontra seu modelo mais antigo no herói errante. Na epopeia, que é o oposto histórico-filosófico do romance, acabam por surgir traços que a assemelham ao romance, e o cosmo venerável do mundo homérico pleno de sentido revela-se como obra da razão ordenadora, que destrói o mito graças precisamente à ordem racional na qual ela o reflecte.
O discernimento do elemento esclarecedor burguês em Homero foi enfatizado pelos intérpretes da antiguidade ligados ao romantismo tardio alemão e que seguiam os primeiros escritos de Nietzsche. Nietzsche conhecia como poucos, desde Hegel, a dialéctica do esclarecimento. Foi ele que formulou sua relação contraditória com a dominação. É preciso “levar o esclarecimento ao povo, para que os padres se tornem todos padres cheios de má consciência – é preciso fazer a mesma coisa com o Estado. Eis a tarefa do esclarecimento: tornar, para os príncipes e estadistas, todo seu procedimento uma mentira deliberada. ..” (1) Por outro lado, o esclarecimento sempre foi um meio dos “grandes virtuosos na arte de governar (Confúcio na China, o Imperium Romanum, Napoleão, o papado na época em que se voltara para o poder e não apenas para o mundo) … A maneira pela qual as massas se enganam acerca desse ponto, por exemplo em toda democracia, é extremamente valiosa: o apequenamento e a governabilidade dos homens são buscados como ‘progresso’!” (2) Quando essa duplicidade do esclarecimento se destaca como um motivo histórico fundamental, seu conceito como pensamento progressivo é estendido até o início da história tradicional. Todavia, a relação de Nietzsche com o esclarecimento, e portanto com Homero, permanecia ela própria contraditória. Assim ele enxergava no esclarecimento tanto o movimento universal do espírito soberano, do qual se sentia o realizador último, quanto a potência hostil à vida, “nihilista”. Em seus seguidores pré-fascistas, porém, apenas o segundo aspecto se conservou e se perverteu em ideologia. Esta ideologia torna-se a cega exaltação da vida cega, à qual se entrega a mesma prática pela qual tudo o que é vivo é oprimido. Isso está claramente expresso na posição dos intelectuais fascistas em face de Homero. Eles farejam na descrição homérica das relações feudais um elemento democrático, classificam o poema como uma obra de marinheiros e negociantes e rejeitam a epopeia jónica como um discurso demasiado racional e uma comunicação demasiado corrente. O mau-olhado daqueles que se sentem identificados com toda dominação que pareça directa e que proscrevem toda mediação, o “liberalismo” em qualquer nível, captou algo de correcto. De facto, as linhas da razão, da liberalidade, da civilidade burguesa se estendem incomparavelmente mais longe do que supõem os historiadores que datam o conceito do burguês a partir tão-somente do fim do feudalismo medieval. Ao identificar o burguês justamente onde o humanismo burguês mais antigo presumia uma aurora sagrada destinada a legitimá-lo, a reacção neo-romântica identifica a história universal e o esclarecimento. A ideologia na moda, que faz da liquidação do esclarecimento a primeira de suas causas, presta-lhe uma reverência involuntária e se vê forçada a reconhecer a presença do pensamento esclarecido até mesmo no mais remoto passado. É justamente o vestígio mais antigo desse pensamento que representa para a má consciência dos espíritos arcaicos de hoje a ameaça de desfechar mais uma vez todo o processo que intentaram sufocar e que, no entanto, ao mesmo tempo levam a cabo de maneira inconsciente.
Mas o discernimento do carácter antimitológico e esclarecido de Homero, de sua oposição à mitologia ctónica, permanece longe da verdade na medida em que é limitado. Ao serviço da ideologia repressiva, Rudolf Borchardt, por exemplo o mais importante e por isso o mais impotente entre os pensadores esotéricos da indústria pesada alemã, interrompe cedo demais a análise. Ele não vê que os poderes originários enaltecidos já representam uma fase do esclarecimento. Ao denunciar sem maiores qualificações a epopeia como romance, ele deixa escapar que a epopeia e o mito têm de facto em comum dominação e exploração. O elemento ignóbil que ele condena na epopeia – a mediação e a circulação – é apenas o desdobramento desse duvidoso elemento de nobreza que ele diviniza no mito: a violência nua e crua. A pretensa autenticidade, o princípio arcaico do sangue e do sacrifício, já está marcado por algo da má consciência e da astúcia da dominação, que são características da renovação nacional que se serve hoje dos tempos primitivos como recurso propagandístico. O mito original já contém o aspecto da mentira que triunfa no carácter embusteiro do fascismo e que esse imputa ao esclarecimento. Mas nenhuma obra presta um testemunho mais eloquente do entrelaçamento do esclarecimento e do mito do que a obra homérica, o texto fundamental da civilização europeia. Em Homero, epopeia e mito, forma e conteúdo, não se separam simplesmente, mas se confrontam e se elucidam mutuamente. O dualismo estético atesta a tendência histórico-filosófica. “O Homero apolíneo é apenas o continuador daquele processo artístico humano universal ao qual devemos a individuação.” (3)
Os mitos depositaram-se nas diversas estratificações do texto homérico; mas o seu relato, a unidade extraída às lendas difusas, é ao mesmo tempo a descrição do trajecto de fuga que o sujeito empreende diante das potências míticas. Isto já vale num sentido mais profundo para a Ilíada. A cólera do filho mítico de uma deusa contra o rei guerreiro e organizador racional, a inactividade indisciplinada desse herói, finalmente o facto de que o destino nacional-helénico e não mais tribal alcança o morto vitorioso através da lealdade mítica ao companheiro morto, tudo isso confirma o entrelaçamento da história e da pré-história. Isso vale tanto mais drasticamente para a Odisseia quanto mais esta se aproxima da forma do romance de aventuras. A oposição do ego sobrevivente às múltiplas peripécias do destino exprime a oposição do esclarecimento ao mito. A viagem errante de Tróia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só vem a se formar na consciência de si. O mundo pré-histórico está secularizado no espaço que ele atravessa; os antigos demónios povoam a margem distante e as ilhas do Mediterrâneo civilizado, forçados a retroceder à forma do rochedo e da caverna, de onde outrora emergiram no pavor dos tempos primitivos. Mas as aventuras contemplam cada lugar com seu nome, e é a partir delas que se pode ter uma visão de conjunto e racional do espaço. O náufrago trémulo antecipa o trabalho da bússola. Sua impotência, para a qual nenhum lugar do mar permanece desconhecido, visa ao mesmo tempo a destituição das potências. Mas a simples inverdade dos mitos – a saber, que o mar e a terra na verdade não são povoados de demónios, efeitos do embuste mágico e da difusão da religião popular tradicional – torna-se aos olhos do emancipado um “erro” ou “desvio” comparado à univocidade do fim que visa em seu esforço de autoconservação: o retorno à pátria e aos bens sólidos. As aventuras de que Ulisses sai vitorioso são todas elas perigosas seduções que desviam o eu da trajectória de sua lógica. Ele cede sempre a cada nova sedução, experimenta-a como um aprendiz incorrigível e até mesmo, às vezes, impelido por uma tola curiosidade, assim como um actor experimenta insaciavelmente os seus papéis. “Mas onde há perigo, cresce também o que salva”: (4) o saber em que consiste sua identidade e que lhe possibilita sobreviver tira sua substância da experiência de tudo aquilo que é múltiplo, que desvia, que dissolve e o sobrevivente sábio é ao mesmo tempo aquele que se expõe mais audaciosamente à ameaça da morte, na qual se torna duro e forte para a vida. Eis aí o segredo do processo entre a epopeia e o mito: o eu não constitui o oposto rígido da aventura, mas só vem a se formar em sua rigidez através dessa oposição, unidade que é tão somente na multiplicidade de tudo aquilo que é negado por essa unidade. (5) Como os heróis de todos romances posteriores, Ulisses por assim dizer se perde a fim de se ganhar. Para alienar-se da natureza ele se abandona à natureza, com a qual se mede em toda aventura, e, ironicamente, essa natureza inexorável que ele comanda triunfa quando ele volta – inexorável – para casa, como juiz e vingador do legado dos poderes de que escapou. Na fase homérica, a identidade do eu é a tal ponto função do não-idêntico, dos mitos dissociados, inarticulados, que ela tem que se buscar neles. Ainda é tão fraca a forma de organização interna da individualidade, o tempo, que a unidade das aventuras permanece exterior e sua sequência não passa da mudança espacial dos cenários, dos sítios das divindades locais, para onde o arrasta a tempestade. Todas as vezes que o eu voltou a experimentar historicamente semelhante enfraquecimento, ou que o modo de expor pressupôs semelhante fraqueza no leitor, a narrativa da vida resvalou novamente para a sucessão de aventuras. Na imagem da viagem, o tempo histórico se desprende laboriosa e revogavelmente do espaço, o esquema irrevogável de todo tempo mítico.
O recurso do eu para sair vencedor das aventuras, perder-se para se conservar, é a astúcia. O navegador Ulisses logra as divindades da natureza, como depois o viajante civilizado logrará os selvagens oferecendo-lhes contas de vidro coloridas em troca de marfim. É verdade que só às vezes ele aparece fazendo trocas, a saber, quando se dão e se recebem os presentes da hospitalidade. O presente de hospitalidade homérico está a meio caminho entre a troca e o sacrifício. Como um acto sacrificial, ele deve pagar pelo sangue incorrido, seja do estrangeiro, seja do residente vencido pelos piratas, e selar a paz. Mas, ao mesmo tempo, o presente anuncia o princípio do equivalente: o hospedeiro recebe real ou simbolicamente o equivalente de sua prestação, o hóspede um viático que, basicamente, deve capacitá-lo a chegar em casa. Mesmo que o hospedeiro não receba nenhuma compensação imediata, ele pode ter a certeza de que ele próprio ou seus parentes serão recebidos da mesma maneira: como sacrifício às divindades elementares, o presente é ao mesmo tempo um seguro rudimentar contra elas. A extensa mas perigosa navegação na Grécia antiga é o pressuposto pragmático disto. O próprio Posseidon, o inimigo elementar de Ulisses, pensa em termos de equivalência, queixando-se de que aquele receba em todas as etapas de sua errática viagem mais presentes do que teria sido sua parte nos despojos de Tróia, caso Posseidon não lhe houvesse impedido transportá-la. Em Homero, porém, é possível derivar semelhante racionalização dos actos sacrificiais propriamente ditos. Pode-se contar com a benevolência das divindades conforme a magnitude das hecatombes. Se a troca é a secularização do sacrifício, o próprio sacrifício já aparece como o esquema mágico da troca racional, uma cerimónia organizada pelos homens com o fim de dominar os deuses, que são derrubados exactamente pelo sistema de veneração de que são objectos. (6)
A parte que o logro desempenha no sacrifício é o protótipo das astúcias de Ulisses, e é assim que muitos de seus estratagemas são armados à maneira de um sacrifício oferecido às divindades da natureza. (7) As divindades da natureza são logradas pelo herói do mesmo modo que pelos deuses solares. Assim os amigos olímpicos de Ulisses valem-se da estada de Posseidon entre os etíopes – selvagens que ainda o veneram e lhe oferecem enormes sacrifícios – para escoltar a salvo seu protegido. O logro já está envolvido no próprio sacrifício que Posseidon aceita prazerosamente: a limitação do amorfo deus do mar a uma localidade determinada, a área sagrada, limita ao mesmo tempo sua potência, e, para saciar-se nos bois etíopes, ele deve em troca renunciar a dar vazão à sua cólera em Ulisses. Todas as acções sacrificiais humanas, executadas segundo um plano, logram o deus ao qual são dirigidas: elas o subordinam ao primado dos fins humanos, dissolvem seu poderio, e o logro de que ele é objecto se prolonga sem ruptura no logro que os sacerdotes incrédulos praticam sobre a comunidade crédula. A astúcia tem origem no culto. O próprio Ulisses actua ao mesmo tempo como vítima e sacerdote. Ao calcular seu próprio sacrifício, ele efectua a negação da potência a que se destina esse sacrifício. Ele recupera assim a vida que deixara entregue. Mas o logro, a astúcia e a racionalidade não se opõem simplesmente ao arcaísmo do sacrifício. O que Ulisses faz é tão-somente elevar à consciência de si a parte de logro inerente ao sacrifício, que é talvez a razão mais profunda para o carácter ilusório do mito. A experiência de que a comunicação simbólica com a divindade através do sacrifício nada tem de real só pode ser uma experiência antiquíssima. A substituição que ocorre no sacrifício, exaltada pelos defensores de um irracionalismo em moda, não deve ser separada da divinização do sacrificado, ou seja, do embuste que é a racionalização sacerdotal do assassínio pela apoteose do escolhido. Algo desse embuste – que erige justamente a pessoa inerme em portador da substância divina – sempre se pôde perceber no ego, que deve sua própria existência ao sacrifício do momento presente ao futuro. Sua substancialidade é aparência, assim como a imortalidade da vítima abatida. Não é à toa que Ulisses foi tido por muitos como uma divindade.
Enquanto os indivíduos forem sacrificados, enquanto o sacrifício implicar a oposição entre a colectividade e o indivíduo, a impostura será uma componente objectiva do sacrifício. Se a fé na substituição pela vítima sacrificada significa a reminiscência de algo que não é um aspecto originário do eu, mas proveniente da história da dominação, ele se converte para o eu plenamente desenvolvido numa inverdade: o eu é exactamente o indivíduo humano ao qual não se credita mais a força mágica da substituição. A constituição do eu corta exactamente aquela conexão flutuante com a natureza que o sacrifício do eu pretende estabelecer. Todo sacrifício é uma restauração desmentida pela realidade histórica na qual ela é empreendida. A fé venerável no sacrifício, porém, já é provavelmente um esquema inculcado, segundo o qual os indivíduos subjugados infligem mais uma vez a si próprios a injustiça que lhes foi infligida, a fim de poder suportá-la. O sacrifício não salva, por uma restituição substitutiva, a comunicação imediata apenas interrompida que os mitólogos de hoje lhe atribuem, mas, ao contrário, a instituição do sacrifício é ela própria a marca de uma catástrofe histórica, um acto de violência que atinge os homens e a natureza igualmente. A astúcia nada mais é do que o desdobramento subjectivo dessa inverdade objectiva do sacrifício que ela vem substituir. Talvez essa inverdade não tenha sido sempre apenas uma inverdade. Pode ser que, em determinada época (8) dos tempos primitivos, os sacrifícios tenham possuído uma espécie de racionalidade crua, que no entanto já então mal se podia separar da sede de privilégios. A teoria do sacrifício predominante hoje em dia relaciona-o à representação do corpo colectivo, da tribo, à qual deve refluir como força o sangue derramado do membro da tribo. Embora o totemismo já fosse em sua época uma ideologia, ele marca no entanto um estado real em que a razão dominante precisava dos sacrifícios. É um estado de carência arcaica, onde é difícil distinguir os sacrifícios humanos do canibalismo. Em certos momentos, com seu aumento numérico, a colectividade só consegue sobreviver provando a carne humana. É possível que, em muitos grupos étnicos ou sociais, o prazer estivesse ligado ao canibalismo de uma maneira da qual só o horror da carne humana dá hoje testemunho. Costumes de épocas posteriores como o do ver sacrum, onde em tempos de fome uma geração inteira de adolescentes era forçada a emigrar em meio a cerimônias rituais, conservam de uma maneira bastante clara os traços dessa racionalidade bárbara e transfigurada. O carácter ilusório dessa racionalidade deve ter se revelado muito antes da formação das religiões populares: assim, quando a caça sistemática começou a prover a tribo de um número suficiente de animais para tornar supérflua a antropofagia, os caçadores e colocadores de armadilhas sensatos devem ter ficado desconcertados com a ordem dos feiticeiros de que os membros da tribo se deixassem devorar. (9) A interpretação mágica e colectiva do sacrifício, que nega totalmente sua racionalidade, é a sua racionalização; mas a hipótese esclarecida e linear de que o que hoje seria ideologia poderia ter sido outrora verdade é ingénua demais: (10) as ideologias mais recentes são apenas reprises das mais antigas, que se estendem tanto mais aquém das ideologias anteriormente conhecidas quanto mais o desenvolvimento da sociedade de classes desmente as ideologias anteriormente sancionadas. A irracionalidade tão invocada do sacrifício exprime simplesmente o facto de que a prática dos sacrifícios sobreviveu à sua própria necessidade racional, que já constituía uma inverdade, isto é, já era particular. É dessa separação entre a racionalidade e a irracionalidade do sacrifício que a astúcia se utiliza. Toda desmitologização tem a forma da experiência inevitável da inanidade e superfluidade dos sacrifícios.
Se, por causa de sua irracionalidade, o princípio do sacrifício se revela efémero, ele perdura ao mesmo tempo em virtude de sua racionalidade. Essa se transformou, não desapareceu. O eu consegue escapar à dissolução na natureza cega, cuja pretensão o sacrifício não cessa de proclamar. Mas ao fazer isso ele permanece justamente preso ao contexto natural como um ser vivo que quer se afirmar contra um outro ser vivo. A substituição do sacrifício pela racionalidade autoconservadora não é menos troca do que o fora o sacrifício. Contudo, o eu que persiste idêntico e que surge com a superação do sacrifício volta imediatamente a ser um ritual sacrificial duro, petrificado, que o homem se celebra para si mesmo opondo sua consciência ao contexto da natureza. Eis aí a verdade da célebre narrativa da mitologia nórdica, segundo a qual Odin se pendurou numa árvore em sacrifício por si mesmo, e da tese de Klages que todo sacrifício é o sacrifício do deus ao deus, tal como ainda se apresenta nesse disfarce monoteísta do mito que é a cristologia. (11) Só que o extracto da mitologia no qual o eu aparece como sacrifício a si mesmo não exprime tanto a concepção originária da religião popular quanto a acolhida do mito na civilização. Na história das classes, a hostilidade do eu ao sacrifício incluía um sacrifício do eu, porque seu preço era a negação da natureza no homem, em vista da dominação sobre a natureza extra-humana e sobre os outros homens. Exactamente essa negação, núcleo de toda racionalidade civilizatória, é a célula da proliferação da irracionalidade mítica. Com a negação da natureza no homem, não apenas o telos da dominação externa da natureza, mas também o telos da própria vida se torna confuso e opaco. No instante em que o homem elide a consciência de si mesmo como natureza, todos os fins para os quais ele se mantém vivo – o progresso social, o aumento de suas forças materiais e espirituais, até mesmo a própria consciência – tornam-se nulos, e a entronização do meio como fim, que assume no capitalismo tardio o carácter de um manifesto desvario, já é perceptível na proto-história da subjectividade. O domínio do homem sobre si mesmo, em que se funda o seu ser, é sempre a destruição virtual do sujeito ao serviço do qual ele ocorre; pois a substância dominada, oprimida e dissolvida pela autoconservação, nada mais é senão o ser vivo, cujas funções configuram, elas tão-somente, as actividades da autoconservação, por conseguinte exactamente aquilo que na verdade devia ser conservado. A anti-razão do capitalismo totalitário, cuja técnica de satisfazer necessidades, em sua forma objectualizada, determinada pela dominação, torna impossível a satisfação de necessidades e impele ao extermínio dos homens – essa anti-razão está desenvolvida de maneira prototípica no herói que se furta ao sacrifício sacrificando-se. A história da civilização é a história da introversão do sacrifício. Ou por outra, a história da renúncia. Quem pratica a renúncia dá mais de sua vida do que lhe é restituído, mais do que a vida que ele defende. Isso fica evidente no contexto da falsa sociedade. Nela cada um é demais e se vê logrado. Mas é por uma necessidade social que quem quer que se furte à troca universal, desigual e injusta, que não renuncie, mas agarre imediatamente o todo inteiro, por isso mesmo há de perder tudo, até mesmo o resto miserável que a auto-conservação lhe concede. Todos esses sacrifícios supérfluos são necessários: contra o sacrifício. Uma vítima de um desses sacrifícios é o próprio Ulisses, o eu que está sempre a se refrear (12) e assim deixa escapar a vida que salvou e que só recorda como uma viagem de erros. No entanto, ele é ao mesmo tempo uma vítima que se sacrifica pela abolição do sacrifício. Sua renúncia senhoril é, enquanto luta com o mito, representativa de uma sociedade que não precisa mais da renúncia e da dominação: que se tornou senhora de si, não para fazer violência a si mesma e aos outros, mas para a reconciliação.
A transformação do sacrifício em subjectividade tem lugar sob o signo daquela astúcia que sempre teve uma parte no sacrifício. Na inverdade da astúcia, a fraude presente no sacrifício torna-se um elemento do carácter, uma mutilação do herói astuto arrojado pelo mar (13) e cuja fisionomia está marcada pelos golpes que desferiu contra si mesmo a fim de se autoconservar. Aí se exprime a relação entre o espírito e a força física. O portador do espírito, o que comanda (e é assim que o astucioso Ulisses é quase sempre apresentado) é, apesar dos relatos de suas façanhas, sempre fisicamente mais fraco do que as potências dos tempos primitivos com as quais deve lutar pela vida. Os episódios celebrando a pura força física do aventureiro, o pugilato patrocinado pelos pretendentes com o mendigo Iros e o retesamento do arco, são de natureza desportiva. A autoconservação e a força física separaram-se: as habilidades atléticas de Ulisses são as do gentleman, que, livre dos cuidados práticos, pode treinar de uma maneira ao mesmo tempo senhoril e controlada. A força dissociada da autoconservação reverte em proveito da autoconservação: no agon (14) com o mendigo fraco, voraz, indisciplinado, ou com os que vivem no ócio, Ulisses inflige simbolicamente aos atrasados aquilo que a dominação territorial organizada há muito já fizera com eles na realidade, e assim prova sua nobreza. Quando, porém, encontra potências do mundo primitivo, que não se domesticaram nem se afrouxaram, suas dificuldades são maiores. Ele não pode jamais travar luta física com os poderes míticos que continuam a existir à margem da civilização. Ele tem que reconhecer como um. facto os cerimoniais sacrificiais com os quais acaba sempre por se envolver, pois não tem força para infringi-los. Em vez disso, faz deles o pressuposto formal de sua própria decisão racional, que se realizará sempre, por assim dizer, no interior do veredicto proto-histórico subjacente à situação sacrificial. O facto de que o sacrifício antigo se tornara entrementes ele próprio irracional apresenta-se à inteligência do mais fraco como a estupidez do ritual. Ele permanece aceite, sua letra é estritamente observada. Mas a sentença que perdeu o sentido refuta-se a si mesma pelo facto de que seu próprio estatuto dá margem a que se esquive a ela. É exactamente o espírito dominador da natureza que reivindica sempre a superioridade da natureza na competição. Todo esclarecimento burguês está de acordo na exigência de sobriedade, realismo, avaliação correcta de relações de força. O desejo não deve ser o pai do pensamento. Mas isso deriva do facto de que, na sociedade de classes, todo poderio está ligado à consciência incómoda da própria impotência diante da natureza física e de seus herdeiros sociais, a maioria. Só a adaptação conscientemente controlada à natureza a coloca sob o poder dos fisicamente mais fracos. A ratio, que recalca a mimese, não é simplesmente seu contrário. Ela própria é mimese: a mimese do que está morto. O espírito subjectivo que exclui a alma da natureza só domina essa natureza privada da alma imitando sua rigidez e excluindo-se a si mesmo como animista. A imitação se põe ao serviço da dominação na medida em que até o homem se transforma num antropomorfismo para o homem. O esquema da astúcia ulissiana é a dominação da natureza mediante essa assimilação. A avaliação das relações de força, que de antemão coloca a sobrevivência na dependência por assim dizer da confissão da própria derrota e virtualmente da morte, já contém in nuce o princípio da desilusão burguesa, o esquema exterior para a interiorização do sacrifício, a renúncia. O astucioso só sobrevive ao preço de seu próprio sonho, a quem ele faz as contas desencantando-se a si mesmo bem como aos poderes exteriores. Ele jamais pode ter o todo; tem sempre de saber esperar, ter paciência, renunciar; não pode provar do lótus nem tampouco da carne dos bois de Hipérion; e quando guia sua nau por entre os rochedos, tem de incluir em seu cálculo a perda dos companheiros que Cila arranca ao navio. Ele tem que se virar, eis aí sua maneira de sobreviver, e toda a glória que ele próprio e os outros aí lhe concedem confirma apenas que a dignidade de herói só é conquistada humilhando a ânsia de uma felicidade total, universal, indivisa.
A fórmula para a astúcia de Ulisses consiste em fazer com que o espírito instrumental, amoldando-se resignadamente à natureza, dê a esta o que a ela pertence e assim justamente a logre. Os monstros míticos em cujo poder ele cai representam sempre, por assim dizer, contratos petrificados, reivindicações pré-históricas. É assim que a religião popular antiga, numa fase avançada da era patriarcal, se apresenta em suas relíquias dispersas: sob o céu olímpico, elas se tornaram figuras do destino abstracto, da necessidade distante dos sentidos. A impossibilidade, por exemplo, de escolher uma rota diversa da que passa por entre Cila e Caríbdis pode ser compreendida de maneira racionalista como a transformação mítica da superioridade das correntes marítimas sobre as pequenas embarcações da antiguidade. Mas, nessa transferência objectualizadora operada pelo mito, a relação natural entre força e impotência já assumiu o carácter de uma relação jurídica. Cila e Caríbdis têm o direito de reclamar aquilo que lhes cai entre os dentes, assim como Circe tem o direito de metamorfosear quem quer que não seja imune à sua mágica, ou Polifemo o direito de devorar seus hóspedes. Cada uma das figuras míticas está obrigada a fazer sempre a mesma coisa. Todas consistem na repetição: o malogro desta seria seu fim. Todas têm os traços daquilo que, nos mitos punitivos do inferno – os mitos de Tântalo, de Sísifo, das Danaides – , se fundamenta no veredicto do Olimpo. São figuras da compulsão: as atrocidades que cometem representam a maldição que pesa sobre elas. A inevitabilidade mítica é definida pela equivalência entre essa maldição, o crime que a expia e a culpa que dele resulta e reproduz a maldição. A justiça traz até hoje a marca desse esquema. No mito, cada ponto do ciclo faz reparação ao precedente e ajuda assim a instalar como lei as relações de culpa. É a isso que se opõe Ulisses. O eu representa a universalidade racional contra a inevitabilidade do destino. Mas, como ele encontra o universal e o inevitável entrelaçados, sua racionalidade assume necessariamente uma forma restritiva, a da excepção. Ele está obrigado a se subtrair às relações jurídicas que o encerram e o ameaçam e que, de certa maneira, estão inscritas em cada figura mítica. Ele satisfaz o estatuto jurídico de tal sorte que este perde seu poder sobre ele, na medida mesmo em que lhe concede esse poder. É possível ouvir as Sereias e a elas não sucumbir: não se pode desafiá-las. Desafio e cegueira são uma só coisa, e quem as desafia está por isso mesmo entregue ao mito ao qual se expõe. A astúcia, porém, é o desafio que se tornou racional. Ulisses não tenta tomar um caminho diverso do que passa pela ilha das Sereias. Tampouco tenta, por exemplo, alardear a superioridade de seu saber e escutar livremente as sedutoras, na presunção de que sua liberdade constitua protecção suficiente. Ele se apequena, o navio toma sua rota predeterminada e fatal, e ele se dá conta de que continua como ouvinte entregue à natureza, por mais que se distancie conscientemente dela. Ele cumpre o contrato de sua servidão (15) e se debate amarrado ao mastro para se precipitar nos braços das corruptoras. Mas ele descobriu no contrato uma lacuna pela qual escapa às suas normas, cumprindo-as. O contrato antiquíssimo não prevê se o navegante que passa ao largo deve escutar a canção amarrado ou desamarrado. O costume de amarrar os prisioneiros pertence a uma fase em que eles não são mais sumariamente executados. Ulisses reconhece a superioridade arcaica da canção deixando-se, tecnicamente esclarecido, amarrar. Ele se inclina à canção do prazer e frustra-a como frustra a morte. O ouvinte amarrado quer ir ter com as Sereias como qualquer outro. Só que ele arranjou um modo de, entregando-se, não ficar entregue a elas. Apesar da violência de seu desejo, que reflecte a violência das próprias semideusas, ele não pode reunir-se a elas, porque os companheiros a remar, com os ouvidos tapados de cera, estão surdos não apenas para as semideusas, mas também para o grito desesperado de seu comandante. As Sereias recebem sua parte, mas, na proto-história da burguesia, isto já se neutralizou na nostalgia de quem passa ao largo. A epopeia cala-se acerca do que acontece às cantoras depois que o navio desapareceu. Mas, na tragédia, deveria ter sido sua última hora, como foi a da Esfinge quando Édipo resolveu o enigma, cumprindo sua ordem e assim precipitando sua queda. Pois o direito das figuras míticas, que é o direito do mais forte, vive tão-somente da impossibilidade de cumprir seu estatuto. Se este é satisfeito, então tudo acabou para os mitos até sua mais remota posteridade. Desde o feliz e malogrado encontro de Ulisses com as Sereias, todas as canções ficaram afectadas, e a música ocidental inteira labora no contra-senso que representa o canto na civilização, mas que, ao mesmo tempo, constitui de novo a força motora de toda arte musical.
Com a dissolução do contrato através de sua observância literal, altera-se a posição histórica da linguagem: ela começa a transformar-se em designação. O destino mítico, fatum, e a palavra falada eram uma só coisa. A esfera das representações a que pertencem as sentenças do destino executadas invariavelmente pelas figuras míticas ainda não conhece a distinção entre palavra e objecto. A palavra deve ter um poderio imediato sobre a coisa, expressão e intenção confluem. A astúcia, contudo, consiste em explorar a distinção, agarrando-se à palavra, para modificar a coisa. Surge assim a consciência da intenção: premido pela necessidade, Ulisses se apercebe do dualismo, ao descobrir que a palavra idêntica pode significar coisas diferentes. Como o nome Oudeis (16) pode ser atribuído tanto ao herói quanto a ninguém, Ulisses consegue romper o encanto do nome. As palavras imutáveis permanecem fórmulas para o contexto inexorável da natureza. Na magia, sua rigidez já devia fazer face à rigidez do destino que ao mesmo tempo se reflectia nela. Isso já implicava a oposição entre a palavra e aquilo ao qual ela se assimilava. Na fase homérica, essa oposição torna-se determinante. Ulisses descobre nas palavras o que na sociedade burguesa plenamente desenvolvida se chama formalismo: o preço de sua validade permanente é o facto de que elas se distanciam do conteúdo que as preenche em cada caso e que, a distância, se referem a todo conteúdo possível, tanto a ninguém quanto ao próprio Ulisses. É do formalismo dos nomes e estatutos míticos, que querem reger com a mesma indiferença da natureza os homens e a história, que surge o nominalismo, o protótipo do pensamento burguês. A astúcia da autoconservação vive do processo que rege a relação entre a palavra e a coisa. Os dois actos contraditórios de Ulisses no encontro com Polifemo – sua obediência ao nome e seu repúdio dele – são, porém, mais uma vez a mesma coisa. Ele faz profissão de si mesmo negando-se como Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer. Essa adaptação pela linguagem ao que está morto contém o esquema da matemática moderna.
A astúcia como meio de uma troca onde tudo se passa correctamente, onde o contrato é respeitado e, no entanto, o parceiro é logrado, remete a um modelo económico que aparece, senão nos tempos míticos, pelo menos na aurora da antiguidade: é a antiquíssima “troca ocasional” entre economias domésticas fechadas. “Os excedentes são trocados ocasionalmente, mas a principal fonte do abastecimento é a autoprodução.” (17) O comportamento do aventureiro Ulisses lembra o comportamento do trocador ocasional. Mesmo sob a figura patética do mendigo, o homem feudal exibe os traços do comerciante oriental (18) que retorna com riquezas inauditas, porque, pela primeira vez e opondo-se à tradição, saiu do âmbito da economia doméstica e “embarcou”. Do ponto de vista económico, o elemento aventureiro de seus empreendimentos nada mais é do que o aspecto irracional de sua ratio em face da forma económica tradicionalista ainda predominante. Essa irracionalidade da ratio sedimentou-se na astúcia enquanto assimilação da razão burguesa – àquela irrazão que vem a seu encontro como um poder ainda maior. O solitário astucioso já é o homo oeconomicus, ao qual se assemelham todos os seres racionais: por isso, a Odisseia já é uma robinsonada. Os dois náufragos prototípicos fazem de sua fraqueza – a fraqueza do indivíduo que se separa da colectividade – sua força social. Entregues ao acaso das ondas, desamparadamente isolados, seu isolamento dita-lhes a perseguição implacável do interesse atomístico. Eles personificam o princípio da economia capitalista, antes mesmo que esta recorra aos serviços de um trabalhador: mas os bens que salvam do naufrágio para empregar em um novo empreendimento transfiguram a verdade segundo a qual o empresário jamais enfrentou a competição unicamente com o labor de suas mãos. Sua impotência em face da natureza já funciona como justificação ideológica de sua supremacia social. O desamparo de Ulisses diante da fúria do mar já soa como a legitimação do viajante que se enriquece à custa do nativo. Foi isso que a teoria económica burguesa fixou posteriormente no conceito do risco: a possibilidade da ruína é a justificação moral do lucro. Do ponto de vista das sociedades de troca desenvolvidas e dos indivíduos que as compõem, as aventuras de Ulisses nada mais são do que a descrição dos riscos que constituem o caminho para o sucesso. Ulisses vive segundo o princípio primordial que constituiu outrora a sociedade burguesa. A escolha era entre lograr ou arruinar-se. O logro era a marca da ratio, traindo sua particularidade. Por isso a socialização universal, esboçada na história de Ulisses, o navegante do mundo, e na de Robinson, o fabricante solitário, já implica desde a origem a solidão absoluta, que se torna manifesta ao fim da era burguesa. Socialização radical significa alienação radical. Ulisses e Robinson têm ambos a ver com a totalidade: aquele a percorre, este a produz. Ambos só a realizam em total separação de todos os demais homens. Estes só vêm ao encontro dos dois em uma feição alienada, como inimigos ou como pontos de apoio, sempre como instrumentos, como coisas.
Uma das primeiras aventuras do nostos (19) propriamente dito remonta, é verdade, muito mais alto, e até mesmo muito aquém da era bárbara das caretas dos demónios e das divindades mágicas. Trata-se da narrativa dos lotófagos, dos comedores de lótus. Quem prova de sua comida sucumbe como os que escutam as Sereias ou como os que foram tocados pela varinha de Circe. Todavia, nenhum mal é feito a suas vítimas: “Os lotófagos nenhum mal fizeram aos homens de nosso grupo.” (20) A única ameaça é o esquecimento e a destruição da vontade. A maldição condena-os unicamente ao estado primitivo sem trabalho e sem luta na “fértil campina”: (21) “ora, quem saboreava a planta do lótus, mais doce do que o mel, não pensava mais em trazer notícias nem em voltar, mas só queria ficar aí, na companhia dos lotófagos, colhendo o lótus, e esquecido da pátria”. (22) Essa cena idílica – que lembra a felicidade dos narcóticos, de que se servem as camadas oprimidas nas sociedades endurecidas, a fim de suportar o insuportável – , essa cena, a razão autoconservadora não pode admiti-la entre os seus. Esse idílio é na verdade a mera aparência da felicidade, um estado apático e vegetativo, pobre como a vida dos animais e no melhor dos casos a ausência da consciência da infelicidade. Mas a felicidade encerra a verdade. Ela é essencialmente um resultado e se desenvolve na superação do sofrimento. E essa a justificação do herói sofredor, que não sofre permanecer entre os lotófagos. Ele defende contra estes a própria causa deles, a realização da utopia, através do trabalho histórico, pois o simples facto de se demorar na imagem da beatitude é suficiente para roubar-lhe o vigor. Mas ao perceber essa justificação, a racionalidade, isto é, Ulisses, entra forçosamente no contexto da injustiça. Enquanto imediata, sua própria acção resulta em favor da dominação. Essa felicidade “nos limites do mundo” (23) é tão inadmissível para a razão autoconservadora quanto a felicidade mais perigosa de fases posteriores. Os preguiçosos são despertados e transportados para as galeras: “mas eu os trouxe de novo à força, debulhados em lágrimas, para as naus; arrastei-os para os navios espaçosos e amarrei-os debaixo dos bancos.” (24) O lótus é um alimento oriental. Ainda hoje, cortado em finas fatias, desempenha seu papel na cozinha chinesa e indiana. A tentação que lhe é atribuída, não é talvez, outra coisa senão a da regressão à fase da colecta dos frutos da terra (25) e do mar, anterior à agricultura, à pecuária e mesmo à caça, em suma, a toda a produção. Não é certamente por acaso que a epopeia liga a imagem do país de Cocanha à alimentação de flores, mesmo que se trate de flores nas quais nada de semelhante se possa hoje notar. O hábito de comer flores – que ainda se pratica à sobremesa no Próximo Oriente e que as crianças europeias conhecem das massas assadas com leite de rosas e das violetas cristalizadas – é a promessa de um estado em que a reprodução da vida se tornou independente da autoconservação consciente e o prazer de se fartar se tornou independente da utilidade de uma alimentação planejada. A lembrança da felicidade mais remota e mais antiga, que desperta o sentido do olfacto, ainda está intimamente ligada à proximidade extrema da incorporação. Ela remete à proto-história. Não importa quantos tormentos os homens aí padeceram, eles não conseguem imaginar nenhuma felicidade que não se nutra da imagem dessa proto-história: “assim prosseguimos viagem, com o coração amargurado”. (26)
A próxima figura à qual o astucioso Ulisses é arremessado – em Homero ser arremessado e ser astucioso são equivalentes (27) -, o ciclope Polifemo, traz em seu olho do tamanho de uma roda o vestígio do mesmo mundo pré-histórico: esse olho único lembra o nariz e a boca, mais primitivos do que a simetria dos olhos e dos ouvidos, (28) que, na unidade de duas percepções coincidentes, vem possibilitar a identificação, a profundidade e a objectualidade em geral. Mas ele representa, no entanto, em face dos lotófagos, uma era posterior, a era propriamente bárbara, que é a dos caçadores e pastores. Ele chama os ciclopes de “celerados sem lei”, (29) porque eles (e nisso há algo que se assemelha a uma secreta confissão de culpa da própria civilização) “confiando no poderio dos deuses imortais, nada cultivam com as mãos, plantando ou lavrando; mas, sem ninguém para plantar ou cultivar, crescem as plantas, tanto o trigo quanto a cevada e as nobres cepas, carregadas de grandes cachos, que a chuva de Crônion vem nutrir”. (30) A abundância não precisa da lei e a acusação civilizatória da anarquia soa quase como uma denúncia da abundância: “aí não há nem leis nem assembleias do povo, mas habitam em volta dos penhascos das montanhas em grutas côncavas; e cada um dita arbitrariamente a lei às mulheres e às crianças; e ninguém tem consideração pelos outros”. (31) Já é uma sociedade patriarcal, baseada na opressão dos fisicamente mais fracos, mas ainda não organizada segundo o critério da propriedade fixa e de sua hierarquia; e é a ausência de vínculos entre os habitantes das cavernas que explica a ausência de uma lei objectiva e assim justifica a censura homérica da desconsideração recíproca, característica do estado selvagem. Ao mesmo tempo, a fidelidade pragmática do narrador desmente numa passagem posterior seu juízo civilizado: toda a tribo atende ao grito de pavor do ciclope cegado para ajudá-lo, e apenas o estratagema que Ulisses arma com seu nome impede os tolos de darem assistência ao seu semelhante. (32) A estupidez e a ausência de leis aparecem como o mesmo atributo: quando Homero chama o ciclope de “monstro que pensa sem lei”, (33) isso não significa meramente que ele não respeite em seu pensamento as leis da civilidade. Isso significa também que o seu próprio pensamento é sem lei, assistemático, rapsódico, quando por exemplo não consegue resolver o singelo problema de raciocínio, que consiste em saber de que maneira seus hóspedes não-indesejáveis conseguem escapar da caverna (a saber, agarrando-se ao ventre dos carneiros, ao invés de cavalgá-los) e também quando não se dá conta do sofístico duplo sentido do nome falso de Ulisses. Polifemo, que confia no poderio dos imortais, é no entanto um antropófago e é por isso que, apesar dessa confiança, recusa reverência aos deuses: “tu és louco, estranho, ou vens de longe” – em épocas posteriores, a distinção entre o louco e o estranho era menos escrupulosa e o desconhecimento do costume, assim como todo modo de ser estranho, eram imediatamente tachados de loucura – , “tu que me exortas a temer os deuses e sua vingança! Pois de nada valem para os ciclopes o trovejador Zeus Crônion, nem os deuses bem-aventurados, pois somos muito superiores!” (34) “Superiores”, escarnece o narrador Ulisses. Mas o que ele de facto queria dizer era: mais velhos. O poderio do sistema solar é reconhecido, porém mais ou menos assim como um senhor feudal reconhece o poderio da riqueza burguesa, embora secretamente se sinta como o mais nobre, sem perceber que a injustiça que lhe foi feita é da mesma ordem que a injustiça que ele próprio representa. Posseidon, o deus marinho próximo, pai de Polifemo e inimigo de Ulisses, é mais velho do que Zeus, o deus celeste universal e distante, e é por assim dizer sobre o dorso do sujeito que é decidido o conflito entre a religião popular elementarista e a religião logocêntrica da lei. Mas o Polifemo sem lei não é o simples vilão em que o transformam os tabus da civilização, quando o apresentam no mundo fabuloso da infância esclarecida como o monstro Golias. No domínio restrito, em que sua autoconservação levou-o a adoptar uma certa ordem e costume, não lhe falta um aspecto conciliante. Quando achega os filhotes ao ubre de suas ovelhas e cabras, esse acto prático implica o desvelo pela própria criatura. E o famoso discurso que o gigante faz, depois de ficar cego, ao carneiro-mestre (que chama de seu amigo e de quem indaga por que agora abandona por último a caverna e se por acaso lhe faz pena o infortúnio de seu senhor) atinge uma intensidade de emoção que só é atingida de novo na passagem que representa o ponto culminante da Odisseia, quando Ulisses, retornando a casa, é reconhecido pelo velho cão Argos, em que pese a abominável crueza com que termina o discurso. O comportamento do gigante ainda não se objectivou na forma do carácter. Ele responde às súplicas de Ulisses não simplesmente com a expressão do ódio selvagem, mas apenas com a recusa da lei que ainda não o alcançou realmente: ele não quer poupar Ulisses e os seus companheiros: “se meu coração não mandar”, (35) e não é certo se ele realmente, como afirma Ulisses em sua narrativa, fala com malícia. De maneira jactanciosa e arrebatada, o embriagado promete presentes de hospitalidade (36) a Ulisses e só a ideia de Ulisses como Ninguém leva-o ao pérfido pensamento de cobrar o presente de hospitalidade devorando por último o chefe – talvez porque esse se denominou Ninguém e por isso não conta como existente para a fraca inteligência do ciclope. (37) A brutalidade física desse ente monstruosamente forte é a sua confiança inconstante. Por isso o cumprimento do estatuto mítico, que é sempre injustiça para o condenado, torna-se injustiça também para o poder natural que estabelece o direito. Polifemo e os outros monstros ludibriados por Ulisses já são os modelos para os diabos estúpidos da era cristã até Shylock e Mefistófeles. A estupidez do gigante, substância de sua bárbara brutalidade enquanto tudo corre bem para ele, passa a representar algo de melhor tão logo é esmagada por quem deveria saber melhor. Ulisses insinua-se na confiança de Polifemo e assim ao direito de presa à carne humana que ele representa, segundo o esquema da astúcia que destrói o estatuto cumprindo-o: “Toma, ciclope, e bebe; o vinho vai bem com a carne humana; vê que delícia é a bebida guardada, no navio que nos trouxe”, (38) recomenda o representante da cultura.
A assimilação da ratio ao seu contrário, um estado de consciência a partir do qual ainda não se cristalizou uma identidade estável e representado pelo gigante trapalhão, completa-se, porém, na astúcia do nome. Ela pertence a um folclore muito difundido. Em grego trata-se de um jogo de palavras; na única palavra que se conserva separam-se o nome – Odysseus (Ulisses) – e a intenção – Ninguém. Para ouvidos modernos, Odysseus e Oudeis ainda têm um som semelhante, e é fácil imaginar que, em um dos dialectos em que se transmitiu a história do retorno a Ítaca, o nome do rei desta ilha era de facto um homófono do nome de Ninguém. O cálculo que Ulisses faz de que Polifemo, indagado por sua tribo quanto ao nome do culpado, responderia dizendo: “Ninguém” e assim ajudaria a ocultar o acontecido e a subtrair o culpado à perseguição, dá a impressão de ser uma transparente racionalização. Na verdade, o sujeito Ulisses renega a própria identidade que o transforma em sujeito e preserva a vida por uma imitação mim ética do amorfo. Ele se denomina Ninguém porque Polifemo não é um eu e a confusão do nome e da coisa impede ao bárbaro logrado escapar à armadilha: seu grito, na medida em que é um grito por vingança, permanece magicamente ligado ao nome daquele de quem se quer vingar, e esse nome condena o grito à impotência. Pois ao introduzir no nome a intenção, Ulisses o subtraiu ao domínio da magia. Mas sua auto-afirmação é, como na epopeia inteira, como em toda civilização, uma autodenegação. Desse modo o eu cai precisamente no círculo compulsivo da necessidade natural ao qual tentava escapar pela assimilação. Quem, para se salvar, se denomina Ninguém e manipula os processos de assimilação ao estado natural como um meio de dominar a natureza sucumbe à hybris. O astucioso Ulisses não pode agir de outro modo: ao fugir, ainda ao alcance das pedras arremessadas pelo gigante, não se contenta em zombar dele, mas revela seu verdadeiro nome e sua origem, como se o mundo primitivo, ao qual sempre acaba por escapar, ainda tivesse sobre ele um tal poder que, por ter se chamado de Ninguém, devesse temer voltar a ser Ninguém, se não restaurasse sua própria identidade graças à palavra mágica, que a identidade racional acabara de substituir. Os amigos tentam em vão preservá-lo da tolice de proclamar sua sagacidade, e é por um fio que escapa às rochas arremessadas por Polifemo. Ao mesmo tempo, foi a designação de seu nome que provavelmente atraiu para ele o ódio de Posseidon – que não se pode dizer que tenha sido apresentado como omnisciente. A astúcia, que para o inteligente consiste em assumir a aparência da estupidez, converte-se em estupidez tão pronto ele renuncie a essa aparência. Eis aí a dialéctica da eloquência. Da antiguidade ao fascismo, tem-se censurado a Homero o palavrório de seus heróis e do próprio narrador. Mas o Jónio revelou-se profeticamente superior tanto aos antigos quanto aos jovens espartanos ao mostrar a fatalidade que o discurso do astucioso – o mediador – faz recair sobre ele. O discurso que suplanta a força física é incapaz de se deter. Seu fluxo acompanha como uma paródia a corrente da consciência, o próprio pensamento, cuja autonomia imperturbável assume um aspecto de loucura – o aspecto maníaco – quando entra na realidade pelo discurso, como se o pensamento e a realidade fossem homónimos, ao passo que o pensamento só tem poder sobre a realidade pela distância. Essa distância, porém, é ao mesmo tempo sofrimento. Por isso, o inteligente – contrariamente ao provérbio está sempre tentado a falar demais. Ele está objectivamente condicionado pelo medo de que a frágil vantagem da palavra sobre a força poderá lhe ser de novo tomada pela força se não se agarrar o tempo todo a ela. Pois a palavra sabe-se mais fraca do que a natureza que ela enganou. Quem fala demais deixa transparecer a força e a injustiça como seu próprio princípio e assim excita sempre aquele que deve ser temido a cometer exactamente a acção temida. A mítica compulsão da palavra nos tempos pré-históricos perpetua-se na desgraça que a palavra esclarecida atrai para si própria. Oudeis, que se dá compulsivamente a conhecer como Ulisses, já apresenta os traços característicos do judeu que, mesmo na angústia da morte, se gaba da superioridade que dela resulta; e a vingança contra o mediador não aparece só ao fim da sociedade burguesa, mas já está em seu começo como a utopia negativa à qual toda forma de violência sempre tende.
Diferentemente das lendas que narram a fuga do mito como a fuga da barbárie do canibalismo, a história mágica de Circe remete à fase mágica propriamente dita. A magia desintegra o eu que volta a cair em seu poder e assim se vê rebaixado a uma espécie biológica mais antiga. Mas a força dessa dissolução é, mais uma vez, a do esquecimento. Ela se apodera ao mesmo tempo da ordem fixa do tempo e da vontade fixa do sujeito que se orienta por essa ordem. Circe induz sedutoramente os homens a se abandonarem à pulsão instintiva: a forma animal dos seduzidos foi sempre relacionada com isso e Circe transformou-se no protótipo da hetaira, imagem essa motivada provavelmente pelos versos de Hermes que lhe atribuíam como um facto óbvio a iniciativa erótica: ” Assustada, ela instará contigo a que partilhes de teu leito. Não resistas diante do leito da deusa.” (39) A marca distintiva de Circe é a ambiguidade, ao aparecer na acção, sucessivamente, como corruptora e benfeitora: ela é a filha de Hélio e a neta de Oceano (40). Nela estão inseparavelmente mesclados os elementos do fogo e da água, e é essa indivisibilidade, no sentido de uma oposição ao primado de um aspecto determinado da natureza – seja o matriarcal, seja o patriarcal – , que constitui a essência da promiscuidade, o hetáirico, que ainda brilha no olhar da prostituta, o húmido reflexo do astro. (41) A hetaira distribui a felicidade e destrói a autonomia de quem fez feliz, eis aí sua ambiguidade. Mas o indivíduo, ela não o destrói necessariamente: ela fixa uma forma de vida mais antiga (42). Como os lotófagos, Circe não fere mortalmente seus hóspedes, e até mesmo aqueles que ela transformou em animais selvagens são pacíficos: “Em volta viam-se também lobos monteses e leões de grandes jubas que ela própria enfeitiçara com suas drogas nocivas. Todavia, não investiam contra os homens, mas festejavam-nos, erguendo-se sobre as patas e abanando as caudas. Do mesmo modo que os cães cercam o dono, quando este volta de um banquete, porque sempre lhes traz bons petiscos, assim lobos e leões de fortes garras cercavam os homens abanando as caudas” (43). As pessoas encantadas comportam-se como os animais selvagens que ouvem Orfeu tocar. A mítica injunção a que sucumbem dá rédeas ao mesmo tempo à liberdade neles reprimida. O que é revogado em sua recaída no mito é ele próprio mito. A repressão do instinto, a qual os transformou num eu e os distinguiu do animal, era a introversão da repressão no ciclo desesperadamente fechado da natureza, a que alude, segundo uma concepção mais antiga, o nome Circe. Em compensação, o violento sortilégio que lhes recorda a proto-história idealizada produz não só a animalidade, mas também – como no idílio dos lotófagos – a ilusão da reconciliação. Contudo, como já foram homens, a epopeia civilizatória não sabe apresentar o que lhes ocorreu a não ser como uma queda nefasta, e no relato homérico mal se percebe sequer o vestígio do prazer. Ele é expurgado com ênfase tanto maior quanto mais civilizadas são as vítimas sacrificadas. (44) Os companheiros de Ulisses não se transformam como os hóspedes anteriores nas criaturas sagradas das regiões selvagens, mas em animais domésticos impuros, porcos. Na história de Circe insinua-se talvez a reminiscência do culto ctônico de Deméter, para quem o porco era sagrado. (45) Mas talvez também seja a ideia de uma semelhança entre a anatomia do porco e a do homem e de sua nudez que explique esse motivo: como se entre os jónios houvesse o mesmo tabu que há entre os judeus acerca da mistura com os semelhantes. Finalmente, pode-se pensar na proibição do canibalismo, pois, como em Juvenal, o sabor da carne humana é sempre descrito como semelhante ao da carne de porco. Em todo caso, todas as civilizações posteriores preferiram qualificar de porcos aqueles cujo instinto buscava um prazer diverso daquele que a sociedade sanciona para seus fins. Magia e contramagia estão ligadas, na metamorfose dos companheiros de Ulisses, a ervas e ao vinho; à embriaguez e ao despertar, ao olfacto como o sentido cada vez mais reprimido e recalcado e que mais próximo está tanto do sexo quanto da lembrança dos tempos primitivos (46). Mas, na imagem do porco, o prazer do olfacto já está desfigurado no fungar (47) compulsivo de quem arrasta o nariz pelo chão e renunciou ao andar erecto. É como se a hetaira encantadora repetisse no ritual a que submete os homens o ritual ao qual ela própria é o tempo todo submetida pela sociedade patriarcal. Igual a ela, as mulheres se inclinam, sob a pressão da civilização, a adoptar o juízo civilizatório sobre a mulher e a difamar o sexo. No debate do esclarecimento e do mito, cujos vestígios a epopeia ainda conserva, a poderosa sedutora já se mostra fraca, obsoleta, vulnerável, e precisa dos animais submissos por escolta (48). Como representante da natureza, a mulher tornou-se na sociedade burguesa a imagem enigmática da sedução irresistíve1 (49) e da impotência. Ela espelha assim para a dominação a vã mentira que substitui a reconciliação pela subjugação da natureza.
O casamento é a via média que a sociedade segue para se acomodar a isso: a mulher continua a ser impotente na medida em que o poder só lhe é concedido pela mediação do homem. Isso já está, até certo ponto, delineado na Odisseia com a derrota da deusa hetaira, enquanto o casamento plenamente configurado com Penélope, literariamente mais recente, representa um estágio posterior da objectividade da instituição patriarcal. Com a conduta de Ulisses em Eéia (50), a ambiguidade da relação do homem com a mulher – desejo e comando – já assume a forma de uma troca garantida por contratos. A renúncia é o pressuposto disso. Ulisses resiste à magia de Circe e assim consegue aquilo que a magia só ilusoriamente promete aos que não resistem a ela. Ulisses dorme com ela. Antes porém faz com que profira o grande juramento dos bem-aventurados, o juramento olímpico. O juramento deve proteger o homem da mutilação, da vingança para a proibição da promiscuidade e para a dominação masculina, que, no entanto, enquanto renúncia permanente ao instinto, ainda realizam simbolicamente a automutilação do homem. Aquele que resistiu a ela, o senhor, o eu, e a quem Circe por causa de sua imutabilidade censura por trazer “no peito um coração insensível e obstinado” (51) é aquele a quem Circe se dispõe fazer as vontades: “Pois bem! Guarda a espada e vamos logo para o nosso leito a fim de que, unidos no leito e no amor, aprendamos a confiar um no outro” (52). Para o prazer que concede ela estabelece como preço o desdém do prazer: a última hetaira se afirma como o primeiro carácter feminino. Na transição da lenda para a história, ela faz uma contribuição decisiva para a frieza burguesa. Seu comportamento pratica a proibição do amor, que posteriormente se impôs tanto mais poderosamente quanto mais o amor teve, enquanto ideologia, de se prestar à tarefa de dissimular o ódio dos competidores. No mundo da troca, quem está errado é quem dá mais; o amante, porém, é sempre o que ama mais. Ao mesmo tempo que seu sacrifício é glorificado, zela-se ciumentamente para que o amante não seja poupado do sacrifício. É exactamente no amor que o amante fica sem razão e é punido. A incapacidade de dominar a si mesmo e aos outros, de que dá provas seu amor, é motivo suficiente para lhe recusar satisfação. Com a sociedade, reproduz-se de maneira amplificada a solidão. Esse mecanismo prevalece até mesmo nas mais ternas manifestações do sentimento, a tal ponto que o próprio amor, a fim de abrir um caminho qualquer até ao outro, é forçado a tamanha frieza que se destrói com a própria realização. – A força de Circe, que submete e reduz os homens à servidão, converte-se na servidão do homem que, pela renúncia, recusou a submissão. A influência sobre a natureza, que o poeta atribui à deusa Circe, reduz-se ao vaticínio sacerdotal e à prudente previsão de futuras dificuldades náuticas. Tudo isso sobrevive na caricatura da prudência feminina. As profecias da feiticeira destituída de seus poderes sobre as Sereias, Cila e Caríbdis só aproveitam, afinal, à autoconservação masculina.
Quanto custou o preço pago pela instauração de relações ordenadas para a reprodução sexual é o que deixam apenas entrever os versos obscuros que descrevem o comportamento dos amigos que Circe reconverte em homens por ordem de seu senhor contratual. Dizem primeiro: “Logo se transformaram de novo em homens, mais jovens do que haviam sido e também de aparência muito mais bela e aspecto muito mais nobre.” (53) Mas os homens assim confirmados e fortalecidos em sua masculinidade não são felizes: “Todos estavam tomados de uma melancolia agridoce e o palácio ressoava com suas queixas.” (54) Talvez tenha soado assim o mais antigo hino nupcial, cantado para acompanhar o banquete celebrando o casamento primitivo que dura apenas um ano. O verdadeiro casamento com Penélope tem mais em comum com esse do que se poderia presumir. A prostituta e a esposa são elementos complementares da auto-alienação da mulher no mundo patriarcal: a esposa deixa transparecer prazer com a ordem fixa da vida e da propriedade, enquanto a prostituta toma o que os direitos de posse da esposa deixam livre e, como sua secreta aliada, de novo o submete às relações de posse, vendendo o prazer. Circe como Calipso, as cortesãs, são apresentadas como diligentes teceloas, exactamente como as potências míticas do destino (55) e as donas-de-casa, ao passo que Penélope, desconfiada como uma prostituta, examina o retornado, perguntando-se se não é realmente apenas um mendigo velho ou quem sabe um Deus em busca de aventuras. Todavia, a famosa cena do reconhecimento com Ulisses tem um carácter verdadeiramente patrício: “Por muito tempo ela sentou-se calada, pois o espanto tomava todo o seu coração. Ora achava-o parecido, atentando em seu rosto, ora de novo o desconhecia envolto em vis andrajos.” (56) Nenhuma emoção espontânea vem à tona, pois não quer cometer nenhum erro, que de mais a mais, sob a pressão da ordem que pesa sobre ela, dificilmente se poderia permitir. O jovem Telémaco, que ainda não se adaptou direito à sua futura posição, irrita-se com isso, mas já se sente homem o bastante para repreender a mãe. A censura de teimosia e dureza que dirige a ela é exactamente a mesma que Circe fizera antes a Ulisses. Se a hetaira se apropria da ordem de valores patriarcal, a esposa monogâmica não se contenta ela própria com isso e não descansa enquanto não houver se igualado ao carácter masculino. É assim que se entendem os casados. O teste a que submete o retornado tem por conteúdo a posição irremovível do leito nupcial, que o esposo em sua juventude havia construído em torno de uma oliveira, símbolo da unidade do sexo e da propriedade. Com uma astúcia tocante ela fala como se essa cama pudesse ser tirada do lugar, e “zangado” o esposo responde-lhe com a narrativa circunstanciada da obra de seu duradouro artesanato: como protótipo do burguês vivo e habilidoso que é, ele tem um hobby. O hobby consiste na repetição do trabalho artesanal, do qual – no quadro de relações de propriedade – está necessariamente excluído há muito tempo. Ele se compraz nele porque a liberdade de fazer o que para ele é supérfluo confirma seu poder de dispor sobre aqueles que têm que realizar tais trabalhos para viver. É nisso que o reconhece a engenhosa Penélope, que o lisonjeia com o louvor de sua excepcional inteligência. Mas à lisonja, que já contém uma dose de escárnio, juntam-se – numa súbita cesura que interrompe o discurso – as palavras que buscam a razão de todo o sofrimento dos esposos na inveja dos deuses pela felicidade que só é garantida pelo casamento, os “pensamentos confirmados da permanência” (57) : “Os imortais nos cumularam de desgraças, achando demais que desfrutássemos juntos e em paz de nossa juventude e que suavemente nos aproximássemos da velhice”. (58) O casamento não significa apenas a ordenação da vida segundo relações de reciprocidade, mas também a solidariedade diante da morte. Nele a reconciliação cresce em torno da submissão, assim como, em toda a história até agora, o humano só floresceu sobre a barbárie que a humanidade justamente oculta. Se o contrato entre os esposos não faz senão redimir penosamente uma hostilidade antiquíssima, os que envelhecem pacificamente se esvaem na imagem de Filémon e Baucis, assim como a fumaça do altar sacrificial se transforma na fumaça salutar da lareira. O casamento pertence certamente à rocha primeira do mito na base da civilização. Mas sua mítica dureza e solidez emerge do mito assim como o pequeno reino insular do mar infinito.
A última etapa da viagem de erros propriamente dita não é nenhum refúgio dessa espécie. É o Hades. As figuras que o aventureiro enxerga na primeira nekyia (59) são antes de mais nada as imagens matriarcais (60) banidas pela religião da luz: depois da própria mãe, diante de quem Ulisses se força a assumir a atitude patriarcal de uma conveniente dureza (61), vêm as heroínas antiquíssimas. Contudo, a imagem da mãe é impotente, cega e muda (62), a imagem de uma alucinação como a própria narrativa épica nos momentos em que abandona a linguagem à imagem. É preciso do sangue sacrificado como penhor de uma lembrança viva para dar fala à imagem, para que esta, ainda que em vão e efemeramente, se arranque à mudez mítica. É só quando se torna senhora de si no reconhecimento da inanidade das imagens que a subjectividade chega a participar da esperança que as imagens prometem em vão. A terra prometida de Ulisses não é o reino arcaico das imagens. Todas as imagens, enquanto sombras no mundo dos mortos, acabam por lhe revelar sua verdadeira essência, a aparência. Ele se livra delas depois de tê-las reconhecido como mortas e de tê-las afastado, com o gesto imperioso da autoconservação, do sacrifício que só oferece a quem lhe concede um saber útil para sua vida, na qual o poder do mito só continua a se afirmar como imaginação transposta para o espírito. O reino dos mortos, onde se reúnem os mitos destituídos de seu poder, é o ponto mais distante da terra natal, e é só na mais extrema distância que ele se comunica com ela. Se seguirmos Kirchhoff na hipótese de que a visita de Ulisses ao inferno pertence à camada mais antiga, propriamente lendária da epopeia (63), é aí também que encontramos o traço que – assim como na tradição das descidas de Orfeu e Hércules ao inferno – mais nitidamente se destaca do mito, pois o motivo do arrombamento das portas do inferno, da supressão da morte, constitui o núcleo de todo pensamento antimitológico. Este elemento antimitológico está contido no vaticínio de Tirésias sobre a possível reconciliação de Posseidon. Ulisses há de errar, com um remo sobre o ombro, até alcançar os homens “que não conhecem o mar e jamais provaram comida temperada com sal” (64). Quando encontrar um viandante e este lhe disser que está carregando uma pá sobre os ‘ombros, terá atingido o lugar certo para oferecer a Posseidon o sacrifício reconciliador . O ponto central do vaticínio é o equívoco do remo pela pá, que deve ter parecido enormemente cómico ao Jónio. Mas essa comicidade, de que depende a reconciliação, não pode estar destinada aos homens, mas à ira de Posseidon. (65) O equívoco deve fazer rir o colérico deus elementar, para que em sua gargalhada a raiva se dissipe. Encontramos uma situação análoga em um dos contos dos irmãos Grimm com o conselho que a vizinha dá à mãe sobre como se livrar da figura monstruosa que substituíram a seu filho recém-nascido: “Disse a ela que levasse o monstro para a cozinha, o colocasse sobre o fogão. acendesse o fogo e pusesse água a ferver em duas cascas de ovo: isso faria o monstro rir e, quando risse, ele estaria acabado.” (66) Se o riso é até hoje o sinal da violência, o prorrompimento de uma natureza cega e insensível, ele não deixa de conter o elemento contrário: com o riso. a natureza cega toma consciência de si mesma enquanto tal e se priva assim da violência destruidora. Esse duplo sentido do riso está próximo do duplo sentido do nome, e talvez os nomes nada mais sejam do que risadas petrificadas, assim como ainda hoje os apelidos, os únicos nos quais perdura ainda algo do acto originário da denominação. O riso está ligado à culpa da subjectividade, mas, na suspensão do direito que ele anuncia, também aponta para além da servidão. Ele promete o caminho para a pátria. É a saudade de casa que desfecha as aventuras por meio das quais a subjectividade ( cuja proto-história é narrada pela Odisseia) escapa ao mundo primitivo. O facto de que o conceito de pátria se opõe ao mito (que a mentira fascista quer transformar na pátria) constitui o paradoxo mais profundo da epopeia. É aí que se encontra sedimentada a lembrança da passagem histórica da vida nomádica à vida sedentária, que é o pressuposto da existência de qualquer pátria. Se é na ordem fixa da propriedade dada com a vida sedentária, que se origina a alienação dos homens, de onde nasce a nostalgia e a saudade do estado originário perdido, é também na vida sedentária, em compensação, e na propriedade fixa apenas que se forma o conceito da pátria, objecto de toda nostalgia e saudade. A definição de Novalis segundo a qual toda filosofia é nostalgia só é correcta se a nostalgia não se resolve no fantasma de um antiquíssimo estado perdido, mas representa a pátria, a própria natureza, como algo de extraído ao mito. A pátria é o estado de quem escapou. Por isso a censura feita às lendas homéricas de “se afastarem da terra” é a garantia de sua verdade. “Elas voltam-se para a humanidade.” (67) A transposição dos mitos para o romance, tal como ocorre na narrativa das aventuras, é menos uma falsificação dos mitos do que um meio de arrastar o mito para dentro do tempo, descobrindo o abismo que o separa da pátria e da reconciliação. Terrível é a vingança que a civilização praticou contra o mundo pré-histórico, e nisso ela se assemelha à pré-história, como se pode ver em seu mais atroz documento em Homero: o relato da mutilação do pastor de cabras Melântio. O que a eleva acima do mundo pré-histórico não é o conteúdo dos crimes relatados. É a tomada de consciência que faz com que a violência se interrompa no momento da narrativa. A própria fala, a linguagem em sua oposição ao canto mítico, a possibilidade de fixar na memória a desgraça ocorrida, é a lei da fuga em Homero. Não é à toa que o herói que escapa é sempre reintroduzido como narrador. É a fria distância da narrativa que, ao apresentar as atrocidades como algo destinado ao entretenimento, permite ao mesmo tempo destacar a atrocidade que, na canção, se confunde solenemente como destino. Mas a interrupção da fala é a cesura, a transformação dos factos relatados em acontecimentos de um passado remoto, que faz cintilar a aparência da liberdade que, desde então, a civilização não extinguiu mais por inteiro. No canto XXII da Odisseia, descreve-se a punição infligida pelo filho de Ulisses nas servas infiéis que haviam recaído na condição de hetairas. Com frieza e serenidade, com uma impassibilidade inumana e só igualada pelos grandes narradores do século dezanove, Homero descreve a sorte das enforcadas e compara-a sem comentários à morte dos pássaros no laço, calando-se num silêncio que é o verdadeiro resto de toda fala. A passagem termina com o verso que descreve como as mulheres enforcadas em fileira “debateram-se um pouco com os pés, mas não por muito tempo” (68). A precisão com que o autor descreve o facto e que já tem alguma coisa da frieza da anatomia e da vivissecção (69) faz do relato uma acta romanceada dos espasmos das mulheres submetidas que, sob o signo do direito e da lei, são arrastadas para o reino de onde escapou o juiz Ulisses. Como um cidadão meditando sobre a execução, Homero consola-se a si mesmo e aos ouvintes, que são na verdade leitores, com a constatação tranquilizadora de que não durou muito: um instante e tudo se acabou (70). Mas, após o “não por muito tempo”, o fluxo interno da narrativa estanca. Não por muito tempo? pergunta o gesto do narrador e desmente sua serenidade. Interrompendo o relato, ele nos impede de esquecer as mulheres executadas e revela o inominável e eterno tormento daquele único segundo durante o qual as servas lutam com a morte. O único eco desse “não por muito tempo” que subsiste é aquele “quo usque tandem” (71) que os retores da época posteriores inadvertidamente profanaram ao se atribuírem a si mesmos a paciência. Mas, no relato do crime, resta uma esperança, que se prende ao facto de ter ocorrido há muito tempo. Homero ergue sua voz consoladora sobre essa mistura inextricável da pré-história, da barbárie e da cultura recorrendo ao “era uma vez”. É só como romance que a epopeia se transforma em conto de fadas.
Notas do Excurso I
1. Nietzsche, Nachlass. Werke. Vol. XIV, p. 206.
2. Ibid., vol. XV, p. 235.
3. Nietzsche, op. cit. Vol. IX, p. 289
4. Hölderlin, Patmos (edição completa da Inselverlag, texto estabelecido por Zinkernagel) .Leipzig, s. d., p. 230.
5. Esse processo está directamente documentado no começo do vigésimo canto. Ulisses observa como as servas se esgueiram de noite ao encontro dos pretendentes “e o coração em seu peito ladrava. Assim como a cadela valente anda em redor de seus frágeis cachorrinhos e ladra para o desconhecido, instigando-se para a luta, assim também ladrava o coração em seu peito, enfurecido pela conduta vergonhosa das servas. Batendo no coração, punia-o com as seguintes palavras: ‘Aguenta, coração! Mais duras penas suportaste no dia em que o ciclope monstruoso devorou enfurecido meus bravos amigos. Suportaste sozinho até que, graças a um estratagema, escapaste da caverna onde antevias uma noite horrorosa!” Assim falou. punindo o coração no peito irado. Logo o coração recobrou a calma e quedou inabalável. Ele. porém, continuava a revolver-se para lá e para cá” (XX. 13/24). O sujeito ainda não está configurado em sua identidade interna. Seus ímpetos. seu ânimo e seu coração excitam-se independentemente dele. “No começo de y, ladra a kradia [kardía, coração] ou ainda o étor [coração] (as duas palavras são sinónimas, 17.22) e Ulisses bate no peito. logo contra o coração, e interpela-o. Ele sente o coração palpitar. logo esta parte de seu corpo excita-se contra sua vontade. Assim, sua interpelação não é meramente formal (como em Eurípedes, que interpela a mão e o pé quando estes devem entrar em acção), mas o coração age de maneira autónoma” (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des Odysseus. Berlim, 1927. p. 189). O ímpeto é equiparado ao animal que o homem subjuga: a comparação da cadela pertence ao mesmo nível de experiência a que remete a imagem dos companheiros metamorfoseados em porcos. O sujeito, ainda dividido e forçado a usar de violência contra a natureza tanto dentro dele quanto fora dele, “pune” o coração exortando-o à paciência e negando-lhe com o olhar posto no futuro – o presente imediato. Bater no peito tornou-se depois um gesto de triunfo: com esse gesto, o vencedor exprime o facto de que sua vitória é sempre uma vitória sobre sua própria natureza. Esse feito é levado a cabo pela razão autoconservadora. ” …a princípio, o narrador ainda estava pensando no coração que batia rebelde; superior a este era a métís [inteligência, discernimento] , que é assim claramente apresentada como uma outra força interna: foi ela que salvou Ulisses. Os filósofos posteriores tê-la-iam contraposto enquanto nous [razão, espírito, entendimento] ou logistikon [ (poder) capaz de entender , calcular] à parte da alma desprovida de entendimento” (Wilamowjtz. op. cit., p. 190). Do “eu” – autós – só se fala no verso 24: depois que a razão conseguiu domar o instinto. Se atribuímos à escolha e sequência das palavras um valor demonstrativo, é preciso admitir que Homero só vem a considerar o ego idêntico como o resultado do domínio da natureza intra-humana. Este novo eu estremece dentro de si, uma coisa. o corpo, depois que o coração foi punido nele. De qualquer maneira, a justaposição dos elementos da alma (analisada em detalhe por Wilamowitz) .que frequentemente se dirigem uns aos outros, parece confirmar a frouxa e efémera composição do sujeito, cuja substância consiste unicamente na coordenação desses elementos.
6. Contra a interpretação materialista de Nietzsche, Klages interpretou a conexão entre o sacrifício e a troca num sentido inteiramente mágico: ” A obrigação do sacrifício concerne a cada um. porque a porção que cada um pode arrebatar à vida e ao conjunto de seus bens – o suum cuique originário – só é conseguida num processo contínuo de dar e devolver. Mas não se trata da troca no sentido da troca de bens usual (que. aliás. também recebe sua consagração originária da noção de sacrifício). mas do intercâmbio dos fluidos ou essências pela entrega de sua própria alma à vida de que tudo depende e se alimenta” (Ludwig Klages. Der Geist als Widersacher der Seele. Leipzig, 1932. Vol. Ill. 2.a parte. p. 1409). Contudo. o carácter dual do sacrifício – o mágico autoabandono do indivíduo à colectividade, não importa se para seu bem ou para seu mal, e a autoconservação dessa magia pela técnica – implica uma contradição objectiva que impele justamente ao desenvolvimento do elemento racional no sacrifício. Sob o influxo constante da magia, a racionalidade converte-se enquanto oomportamento do sacrificante em astúcia. O próprio Klages, autor de uma entusiástica apologia do mito e do sacrifício. tropeçou com isso e viu-se forçado a fazer uma distinção, mesmo na imagem ideal da era pelásgica. entre a genuína comunicação com a natureza e a mentira. sem conseguir no entanto derivar do próprio pensamento mítico um princípio oposto à aparência da dominação mágica da natureza, porque essa aparência constitui justamente a essência do mito. “Já não é mais simplesmente a fé pagã, já é também superstição pagã quando, por exemplo. o rei-deus tem que jurar. ao subir ao trono, que fará o sol brilhar e o campo cobrir-se de frutos” (Klages, op. cit., p. 1408).
7. Isso se harmoniza com o facto de que os sacrifícios humanos propriamente ditos não ocorrem em Homero. A tendência civilizatória da epopeia manifesta-se na escolha dos acontecimentos relatados. “With one exception…both Iliad and Odyssey are completely expurgated of the abomination of Human Sacrifict” [“Com uma única exceção. ..tanto a Ilíada quanto a Odisseia estão completamente expurgadas da abominação do Sacrifício Humano”] (Gilbert Murray, The Rise of the Greek Epic. Oxford, 1911. p. 150).
8. Dificilmente na mais antiga. “O costume do sacrifício humano. ..é muito mais difundido entre bárbaros e povos semicivilazados do que entre os verdadeiros selvagens, e é praticamente desconhecido nos estágios inferiores da cultura. Em vários povos observou-se que ele foi se difundindo ao longo do tempo. como, por exemplo, nas Ilhas da Sociedade, na Polinésia. na India. entre os Astecas. “Relativamente aos africanos, diz Winwood Read: ‘Quanto mais poderosa a nação, tanto mais importante o sacrifício’ ” (Eduard Westermarck, Ursprung und Entwicklung der Moralbegriffe. Leipzig, 1913, vol. I, p. 363).
9. Entre os povos antropófagos, como os da África Ocidental, não podiam “provar dessa iguaria nem as mulheres nem os adolescentes” (E. Westermarck, op. cit. Leipzig, 1909. Vol II, p. 459).
10. Wilamowitz coloca o nous em “nítida oposição” ao logos (Glaube der Hellenen, Berlim, 1931. Vol. I, pp. 41 sg). O mito é para ele uma “história como a gente se conta a si mesma”, fábula infantil, inverdade, ou ainda, ao mesmo tempo, a verdade suprema que não é passível de prova, como em Platão. Enquanto Wilamowitz está consciente do carácter ilusório dos mitos, ele equipara-os à poesia. Ou por outra: ele procura-os em primeiro lugar na linguagem significativa que já está em contradição objectiva com sua intenção, contradição essa que ela, enquanto poesia. tenta racionalizar: “O mito é, antes de mais nada, o discurso falado; a palavra não concerne jamais a seu conteúdo” (loc. cit.). Ao hipostasiar esse conceito tardio do mito. que já pressupõe a razão como sua contrapartida explícita, e polemizando implicitamente com Bachofen – que é para ele um modismo de que zomba sem, no entanto, pronunciar seu nome – , ele chega a uma nítida separação da mitologia e da religião (op. cit., p. 5) , na qual o mito aparece, não como a fase mais antiga, mas justamente como a mais recente: “Estou tentando seguir o vir-a-ser, as transformações e a passagem da fé ao mito” (op. cit, p. 1). A obstinada arrogância departamental do helenista impede-lhe o discernimento da dialéctica do mito, da religião e do esclarecimento. “Não compreendo as línguas às quais se tomaram as palavras tabu e totem;, mana e orenda, mas considero um caminho viável ater-me aos gregos e pensar grego sobre coisas gregas” (op. cit., p. 10). Como compatibilizar isso, a saber, a opinião expressa sem maiores justificativas e segundo a qual “o germe da divindade platónica já se encontrava no mais antigo helenismo”, com a concepção histórica defendida por Kirchhoff e adoptada por Wilamowitz, que vê nos encontros míticos do nostos [retorno, volta à casa, viagem] o núcleo mais antigo do livro da Odisseia? Isso não é esclarecido e o próprio conceito do mito, que é um conceito central, não encontra em Wilamowitz uma articulação filosófica suficiente. Entretanto, sua resistência ao irracionalismo que enaltece o mito e sua insistência na inverdade dos mitos contém um profundo discernimento, que não devemos ignorar. A aversão ao pensamento primitivo e à pré-história destaca com clareza tanto maior a tensão que já havia sempre entre a palavra enganosa e a verdade. 0 que Wilamowitz censura aos mitos posteriores, o arbítrio da invenção. já devia estar presente nos mais antigos em virtude do pseudos [mentira, inverdade, engano] dos sacrifícios. Esse pseudos tem justamente um parentesco com a divindade platónica que Wilamowitz faz remontar à fase arcaica do espírito helénico.
11. Essa concepção do cristianismo como religião sacrificial pagã é essencialmente a base do livro de Werner Hegemann: Geretteter Christus. Potsdam, 1928.
12. Assim, por exemplo, quando renuncia a matar imediatamente Polifemo (IX, 302) ; quando suporta os maltratos de Antinoo para não se trair (XVII, 460 sgg.). Cf. além disso o episódio com os ventos (X, 50 sgg.) e a profecia de Tirésias na primeira nekyia [sacrifício aos mortos] (XI, 105 sgg.), que põe a volta à casa na dependência de sua capacidade de domar o coração. Todavia, a renúncia de Ulisses ainda não tem um carácter definitivo, mas apenas de adiamento: as vinganças que ele se proíbe, no mais das vezes ele as perpetra depois de uma maneira ainda mais perfeita: O sofredor é o paciente. Até certo ponto, seu comportamento manifesta abertamente, como uma finalidade espontânea, o que depois se esconde na renúncia total e imperativa, para só então tomar uma força irresistível, a força da subjugação universal da natureza. Transposta para o sujeito, emancipada do conteúdo mítico dado, essa subjugação torna-se “objectiva”, dotada da autonomia de uma coisa em face de toda finalidade particular do homem; ele se torna uma lei racional universal. Já na paciência de Ulisses, e de maneira muito nítida após a matança dos pretendentes, a vingança se transforma num procedimento jurídico: é justamente a satisfação finita da ânsia mítica que se torna o instrumento objectivo da dominação. O direito é a vingança abdicante. Mas, ao se formar com base em algo que está fora dela: a nostalgia da pátria, essa paciência judicial adquire traços humanos e até mesmo, quase, os da confiança, que transcendem a vingança diferida. Depois, na sociedade burguesa plenamente desenvolvida, as duas coisas são cobradas: com a ideia da vingança, a nostalgia também sucumbe ao tabu, o que significa justamente a entronização da vingança, mediada como vingança do eu contra si mesmo.
13. Os autores jogam com o duplo sentido da palavra alemã verschlagen. que significa: 1) astuto. ardiloso, manhoso; 2) arremessado, arrojado (à praia, à costa) pelo mar ou pelo acaso, bem como com seu parentesco com Schlag [golpe] e schlagen [bater, golpear] .(N. do T.)
14. Palavra grega que significa “luta”. (N. do T.)
15. Os autores jogam com a origem comum das palavras Hörender [ouvinte, o que escuta] e Hörigkeit [servidão] .(N. do T.)
16. Oudeis, palavra grega que significa “ninguém” e que é o nome que Ulisses se dá ao falar com ciclope Polifemo. (N. do T.)
17. Max Weber. Wirtschaftsgeschichte. Munique e Leipzig, 1924, p. 3.
18. Victor Bérard ressaltou com particular ênfase (mas não, é verdade, sem alguma construção apócrifa) o elemento semítico da Odisseia. Cf. o capítulo: “Les Phéniciens et l’Odyssée” em sua Résurrection d’Homer. Paris, 1930, pp. 111 sgg.
19. Nostos, palavra grega que significa retorno, volta à casa, viagem (cf. “nostalgia”). (N. do T.)
20. Odisseia IX, 92 sg.
21. Ibid. XXIII, 311.
22. Ibid. IX, 94 sgg.
23. Jacob Burckhahrdt. Griechische Kulturgeschichte, Stuttgart. s. d. Vol. III. p.95.
24. Odisseia IX, 98 sg.
25. Na mitologia indiana, Lótus é a deusa da terra (cf. Heinrich Zimmer. Maja. Stuttgart e Berlim, 1936, pp. 105 sgg.). Se há uma conexão com a tradição mítica em que se baseia o velho nostos homérico, convém caracterizar também o encontro com os 1otófagos como uma etapa no confronto com as potências ctónicas.
26. Odisseia, IX. 105.
27. V. n. 12. (N. do T.)
28. Segundo Wilamowitz, os ciclopes são “na verdade animais” (Glaube der Hellenen. Vol. I, p. 14).
29. Odisseia. IX, 106.
30. Ibid.. 107 sgg.
31. Ibid.. 112 sgg.
32. Cf. ibid.. 403 sgg.
33. Ibid., 428.
34. Ibid., 273 sgg.
35. Ibid., 278.
36. Cf. ibid., 355 sgg.
37. “Finalmente a habitual puerilidade do demente poderia ser considerada à luz de um humor natimorto” (Klages, ap. cit., 1469).
38. Odisseia, loc. cit., 347 sg.
39. Ibid., X, 296/7.
40. Cf. ibid., 138 sg. Cf. também F. C. Bauer, Symbolik und Mythologie Stuttgart. 1824. Vol. I, p. 47.
41. Cf. Baudelaire, Le vin du solitaire, Les fleurs du mal.
42. Cf. J. A. K. Thompson, Studies in the Odyssey. Oxford, 1914, p. 153.
43. Odisseia, loc. cit., 212 sgg.
44. Murray trata das “sexual expurgations” a que foram submetidos os poemas homéricos no curso da redação (cf. op. cit., pp. 141 sgg.).
45. “Os porcos são os animais sacrificiais de Deméter em geral”. (Wilamowitz-Moellendorff. Der Glaube der Hellenen. Vol. II, p. 53).
46. Cf. Freud, Das Unbehagen in der Kultur, em: Gesammelte Werke, vol. XIV. Frankfurt am Main. 1968, p. 459, nota.
47. Uma das notas de Wilamowitz remete surpreendentemente à conexão entre o conceito de “fungar” e o conceito do noos [nous. cf. n. 5] , isto é, da razão autónoma: “Schwyzer ligou de maneira muito convincente noos com bufar e fungar” (Wilamowitz-Moellendorff, Die Heimkehr des Odysseus, p. 191). Wilamowitz contesta, é verdade, que o parentesco etimológico dê alguma contribuição para o significado.
48. Odisseia, X. 434.
49. A consciência da irresistibilidade exprimiu-se mais tarde no culto de Afrodite Peithon [a persuasiva] “cuja magia não tolera nenhuma recusa” (Wilamowitz-Moe11endorff. Der Glaube der Hellenen. Vol. II, p. 152) .
50. Eéia: a ilha de Circe. (N. do T.)
51. Odisseia, X, 329.
52. Ibid., 333 sgg.
53. Ibid., 395 sg.
54. Ibid., 398 sg.
55. Cf. Bauer, op. cit., p. 49.
56. Odisseia, XXIII, 93 sgg.
57. Goethe, Wilhelm Meisters Lehrjahre. Jubiläumsausgabe. Stuttgart e Berlim. Vol. I, cap. 16, p. 70.
58. Odisseia, XXIII, 210 sgg.
59. Sacrifício aos mortos. (N. do T.)
60. Cf. Thomson. op. cit., p. 28.
61. “Ao vê-la, meus olhos marejaram e lamentei de todo coração. Contudo. proibi a ela também, embora cheio de íntima melancolia, que se aproximasse do sangue antes que eu interrogasse Tirésias” (Odisseia, XI, 87 sgg.) .
62. “Vejo aí a alma de minha defunta mãe, mas ela se mantém muda junto à poça de sangue e não se atreve a olhar para o próprio filho nem a proferir qualquer palavra. Diz, senhor, o que fazer, para que ela me reconheça como filho” (ibid., 141 sgg.).
63. “Não posso deixar de considerar todo o livro 11, com excepção de algumas passagens… como um fragmento do velho nostos, que foi apenas deslocado; seria assim a parte mais antiga do poema” (Kirchhoff, Die homerische Odyssee. Berlim, 1879, p. 226). – “Whatever else is original in the myth of Odysseus, the Visit to Death is” [“se alguma coisa é original no mito de Ulisses, a Visita à Morte é uma delas”] (Thomson, op. cit., p. 95).
64. Odisseia, XI, 122 sg.
65. Ele era originariamente o “esposo da Terra” (cf. Wilamowitz, Glaube der Hellenen, vol. I, pp. 112 sgg.) e só mais tarde tomou-se o deus do mar. A profecia de Tirésias pode aludir à sua essência dual. É concebível que sua reconciliação por meio de um sacrifício terreno, longe do mar , se baseie na restauração simbólica de sua potência ctónica. Essa restauração exprime possivelmente a substituição da pirataria pela agricultura; os cultos de Posseidon e Deméter se confundiram (cf. Thomson, op. cit, p. 96 n.).
66. Irmãos Grimm, Kinder und Hausmärchen, Leipzig, s.d., p. 208. Há temas intimamente aparentados a esse que remontam à antiguidade, ligados aliás a Deméter. Quando esta chegou a Elêusis, “em busca de sua filha raptada”, encontrou “acolhida junto de Dysaules e sua mulher Baubo, mas recusou-se em sua profunda tristeza a tocar em comida ou bebida. Então sua hospedeira Baubo fez com que ela risse, levantando de repente a roupa e descobrindo o corpo” (Freud, Gesammelte Werke, vol. X. p. 399. Cf. Salomon Reinach, Cultes, Mythes et Religions. Paris, 1911 , vol. IV, pp. 115 sgg.).
67. Hölderlin, Der Herbst. op. cit., p. 1066.
68 .Odisseia, XXII, 473.
69. Wilamowitz é de opinião que a punição “foi narrada prazerosamente pelo poeta” (Die Heimkehr des Odysseus, p. 67) .Mas, como o autoritário filólogo se entusiasma com a metáfora da armadilha de pássaros porque “descreve de maneira precisa e… muito moderna como ficam a balouçar os cadáveres das escravas enforcadas” (loc. cit., cf. também p. 76) , o prazer em grande parte parece ser dele próprio. Os escritos de Wilamowitz se incluem entre os documentos mais enfáticos da mescla bem alemã de barbárie e cultura, que está na base do moderno filo-helenismo.
70. Gilbert Murray chama a atenção para a intenção consoladora do verso. Segundo sua teoria, a censura civilizatória expurgou de Homero as cenas de tortura. Restaram a morte de Melântio e das escravas (op. cit., p. 146).
71. “Até quando enfim” (N. do T.).
O Conceito de Esclarecimento – (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer 1944)
EXCURSO 2 Juliette ou Esclarecimeto e Moral – (Theodor W. Adorno e Max Horkheimer 1944)
http://planeta.clix.pt/adorno/
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Cinquentenário sem festa*
Publicado em 5/12/2011
Por Laurindo Lalo Leal Filho,
originalmente publicado no portal Carta Maior e reproduzido pelo site Eptic España
Em 1962, a “era do rádio” havia chegado ao fim e a televisão dava os primeiros passos para se tornar o meio de comunicação hegemônico no mundo.
Naquele momento, no entanto, ainda era frágil no Brasil, com imagens em preto e branco, transmissões atingindo distâncias limitadas e um uso ainda incipiente do vídeo-tape, recém chegado ao país.
Mas as perspectivas comerciais e políticas do novo veículo eram percebidas com clareza por empresários e políticos, geralmente as duas coisas ao mesmo tempo. Tanto é que não perderam tempo.
Os que possuíam concessões de rádio obtiveram as de TV sem concorrência, alegando tratar-se apenas de uma extensão tecnológica e não de um novo meio de comunicação. Semelhante ao que ocorreu agora com a distribuição de freqüências digitais para os grupos que já detinham as analógicas.
Na época, como hoje, tudo isso ocorria sob uma fragilidade legal, conveniente para os empresários da comunicação. Sentiam-se poderosos, mantinham governos – o segundo de Vargas e o de Juscelino – sob constante pressão. Não havia motivo para cogitarem de leis reguladoras de suas atividades.
O alerta soou mais forte diante da instabilidade dos sete meses de poder janista e, principalmente, das propostas reformistas de Jango. Os empresários sentiram que as pressões populares poderiam chegar à comunicação e trataram de se antecipar.
Elaboraram um Código de acordo com seus interesses e detendo forte poder no Congresso, como agora, conseguiram aprová-lo. Fizeram uma lei destinada a privatizar o espaço público, perpetuando privilégios e tirando do Estado sua função reguladora.
O presidente João Goulart sentiu o golpe e vetou 52 artigos da lei aprovada pelo Legislativo. A resposta do Congresso foi fulminante: derrubou todos os vetos presidenciais, revelando a força política do empresariado e a falta de sustentação parlamentar do governo.
Em meio às discussões em torno da derrubada dos vetos presidenciais, os radiodifusores reunidos em Brasília fundaram a Abert, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, até hoje zelosa defensora de seus interesses.
“A criação da Abert refletia a mobilização dos empresários do setor, que haviam se organizado em função dos debates acerca do Código Brasileiro de Telecomunicações e, posteriormente, em oposição aos vetos de João Goulart. Posicionavam-se, assim, contrariamente ao fortalecimento da presença do Estado na radiodifusão brasileira” (1), ressaltam Pieranti e Martins em artigo acadêmico sobre o tema.
Cinqüenta anos depois a força da Abert cresceu e o Código, apesar de mutilado, segue em vigor. O principal corte foi realizado durante o governo Fernando Henrique, em 1995, com a retirada da telefonia da lei, separando-a da radiodifusão, ato contrário à tendência global de juntá-las para dar conta do atual processo de convergência dos meios.
A razão desse anacronismo brasileiro estava na urgência de um marco legal para permitir a privatização das telecomunicações sem mexer no vespeiro político-econômico da radiodifusão. Restou-nos uma lei quase caduca para o rádio e a TV, indevidamente chamada de Código Brasileiro de Telecomunicações.
Mas se o problema fosse só titulo, não seria grave. A questão é que trata-se de uma lei formulada segundo interesses privados, elaborada em condições culturais e tecnológicas radicalmente diferentes das hoje existentes.
Em 1962, cerca de 70% dos brasileiros viviam no campo. Hoje, segundo o Censo do IBGE de 2010, apenas 18% seguem na zona rural. A pílula anticoncepcional e a mini-saia ainda estavam por vir e a tecnologia digital disseminada, um sonho. Mas a lei é a mesma.
O pouco dela aproveitável não se cumpre. Como o disposto no Artigo 124 que limita em 25% da programação o tempo destinado à publicidade. Desafiando à lei, emissoras vendem jóias, tapetes e outras mercadorias usando 100% dos seus horários de programação.
Outras fazem o mesmo de forma não tão escancarada. Mas se somarmos o tempo dos anúncios veiculados nos intervalos, com os dos “merchandisings”, poucas ficariam dentro dos limites legais.
Em meio século o setor concentrou-se de maneira brutal exigindo normas modernas para romper com a propriedade cruzada dos meios, talvez o maior obstáculo ao aprofundamento da democracia brasileira.
Confortáveis com a fragilidade legal existente hoje, os radiodifusores até há pouco tempo nem queriam pensar num novo marco regulatório para o setor. Com as teles começando a produzir conteúdos audiovisuais mudaram de opinião e até apóiam uma nova regulação. Mas bem limitada.
Se em 1962 queriam a lei por temer reformas impulsionadas por um governo popular, hoje voltam a apoiá-la acuados pelo poder de fogo das empresas de telefonia. E nada mais.
São insensíveis ao problema da propriedade cruzada dos meios, chegando a dizer em documento recente publicado pela Abert que discutir esse tema “significaria um retrocesso” (2) sem explicar bem porque.
Não querem nem ouvir falar da existência de órgãos reguladores, imprescindíveis para dar cumprimento às leis e estabelecer a ponte necessária entre as emissoras e o público, comuns em vários países.
A existência de uma lei moderna, com a atuação eficaz de um órgão regulador permitiria, por exemplo, a aplicação de sanções em casos de má utilização do serviço público de rádio e TV.
Como ocorreu recentemente, na madrugada de uma segunda-feira, quando a Bandeirantes exibia um clássico de Fellini: “Satyricon”. Sem avisar, cortou a última parte do filme, substituindo-a por um programa de televendas e por um religioso.
Em casa, o telespectador não tem a quem reclamar. E a emissora, certa da impunidade, seguirá com a mesma prática exaltando a terra sem lei em que vivemos. Há quase 50 anos.
NOTAS
(1) Pieranti, O. P. e Martins, P.E.M. – “A radiodifusão como um negócio: um olhar sobre a gestação do Código Brasileiro de Telecomunicações” in Revista de Economia Política de las Tecnologias de La Información y Comunicación, São Cristovão, vol.IX, nº 1, jan-abr/2007.
(2) Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão) – Contribuições para o Seminário de Comunicação do PT in Seminário por um novo marco regulatório para as comunicações: o PT convida ao debate – Partido dos Trabalhadores – São Paulo, 25/11/2011.
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* Fonte: Carta Maior
**Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.
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1º/2/2012
Jornalistas e redes sociais na europa
Um recente e extenso estudo realizado pela TNS Qual+ descreve a relação de jornalistas e redes sociais na Europa. Se você se interessa pelo fenômeno das redes ou por jornalistas, vale dar uma olhada. Tem 111 páginas, em formato PDF, em inglês e com arquivo de 1,1 Mega… (baixe aqui)
Fonte: Memorando
21/10/2011
Internet Censorship Growth Hampers News, Study Says
By JOHN MARKOFF
Published: October 11, 2011
A detailed study of Internet censorship in China and Iran shows that blocking techniques are changing rapidly and are becoming significant new obstacles for news organizations, governments and businesses.
The study, being published on Tuesday, focuses on Internet blocking faced by Iranian and Chinese visitors to BBC Web sites during periods of political unrest in the two countries over the last two years.
“This problem of Internet control is becoming an issue for more than human rights concerns,” said an author of the report, Ronald Deibert, the director of the Canada Center for Global Security Studies and the Citizen Lab, a University of Toronto organization that focuses on Internet security. “The fact is that you have dozens of countries not just filtering for porn, but political filtering and key events as well.”
The study, by the BBC and Dr. Deibert’s center, acknowledges that the Internet accounts for only about 13 percent of the broadcaster’s global audience, which totaled 225 million people in 2010-11. But it is increasingly important in authoritarian countries; for example, there are now 500 million Chinese Internet users, many times the number that listen to shortwave broadcasts.
The study documents the activities of firewall censorship during a variety of political events, including anniversaries of events like the Tiananmen Square protests.
The activities of censoring authorities are not easily predictable and can change rapidly, the authors say, adding that broadcasters must be ready to engage in a “cat and mouse” game with censors by constantly monitoring government firewall systems and by clever use of alternatives like Twitter and other social media.
Government censorship of broadcasters goes back at least to World War II, the report says. The Nazis enacted strict laws to prevent Germans from listening to foreign broadcasts, and radios were designed so they could not receive the broadcasts. During the cold war, the Soviets began an intensive radio-jamming campaign, and the United States responded with a “ring plan” — vast deployments of strategically placed shortwave transmitters meant to overwhelm the jammers.
The report, “Casting a Wider Net: Lessons Learned in Delivering BBC Content on the Censored Internet,” says the news media will need to form alliances to combat censorship efforts.
“Vietnam has been learning its blocking technology from China,” said the lead author, Karl Kathuria, the BBC’s senior operations manager. “One of our recommendations is that broadcasters get together as well.”
To help make its service available through firewalls, BBC has collaborated with Psiphon, a software firm that is a spinoff of the University of Toronto computer security researchers. The firm supplies circumvention software to BBC and the Voice of America as well as other organizations.
There are several ways to avoid firewall blocking systems. One of them, known as a Web proxy, routes requests for Web pages through an intermediate Internet address.
A version of this article appeared in print on October 11, 2011, on page B5 of the New York edition with the headline: Internet Censorship Growth Hampers News, Study Says.
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Crise demográfica
O mundo está em meio à maior reviravolta demográfica na história da humanidade. A raça humana levou, talvez, 1 milhão de anos para chegar a 1 bilhão de pessoas (perto do ano 1800). A partir de 1960, porém, passamos a adicionar outros bilhões a cada 10 ou 20 anos. A população mundial agora é de 7 bilhões de pessoas e a projeção para 2050 é de 9,3 bilhões.
Em outras palavras, entre hoje e 2050, o mundo deverá adicionar um número de pessoas igual à população total que havia no mundo em 1950. Ou pensando de outra forma, é o equivalente a agregar outra China e outra Índia. Alimentar, vestir, dar moradia e abastecer essa adição líquida maciça à população mundial é um dos principais desafios que a humanidade terá de enfrentar.
Leia mais: crise_demográfica-set_2011_BloomDavidBilhões_desafiadores
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Eye-tracking: as interações inconscientes do usuário
(Publicado em 2/1/2009)
Por: Philip Rhodes
Para melhores resultados, é importante entender que o olhar é atraído ou não em certas partes da página. Acompanhar o movimento dos olhos ajuda a analisar o comportamento do usuário.
Há muitos anos pesquisadores vêm tentando entender como os usuários interagem com websites, produtos e sistemas. Na verdade, o conceito de ?usabilidade? foi criado na tentativa de medir a qualidade da experiência do usuário quando este interage com um produto ou um sistema, e, geralmente, se refere a como os usuários podem aprender a utilizar um produto para atingir seus objetivos e o quanto satisfeitos eles estão com este processo.
Um website pode ser considerado “usável” quando o usuário pode de maneira fácil utilizá-lo e acessá-lo para completar suas tarefas ou atividades, atingindo assim seus objetivos. Usabilidade, conseqüentemente, é a combinação de diferentes fatores, incluindo:
- Facilidade de aprendizado ? intuitividade
- Eficiência de uso
- Facilidade de memorização ? o usuário pode facilmente reconhecer como utilizar a interface
- Prover apoio aos usuários no caso de erro, e, permitir que os usuários se recuperem dos mesmos (durante o processo de utilização)
- Satisfação do usuário (claro que esta é uma métrica subjetiva, o que pode satisfazer um usuário poderá deixar o outro louco de raiva)
A usabilidade tem auxiliado pesquisadores e designers a entender melhor como interfaces podem ser desenvolvidas de forma a serem mais intuitivas; entretanto, a usabilidade tradicional tem sempre se focado no uso consciente da interface pelo usuário.
Mas, são todas as interações entre interface e usuário conscientes ou é possível a algumas interfaces manipular o inconsciente dos usuários? E no caso desta hipótese ser possível, é viável considerá-la para medir os padrões do comportamento do usuário nesta interface?
Este artigo provê uma introdução ao campo do eye tracking, e como este pode ser utilizado em contexto comercial.
Uma breve perspectiva histórica
Em 1879 em Paris, Louis Émile Javal observou que o ato da leitura não envolvia uma varredura leve dos olhos sobre o texto, como previamente assumido, mas uma série de pequenas paradas (chamadas fixações) seguidas de movimentos rápidos.
Uma fixação pode ser definida pelo ato da pausa do olhar fixado em uma certa posição, seguida de um movimento rápido, quando o o olho se muda para uma nova posição com um novo objetivo. Esta observação gerou questionamentos importantes sobre o ato da leitura, que foram investigadas no século passado: Em quais palavras os olhos param? Por quanto tempo os olhos descansam? Quando os olhos voltam a identificar palavras posteriormente?
Em 1980, Just and Carpenter formularam a teoria ?Strong eye-mind Hypothesis?, e concluíram que ?não existe defasagem entre o que é fixado e que é processado?. Esta hipótese afirmava que existe uma correlação direta e instantânea entre o que um indivíduo olha (palavra ou objetivo), e, como o indivíduo prontamente pensa (processo cognitivo) sobre esta palavra ou objeto.
Apesar desta hipótese ser sempre tomada como certa, muitos pesquisadores, incluindo Hoffman (2000) têm questionado a hipótese acima, uma vez que esta não considera a atenção dada pelo indivíduo a coisas que ele não esteja olhando diretamente, ou seja, a ?covert attention?.
De maneira similar, não é possível pressupor processos cognitivos específicos diretamente de uma fixação particular em um objeto de uma paisagem. Por exemplo, a fixação em uma face dentro de uma imagem pode indicar reconhecimento, empatia, aversão, perplexidade, etc. Por esta razão, eye tracking é sempre combinado com outras metodologias, como por exemplo, protocolos verbais.
Investigações com eye tracking afiguram-se a dar suporte à idéia de ?covert attention?, uma vez que tem como resultado o escaneamento dos padrões de fixação e caminhos demonstrados, não apenas nos pontos de atenção, mas por onde os olhos passaram.
Conseqüentemente, eye tracking não indica o processo cognitivo.
O que é eye tracking?
O movimento ocular é tipicamente dividido entre fixações e movimentações. A série resultante das fixações e movimentações é chamada “caminho do escaneamento”.
A maior parte das informações do olhar são obtidas durante as fixações, e não durante as movimentações. Os locais de fixação em um “caminho de escaneamento” demonstram quais informações foram processadas durante uma sessão de eye tracking.
Em média, as fixações levam por volta de 200 milisegundos durante a leitura de um texto, e 350 milisegundos durante a visualização de uma imagem.
A movimentação e fixação em um novo objetivo toma por volta de 200 milisegundos. A análise de um “caminho de escaneamento” tem se mostrado útil para se realizar análises de intenção cognitivas, de interesse e de realce. Estas diferentes “intenções” resultam em tempos levemente diferentes de fixação.
Como um exemplo de uso do eye tracking, a ilustração abaixo demonstra como usuários “visualizam” a homepage do website do Banco Real durante os primeiros 20 segundos.
As manchas vermelhas/amarelas/verdes demonstram onde os usuários focaram sua atenção visual durante os momentos iniciais de visualização da página.
Heatmap (mapa de calor) incluindo os primeiros 20 segundos de olhar de oito participantes
.
Os usuários, neste caso, foram solicitados a localizar informações para obter um Cartão de Crédito do Banco Real. Os participantes, no total de oito, fizeram parte de um pequeno projeto de pesquisa conduzido pela Fhios: brasil, para investigar como os usuários estão interagindo com o Real Internet Banking, como estão navegando no site atual, o que este gostam no site, e o que necessita ser mudado para melhorá-lo.
A ilustração indica que todos os usuários visualizaram a página de uma forma muito similar; a sua atenção esteve focada na coluna da esquerda, primariamente no menu da esquerda e no menu em drop – down “Real Internet Banking”.
De maneira interessante, alguns usuários focaram atenção no centro da página e, no menu de navegação primária abaixo do centro da página. Surpreendentemente, nenhum dos usuários focou atenção na coluna da direita da página, apesar de lá existir um anúncio de venda de cartões de crédito.
Gaze plot incluindo os 20 primeiro segundos de olhar de oito participantes
.
Estes tipos de ilustrações possibilitam um insight sobre o que atrai a atenção na interface (o que funciona e o que não funciona), e também levantam algumas hipóteses novas sobre como usuários navegam na web inconscientemente. Estas imagens são capturadas através do uso de um equipamento específico de eye tracking.
Finalidades do eye-tracking
Existem dois componentes primários para a maioria dos estudos de eye tracking: análise estatística (esta quantifica onde os usuários olham, às vezes diretamente, e às vezes baseando-se em modelos de engajamento cognitivo) e renderização gráfica.
Nos últimos anos, o aumento da sofisticação e acessibilidade às tecnologias de eye tracking criaram uma grande demanda de interesse nos setores comerciais e empresariais, tendo como foco aplicações comuns incluindo usabilidade na web, publicidade, design, etc. No geral, estudos comerciais de eye tracking funcionam através da apresentação de um foco de estímulo visual para uma amostra de consumidores enquanto um eye tracker é utilizado para gravar a movimentação do olhar.
Podemos tomar como exemplos de focos de estímulo: websites, programas de televisão, eventos esportivos, filmes, comerciais, revistas, jornais, embalagens, displays de prateleira, sistemas de atendimento ao consumidor (auto atendimento bancário, sistemas de checkout, quiosques multimídia, etc), e softwares. Os dados resultantes podem ser analisados em esfera estatística e renderizados graficamente para demonstrar evidências de padrões visuais específicos.
Examinando as fixações e movimentos, dilatação da pupila, piscar de olhos e uma variedade de outros comportamentos, pesquisadores podem determinar uma grande quantidade de informações sobre uma dada mídia ou produto.
A pesquisa de eye tracking tem tido sua utilização aumentada sensivelmente na área de usabilidade na web. As técnicas tradicionais de usabilidade são poderosas em prover informação em padrões de clicks, rolagem, no entendimento do comportamento do usuário, opiniões e atitudes em relação a uma interface. A inclusão do eye tracking oferece a habilidade de analisar a interação do usuário entre os clicks. Isto tem provido valiosos insights sobre quais dispositivos são mais atrativos e quais dispositivos confundem os usuários ou são ignorados.
Especificamente, eye tracking pode ser utilizado para medir a eficiência de localização, branding, publicidade online, usabilidade navegacional, design geral e muitos outros componentes de um site.
A fhios tem executado uso extensivo do eye tracking em vários cenários web, incluindo:
- Análise do estado real (real state) de homepages e de páginas chave de um site
Vários estudos recentes tem objetivado em como os consumidores focam atenção em áreas específicas de um real state online, e como estes usuários se movem e priorizam informações em uma página.
De maneira interessante, estas investigações têm questionado a presunção do modelo em “F” de visualização de páginas.
Previamente concluiu-se que os usuários olham para o alto/esquerda e depois para a área mais alta da página, antes de mover para baixo e a direita, fazendo a forma de um “F” (Nielsen 2006).
Nossos achados sugerem que, apesar dos usuários poderem utilizar o “F” para se orientar na página, muitos deles (particularmente aqueles que já possuíam experiência pregressa com a página) serão atraídos para outros elementos da página, como imagens e textos (particularmente pistas navegacionais).
- Estudo de priorização de navegação
Estudos recentes têm comparado diretamente estratégias navegacionais alternativas, investigando o formato mais importante para as estruturas navegacionais primárias e secundárias em homepages; estas investigações claramente ilustraram que a familiaridade ou experiência de uso em um site tem um impacto direto na performance do usuário em localizar e utilizar diferentes itens navegacionais em diferentes posições.
Um dos achados chave destes estudos tem sido a importância da coluna da esquerda nos itens navegacionais primários.
- Análise de e-mails
Vários estudos tem se focado no entendimento de como os usuários ?lêem? e-mails, particularmente e-mails que são enviados como confirmação para processos finalizados online (ex. compras e/ou mensagens de marketing). Estes estudos tem claramente ilustrado um comportamento inicial de ?scanning? e ?browsing? dos usuários quando olham para estes e-mails, mais do que leitura linear dos mesmos. Através da análise do tempo de fixação, tem sido também possível avaliar como usuários estão lendo e-mails, o que lhes chama atenção no texto e quais palavras, frases e sentenças estão sendo ignoradas.
Agregando sentido aos dados de eye-tracking
A pesquisa de eye tracking pode ser mais efetiva para um completo entendimento dos caminhos complexos nos quais usuários interagem com o mundo informacional. Abaixo estão descritos 20 pontos concluídos através de estudos de eye tracking que podem auxiliar na melhoria do design de uma página de web.
- 1. Texto atrai a atenção antes de gráficos.
Usuários não são atraídos apenas por imagens. Usuários casuais irão a um site procurando por informações, não imagens, e por isso, eles procurarão mensagens chave buscando comunicação clara.
- 2. Não modifique as convenções só para ser ?original?.
Usuários necessitam sentir confiança quando acessam o site, consequentemente, apesar do estilo mais autoral parecer interessante, o design não deve tentar mudar radicalmente os hábitos dos usuários se o site quiser ser bem sucedido.
- 3. Leitores ignoram os banners.
Os estudos tem demonstrado que os leitores ignoram banners, apenas focando neles por uma fração de segundos. Se o site se apóia em faturamento proveniente de venda de banners, necessita então ser criativo na localização ou no tipo de anúncio que insere. Nós temos visto que anúncios considerados “relevantes” ou “relacionados” ao conteúdo da página são normalmente mais bem sucedidos (em termos de tempo de fixação) do que aqueles incongruentes com o conteúdo.
- 4. Formatações e fontes extravagantes são ignorados.
Os estudos tem demonstrado que usuários tem dificuldade em encontrar informações em fontes com formato grande e colorido. O site deve ser enxuto e não “gritante”, ou importantes elementos poderão ser encobertos.
- 5. Mostre números como números.
É mais fácil encontrar informações objetivas quando os usuários visualizarem numerais ao invés de números literalmente escritos. Perceba que os usuários irão inicialmente escanear o site, então será mais fácil para eles encontrar o que precisam e se manter interessados.
- 6. O tamanho das fontes influencia o comportamento visual.
O tamanho da fonte afeta como os usuários olham para a página. Pesquisas demonstram que fontes pequenas aumentam o comportamento de concentração de foco visual, enquanto fontes maiores encorajam o escaneamento da página. Obviamente, textos muito pequenos não devem ser utilizados.
- 7. Usuários só lêem um subtítulo se este os interessa.
Apesar de subtítulos poderem ser úteis, nossas pesquisas tem demonstrado que usuários prestam pouca atenção neles. Os usuários irão focar atenção nos subtítulos apenas se estiverem interessados no conteúdo após escanear os títulos da página. A inclusão de palavras chave diretamente relacionadas ao conteúdo tem sido considerada útil para orientar os usuários.
- 8. As pessoas normalmente escaneam as partes baixas da página.
Uma vez que os usuários estão em partes mais “profundas” do site eles visualizam o conteúdo como fazem com o topo da página (escaneando). Ressaltar certas sessões ou incluir listas com marcadores é particularmente útil para auxiliá-los a focar a atenção em certas áreas de conteúdo.
- 9. Parágrafos curtos funcionam melhor que parágrafos longos.
A informação deve ser desenhada para um período curto de atenção da maior parte dos usuários. Parágrafos e sentenças devem ser mantidos curtos, ao menos que o contexto imponha a se fazer diferente, como no caso de descrição de produtos em um site de e-commerce.
- 10. Formato de coluna única funciona melhor para a fixação de olhar do que o formato multi-coluna.
Duas colunas podem sempre desestimular usuários devido a excesso de informação. Manter as áreas de conteúdo simples é geralmente melhor. Nossas pesquisas tem mostrado que usuários ficam menos tempo em conteúdos disponibilizados em múltiplas-colunas.
- 11. Anúncios localizados próximos aos conteúdos mais importantes são vistos com maior frequência.
Apesar de anúncios serem geralmente ignorados, aqueles posicionados próximos ao conteúdo principal são visualizados por maiores períodos de tempo do que os próximos ao conteúdo a ser visualizado (escaneado). Isto é particularmente evidente se o anúncio é relacionado ao conteúdo principal.
- 12. Anúncios em texto são visualizados mais intensamente do que outros tipos de anúncios.
O usuário médio de internet geralmente não perde tempo olhando conteúdo dos anúncios. Este é o porquê de anúncios em texto funcionarem melhor do que anúncios gráficos ou animados.
- 13. Imagens de faces (rostos) claras e limpas atraem mais o olhar.
Fotografias abstratas ou artísticas são interessantes, mas não vão ganhar muita atenção dos leitores. Fotografias de pessoas causam uma fixação um pouco mais longa, particularmente quando são de pessoas ?reais?, e não modelos.
- 14. Cabeçalhos e títulos atraem a atenção.
Leitores focam a atenção em manchetes ou títulos em páginas mais profundas no site. Perceba que as manchetes/títulos são menos importantes na homepage.
- 15. Usuários gastam muito tempo procurando botões e menus.
Links navegacionais necessitam de um design bem feito, destacado e imediatamente inteligível. Afinal, eles não apenas atraem a fixação, mas são um dos elementos mais importantes do site.
- 16. Listas mantém a atenção do leitor por mais tempo.
Listas fazem usuários focar a atenção no conteúdo, o uso de números ou bullets é também importante no momento de destacar as informações mais importantes do conteúdo.
- 17. Grandes blocos de texto devem ser evitados.
Estudos tem demonstrado que em média, o visitante na web não perderá tempo para ler e estudar grandes blocos de texto, não importa quanto informativo ou bem escrito isto possa estar. Destacar áreas específicas e utilizar bullets pode também ajudar a manter a atenção do usuário.
- 18. A formatação pode atrair a atenção.
Utilizar negrito, letras maiúsculas, itálicos, cores e sobrescrito pode auxiliar usuários no momento de escanear textos, entretanto, estes estilos de formatação devem ser utilizados de maneira criteriosa, uma vez que o exagero fará a página difícil de ler e espantará os leitores.
- 19. Espaço em branco é bom.
Por mais que seja tentador colocar alguma coisa em cada parte da página, é melhor sempre deixar áreas do site livre de qualquer texto. Sites com muito texto desestimulam os usuários ? a regra é manter a página visualmente simples e permitir espaços visuais abertos para que os leitores descansem seus olhos.
- 20. Ferramentas navegacionais funcionam mais quando colocadas no topo da página.
Usuários desejam estar aptos a se orientar instantaneamente quando entram em uma página ou site (perceba que eles nem sempre entram em um site via homepage); consequentemente, o usuário necessita “ver” imediatamente os itens navegacionais. Colocar os itens navegacionais no topo da página pode deixar a navegação mais fácil.
Conclusão
Eye tracking é um meio efetivo de analisar o comportamento do usuário. É particularmente útil quando utilizado em colaboração com outros métodos de pesquisa qualitativa, onde usuários podem revisar o “comportamento” de seu olhar e discutir porque ele foi atraído ou não em certas partes da página. [Webinsider]
. Sobre o Autor <strong>Philip Rhodes</strong> é Ph.D. em Information Design. Especialista em soluções centradas no usuário das áreas financeiras, educacional e telecomunicações. É diretor de Customer Experience Research & Design da <strong><a href=”http://www.fhios.com/” rel=”externo”>fhios</a></strong>.
Url original: http://webinsider.uol.com.br/2009/01/02/eye-tracking-as-interacoes-inconscientes-dos-usuarios/
Publicada em: 02/01/2009 22:31
Impresso em: 21/10/2011
[editor] vtardin@webinsider.com.br
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21/10/2011
Mulheres na política: cobertura da imprensa privilegia campanhas eleitorais e esquece programas de governo e legislação voltados para a igualdade de gênero
– Estudo pioneiro revela o comportamento de 16 jornais de todas as regiões brasileiras na cobertura do tema Mulher, Poder e Decisão. A análise aponta que o noticiário é dominado pela disputa eleitoral e não debate políticas públicas adequadamente.
– O resumo executivo da pesquisa pode ser acessado nos sites do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, do Instituto Patrícia Galvão e da ANDI (no novo minisite Mulheres na Imprensa).
– Seminário Imprensa e Agenda de Direitos das Mulheres – uma análise das tendências da cobertura jornalística. discutirá os resultados desta e de outras três pesquisas inéditas. O evento acontecerá em Brasília, no dia 3 de outubro.
O fato de que duas candidatas competitivas – Dilma Rousseff e Marina Silva – pela primeira vez participavam de uma corrida para a Presidência da República não foi suficiente para que a imprensa brasileira aprofundasse o debate sobre temas vinculados à agenda da equidade de gênero, como a participação feminina na disputa partidária e as políticas públicas de promoção dos direitos das mulheres.
Os números são do estudo “Análise da Cobertura da Imprensa sobre Mulheres na Política e Espaços de Poder”(1*): em 2010, 41% das matérias avaliadas tinham como foco as eleições; outro tema recorrente foram as lideranças políticas femininas no Brasil e no exterior.
A pesquisa integra uma série de levantamentos realizados pela ANDI – Comunicação e Direitos e pelo Instituto Patrícia Galvão, no âmbito de projeto desenvolvido com o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero, da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal.
Cobertura ignora políticas públicas
As propostas de políticas e programas de governo voltados para as mulheres praticamente não aparecem no noticiário. Dos textos analisados, menos de 2% mencionam ações do poder público, como a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres ou o Plano Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Da mesma forma, os veículos deixaram em segundo plano assuntos como a destinação de 5% dos recursos do fundo partidário para promoção da participação das mulheres na política e a necessidade dos partidos preencherem a cota mínima de 30% de candidatos/as para cada sexo.
Autoridades são as principais fontes de informação
Outro indicativo do interesse concentrado na disputa eleitoral está na escolha das fontes de informação. Representantes dos poderes públicos (48,57%) – com destaque para o Executivo e o Legislativo – foram os mais procurados pelos jornais pesquisados.
Embora o tema da participação feminina envolva polêmicas, a imprensa não primou pela multiplicidade de pontos de vista nesse noticiário: não mais do que 15% dos textos trazem opiniões discordantes.
Candidatas são julgadas pelo aspecto físico
A referência a aspectos físicos está presente em 14% do material estudado. São principalmente menções a cabelo, roupa, peso, maquiagem e cirurgia plástica das candidatas.
Já informações sobre a vida privada das candidatas, como estado civil, filhos/netos e prendas domésticas aparecem em 31,5% da cobertura.
Insuficiências exclusivamente relacionadas às candidaturas femininas são mencionadas em 20% dos textos. Apenas 4% apontam aspectos negativos de homens e mulheres na mesma notícia.
Seminário irá debater visibilidade da mulher na mídia
Ao longo dos próximos meses, a ANDI, o Instituto Patrícia Galvão e o Observatório Brasil da Igualdade de Gênero irão divulgar mais três pesquisas com foco na abordagem da imprensa sobre questões de gênero. Os temas são Mulher e Trabalho, Mulher e Violência, e a posse da presidente Dilma Rousseff.
Os resultados completos serão debatidos no seminário Imprensa e Agenda de Direitos das Mulheres – uma análise das tendências da cobertura jornalística, organizado pela Secretária de Políticas para as Mulheres. O evento reunirá em Brasília, no dia 3 de outubro, diversos profissionais de imprensa e especialistas na agenda de equidade de gênero.
ANDI lança minisite dedicado à mídia e equidade de gênero
A divulgação dos dados da “Análise da Cobertura da Imprensa sobre Mulheres na Política e Espaços de Poder” coincide também com o lançamento do minisite Mulheres na Imprensa (2**). Integrado ao portal da ANDI, o novo espaço oferece acesso a análises de mídia, notícias atualizadas, banco de fontes de informação com especialistas e entidades ligadas ao assunto, bibliografia e uma relação com mais de 100 leis.
A ferramenta pode ser um importante estímulo para o aprofundamento e diversificação da cobertura do tema.
Resumo Executivo
O resumo executivo da pesquisa está disponível para download nos sites da ANDI, do Instituto Patrícia Galvão e do Observatório Brasil de Igualdade de Gênero.
O Observatório é uma iniciativa da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República que objetiva dar visibilidade e fortalecer as ações para a promoção da igualdade de gênero e dos direitos das mulheres. Para isso, o observatório atua em cinco grandes eixos: Indicadores; Políticas Públicas; Legislação e Legislativo; Internacional; e Comunicação e Mídia.
Fontes
Instituto Patrícia Galvão
Jacira Melo e Marisa Sanematsu
jaciramelo@uol.com.br / msanematsu@uol.com.br
(11) 3266-5434
ANDI – Comunicação e Direitos
Lauro Mesquita
lmesquita@andi.org.br
(61) 2102-6530
Observatório Brasil da Igualdade de Gênero
Nina Madsen e Júlia Zamboni
nina.madsen@spmulheres.gov.br / julia.zamboni@spmulheres.gov.br
(61) 3411-4227
Por Lauro Mesquita, edição Veet Vivata
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1 – Inclusão e Sustentabilidade
Resumo Executivo – Análise da Cobertura da Imprensa sobre Mulheres na Política e Espaços de Poder
Data/2011
A presença de duas candidatas com densidade política e forte expressão eleitoral na campanha presidencial dominou o noticiário brasileiro em 2010 no que se refere à participação da mulher na política. Estudo pioneiro realizado pela ANDI – Comunicação e Direitos e pelo Instituto Patrícia Galvão, no âmbito de projeto vinculado ao Observatório Brasil da Igualdade de Gênero (Eixo Comunicação e Mídia), revela que a possibilidade de eleição de Dilma Roussef ou Marina Silva à Presidência da República impulsionou a cobertura sobre as eleições, questão amplamente priorizada pela imprensa na cobertura do tema Mulher e Política em 2010.
O monitoramento teve como base a produção editorial de 16 jornais impressos de todo o País entre 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2010. Os dados revelam que, ao focar atenção quase que exclusivamente na corrida presidencial, os veículos noticiosos perderam a valiosa oportunidade de abrir espaço à discussão de políticas públicas, programas de governo e mesmo da legislação eleitoral que trata da presença feminina nas instâncias políticas – aspectos indispensáveis na reflexão sobre as causas da exclusão das mulheres nesses espaços.
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2 – Apresentação
A identificação detalhada dos temas da agenda da equidade de gênero presentes na pauta da imprensa permite avaliar a importância relativa que eles alcançam na esfera pública de discussões.
Desde 2009, a ANDI vem realizando diversas ações nesse campo, em parceria com o Instituto Patrícia Galvão (IPG) e com a Secretaria de Políticas para as Mulheres (SPM), como parte das estratégias de fortalecimento das iniciativas do Observatório Brasil de Igualdade de Gênero vinculadas à comunicação:
- Desenvolvimento e transferência de metodologia de monitoramento e análise de mídia com foco em mulher e gênero a ser adotada pelo Instituto Patrícia Galvão.
- Elaboração e divulgação pautas especiais e prioritárias para a agenda de equidade de gênero distribuídas para as redações de todo o país.
- Análise de mídia com foco na cobertura jornalística da agenda de gênero por 16 diários brasileiros, destacando três temas específicos:
- Poder, Decisão e Mulher.
- Trabalho.
- Violência contra a mulher.
- Análise especial da cobertura jornalística sobre o processo eleitoral de 2010 em uma perspectiva de gênero, alcançando 29 jornais impressos, quatro revistas e quatro jornais televisivos.
- Análise especial da cobertura jornalística sobre os primeiros passos do governo da presidente Dilma Rousseff em 15 diários de todo o país e em cinco telejornais de rede: Monitoramento da cobertura do debate sobre gênero durante o período de diplomação e de posse da presidente eleita.
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25/8/2011
PLANEJAMENTO DE RELAÇÕES PÚBLICAS NA COMUNICAÇÃO INTEGRADA – MARGARIDA MARIA KROHLING KUNSCH
Capítulo 7 – Pesquisa e auditoria em Relações Públicas
A pesquisa constitui um pré-requisito para o planejamento das relações públicas nas organizações. A importância fundamental das pesquisas e auditorias deve-se a possibilidade de atribuir um caráter científico para a prática de suas atividades.
Não dá para improvisar ou ficar nas simples percepções. Temos de nos fundamentar com base em dados levantados por meio de pesquisas e auditorias especializadas. Portanto, as relações públicas têm de se valer de métodos, das técnicas e dos instrumentos já destacados e utilizados na pesquisa científica em geral.
Objetivos:
- Conhecer a opinião dos públicos
- Construir diagnósticos da área ou setor de comunicação organizacional
- Conhecer em profundidade a organização, sua comunicação e seus públicos para elaboração de planos, projetos e programas especiais de comunicação,
- Fazer análise ambiental interna e externa, verificando quais as implicações que possam afetar os relacionamentos.
Fundamentos e importância:
A pesquisa é particularmente importante no estágio de planejamento. Sua importância reside no fato de que nos ajuda a buscar respostas para inúmeros questionamentos em relação à audiência (públicos) envolvida em determinado programa às ações comunicativas (mensagens, canais, receptores) e a averiguar as expectativas dos públicos, com vistas no uso da persuasão de forma científica e correta.
A maior crítica levantada pelos autores recai sobre a prática profissional mais freqüente: muitos profissionais trabalham como técnicos e não usam a pesquisa como subsídio para seus programas e projetos. Raros são os programas com objetivos mensuráveis, pouquíssimos usam a pesquisa para determinar a natureza dos problemas, o progresso no atingimento de seus objetivos e o sucesso ou fracasso dos programas.
Classificação:
As relações públicas nas organizações podem e devem se valer não só das pesquisas específicas do campo profissional, como também de inúmeras outras eventualmente realizadas por demais áreas. Uma pesquisa de marketing direcionada para o consumidor e o mercado poderá fornecer interessantes subsídios para projetos de relações públicas em apoio à área mercadológica.
Enquanto as pesquisas visam buscar informações para analisar determinadas situações, problemas ou necessidades, em virtude da construção de diagnósticos com visas em planejas ações, a avaliação tem como propósito verificar como essas ações foram executadas e quais foram os resultados obtidos, mensurando retornos e comparando se o que foi realizado é coerente com o proposto no planejamento.
A auditoria difere da pesquisa nas suas finalidades e características. É mais pontual e visa basicamente avaliar o desempenho da organização em si ou de determinados setores ou áreas específicas, objetivando a busca da eficiência e da eficácia. Em síntese, a auditoria tem relação com examinar e verificar desvios, disfunções que impedem o alcance da eficiência e da eficácia.
Tipologia essencial:
No âmbito institucional, as relações públicas trabalham com a:
- Pesquisa de opinião com os públicos,
- Pesquisa institucional para conhecer a organização como um todo.
Pela natureza das atividades e por gerenciar a comunicação da organização com o seu universo de públicos, realizam também as chamadas:
- Auditoria de opinião,
- Auditoria de imagem,
- Autoria da comunicação organizacional,
- Auditoria da cultura corporativa,
- Auditoria social ou o monitoramento do ambiente.
Pesquisa de opinião pública:
Constitui um dos tipos de pesquisas mais relevantes, com numerosas aplicações, tendo em vista a diversidade de públicos vinculados às organizações. Pode ser utilizada nas relações com empregados, consumidores, acionistas, revendedores e distribuidores, comunidade, imprensa, poder público etc, a fim de conhecer a opinião desses públicos sobre a organização, fatos e acontecimentos e o nível de satisfação nos relacionamentos entre ambos. Só conhecendo a opinião dos públicos sobre um fato ou problema será possível traçar estratégias e soluções adequadas.
A aplicação da pesquisa de opinião pública segue todos os parâmetros da metodologia da pesquisa científica.
Pesquisa institucional:
Visa conhecer a organização como um todo, possibilita a construção de um diagnóstico capaz de alicerçar a proposição futura de planos, projetos e programas de relações públicas de forma mais segura e coerente com as necessidades da organização. Para isso, requer o uso adequado de técnicas e instrumentos da pesquisa científica e de procedimentos metodológicos pertinentes.
A pesquisa institucional é ampla e abrangente e, quando bem planejada e aplicada, fornece todas as condições para um conhecimento da organização como um todo e de sua comunicação o universo de públicos.
O questionário é um dos principais instrumentos a ser aplicado. Outras técnicas e instrumentos podem e devem ser utilizados: análise do conteúdo dos produtos comunicacionais, pesquisa participante, entrevista em profundidade, dinâmica de grupos, entrevista em profundidade com lideranças e observação direta.
Outro aspecto a ser considerado é a relevância de conhecer previamente as características da organização. A elaboração de um questionário e um roteiro de entrevistas voltados para empresas comerciais contempla questões diferentes das que faríamos para organizações públicas e do terceiro setor.
Portanto, há necessidade de fazer adaptações e ajustes a cada tipologia organizacional e de buscar caminhos alternativos, se necessário. Ao fazer trabalhos para comunicação local, movimentos sociais, organizações do terceiro setor, entidades carentes é necessário buscar metodologias apropriadas para esses segmentos. De acordo com a situação da comunidade, pode ser melhor que não seja um questionário formal, mas reuniões com líderes e setores determinados. É preciso haver bastante flexibilidade e adaptações, dependendo de onde e com quem se vai trabalhar.
A pesquisa institucional deverá contemplar os seguintes itens:
- A organização: identificação e dados gerais: história, infra-estrutura física, transportes, produtos ou serviços, situação econômica, estrutura organizacional e administrativa, cultura organizacional, clima organizacional, capital intelectual, missão, visão e valores, ambiente, responsabilidade social e balanço social.
- A comunicação: sistema de comunicação vigente (fluxos, processos, redes, barreiras e meios), públicos, estrutura departamental ou setorial da comunicação, políticas, filosofia e objetivos, missão, visão e valores da comunicação, práticas da comunicação organizacional.
Auditoria da comunicação organizacional:
Tem como função primordial examinar, avaliar, reorganizar, solucionar e melhorar o sistema de comunicação de uma empresa visando melhorar o desempenho das práticas comunicacionais.
Duas dimensões a contemplam. A primeira dimensão é a avaliação do sistema macro e micro: macro avaliam-se a estrutura formal e informal da comunicação, a comunicação interdepartamental e a comunicação com sistemas internos; no micro: as comunicações interpessoais e grupais. A segunda dimensão está relacionada com as recomendações que devem ser encaminhadas para promover mudanças necessárias para melhorar o desempenho da comunicação.
Também faz parte do trabalho examinar as produções comunicacionais, seus símbolos, suas histórias, metáforas e as falas do seu público interno.
Os questionários e as entrevistas são considerados os melhores e mais completos dos instrumentos, pois permitem obter o máximo de informações. Outras técnicas e instrumentos não muito conhecidos são:
- Análise Ecco (Episodc Communication Channels in Organizations): análise de transmissão das mensagens, como as mensagens circulam nas organizações tanto na rede formal quanto na informal, e de que forma se cruzam. Para descobrir o processo de difusão, o tempo que a mensagem demorar para circular, o meio usado, os caminhos percorridos, os bloqueios.
- Experiências Críticas de Comunicação: Tem o objetivo de relatar e descrever as experiências vividas em comunicação pelas pessoas. Questiona e interpreta como se dá o processo comunicativo no contexto organizacional. Com quem você se comunicou? O que aconteceu? É uma técnica mais subjetiva e qualitativa.
- Análise de Redes de Comunicação: permite avaliar quem se comunica com quem, a freqüência que a comunicação ocorre, verifica quem está bloqueando ou sobrecarregando o fluxo comunicacional.
Auditoria de opinião:
É o levantamento que se faz junto dos públicos-líderes. Sua finalidade é destacar informações significativas para correta análise de um problema, sua significação irá derivar da qualidade do público entrevistado e não na quantidade, não se caracterizando portanto como uma pesquisa quantitativa.
Serve para descrever como vão as relações de determinada organização com os públicos internos e externos, o que pensam dela, dos seus serviços e produtos. Emprega-se também para o estudo de um segmento, um produto ou serviço específico.
Em síntese, a auditoria de opinião visa ouvir o parecer de públicos representativos sobre determinada situação ou realidade que está sendo pesquisada, a fim de colher dados significativos e relevantes para construir um diagnóstico correto, com vistas na realização de um planejamento de ações futuras para intervir nessa mesma realidade ou situação.
As principais técnicas estão centradas na identificação da situação a ser equacionada, ao levantamento dos públicos, que devem ser efetivamente representativos. Da composição correta da amostra ou do conjunto de públicos é que dependerá a qualidade das informações requeridas.
Outro aspecto relevante é a qualificação do entrevistador. Exige-se um pessoal altamente qualificado, capaz de conduzir uma entrevista em profundidade e conhecedor do assunto e da problemática em questão.
O principal instrumento é a entrevista aberta, cujo roteiro deverá ser o mais flexível possível e se adequar a cada caso e realidade. Normalmente, a entrevista é aplicada de maneira informal, para se ganhar confiança do entrevistado e ter maior veracidade nas respostas.
Outros instrumentos são os relatórios, que devem registrar em detalhes todas as entrevistas realizadas e, no final, um resumo com os principais depoimentos colhidos, conclusões gerais, quadros sintéticos dos itens mais relevantes, categorização dos temas recorrentes, análises, recomendações e proposições.
Auditoria de imagem (corporativa):
A auditoria de imagem não se limita apenas a examinar a imagem da organização que é projetada na mídia, isto é, a imagem midiática, mas deve examinar também outros tipos: imagem funcional, que é decorrente do seu comportamento corporativo; a auto-imagem – sua cultura corporativa; a imagem intencional, que é o posicionamento estratégico, isto é, como a organização quer se mostrar para o público.
Da imagem funcional, para Villafañe, devem-se verificar as variáveis que a compõem: imagem financeira (reputação financeira e estrutura do capital), imagem comercial (valor do produto, serviço ao cliente, valor da marca), imagem interna (clima interno, valorização dos recursos humanos, adequação cultural) e imagem pública (imagem midiática, imagem do ambiente).
Maria Schuler desenvolveu um método de pesquisa fácil: o entrevistar escolhe um elemento determinado (um atributo) do modelo mental ligado à empresa (por exemplo, o nome, a logomarca) e utiliza sempre esse mesmo elemento como estímulo para os entrevistados, sem nunca fazer, ele mesmo, nenhuma ligação com outras idéias.
Wilson da Costa Bueno trata especificamente da auditoria da imagem na mídia. O autor tem uma visão muito crítica das práticas tradicionais de mensuração do clipping ou de recorte de matérias veiculadas na imprensa. Ele chama de “equívocos de clipagem” as análises de equivalência quantitativa entre o espaço editorial conseguido pelas organizações com notícias ou matérias e os custos de anúncios pagos por elas. Para ele, quem reduz a auditoria de imagem a esse tipo de análise é um mero “contabilista” de informação.
A auditoria de imagem requer o uso de diferentes técnicas e instrumentos e, sobretudo, um planejamento adequado. Não é algo simples, pois lida-se com o inatingível com a reputação e percepções do imaginário das pessoas e dos públicos. É necessário um conhecimento prévio da organização e o aproveitamento de outras pesquisas e auditorias relacionadas com a área de relações públicas e comunicação organizacional.
Auditoria social ou monitoramento do ambiente:
São formas para pesquisar, examinar e avaliar as relações da organização com o seu ambiente social, como ela se posiciona, quais as influências externas a que está sujeita, quais os efeitos e as reações dos públicos sobre suas atitudes,etc.
Consiste em pesquisar, examinar e avaliar as tendências socioeconômicas presentes no meio ambiente da organização. É um exercício de vigilância do que está ocorrendo no contexto do ambiente social, verificando-se quais são as ameaças e as oportunidades desse ambiente. Significa também identificar as influências dos fatores externos ou das variáveis sobre a vida da organização e avaliar o nível de suas relações com o ambiente.
A auditoria facilita a detecção de problemas no ambiente externo, permite antecipar conflitos e constitui um ótimo instrumento para direcionar com mais possibilidades de eficácia a análise de uma situação-problema para posterior planejamento de programas de ações futuras de relações públicas.
As técnicas e os instrumentos já citados para outras pesquisas aplicadas e auditorias são válidos para a auditoria social ou monitoramente do ambiente. Ressalta-se que um estudo monitorado e contínuo do que se passa e é veiculado na mídia massiva imprensa e eletrônica e em todas as mídias segmentadas e alternativas são fontes por excelência para monitorar o ambiente externo. A auditoria de imagem corporativa é outra forma imprescindível para o monitoramento ambiental.
Capítulo 9 – Planos, projetos e programas de relações públicas
Planejamento de eventos em relações públicas:
O evento é uma atividade de grande interesse para as organizações que propiciam o envolvimento direto dos públicos na sua realização. É um excelente meio de comunicação dirigida aproximativa entre a organização e o público.
Deve ser considerado uma atividade planejada, coordenada, organizada, que visa atingir objetivos preestabelecidos, claros e definidos. Quando bem planejado e executado criará fatalmente um conceito positivo para a organização que o promove. Os meios mais comuns são: congressos, convenções, simpósios, inaugurações, concursos, mostras e exposições, premiações, lançamento de produtos,etc.
Há três atividades principais que envolvem o planejamento, a organização e a execução dos eventos: 1) organização 2) produção de material informativo e promocional 3) divulgação.
A organização engloba as providências administrativas como definição do local, data, cadastramento de participantes, mailing list, serviço de som, fotografia, recepcionistas, etc.
A produção de material informativo se faz necessário em qualquer evento. São os materiais que permitem divulgar o evento para atrair o público: folders, cartazes, boletins, brindes, banners, etc. Bom lembrar a necessidade da criação de uma identidade visual única para o evento, a marca que queremos fixar, que deverá estar presente em todas as peças.
Qualquer evento para que chegue até o público desejado tem de ter uma divulgação. Para isso, deve ser elaborado um plano de comunicação dirigida e de comunicação para a mídia, dependendo da amplitude e dos objetivos do evento. Definem-se quais os meios a serem utilizados e de que forma se fará a veiculação. Prevê-se todo o tempo que levará o trabalho de relacionamento com a imprensa e a distribuição de material informativo e promocional.
Para desenvolver essas atividades ordenadamente, é interessante agrupá-las em cronograma apropriado, detalhando as providências necessárias. Para cada tipo de evento utilizam-se técnicas apropriadas de planejamento e organização.
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20/8/2011
Trabalho escravo nas confecções de São Paulo
‘Trabalham quietos, feito condenados’, diz vizinho
AGNALDO BRITO
DE SÃO PAULO
Há cinco anos em São Paulo, a boliviana Idalena Furtado conhece bem a realidade de seus compatriotas nas clandestinas oficinas de confecção espalhadas pelo bairro do Bom Retiro, na região central da capital paulista.
Furtado, hoje cozinheira, é uma entre milhares de bolivianos que abandonaram a pátria de Evo Morales atrás de trabalho e renda. Mas, para muitos, o sonho no Brasil se converte em um drama em pouco tempo.
“Trabalhava 15 horas por dia, das 7h da manhã até as 22h. Comia sobre a máquina de costura e dormia em um cômodo onde todo mundo ficava amontoado”, afirma a ex-costureira.
Ontem, ao saber da operação realizada pelo Ministério do Trabalho na região, a duas quadras do seu atual trabalho, Furtado comemorou.
“Acho que eles deveriam fazer isso mais vezes. Tem muito patrício aqui que vive como escravo”, afirma.
Onde o Ministério do Trabalho fez a blitz, na avenida Rudge, tudo parece quieto e soturno. O prédio parece um “bunker”, uma clausura onde a luz do sol não entra.
Pela extensa escadaria mal iluminada, avistada da porta principal do prédio, algumas pessoas transitavam de cima para baixo, ignorando o interfone acionado pela reportagem da Folha.
A vizinhança dali preferiu o silêncio. As pessoas viram a operação do Ministério do Trabalho, mas poucos quiseram comentar.
Alguns se mostraram contrários à presença de bolivianos no bairro, o que evidencia existir um clima pouco amistoso no bairro paulistano do Bom Retiro.
A chegada de coreanos e de bolivianos transformou a região em um polo da indústria da confecção com baixo custo de produção. Mais gente, mais dinheiro.
Francisco Ceará, dono de pequena oficina, reclama do preço dos aluguéis.
“Alugava essa casa aqui por R$ 600. Agora, pago R$ 1.500”, afirma.
Sobre os bolivianos, Ceará não tem preconceito e sabe bem o que os distingue: “Trabalham quietos, feito condenados”, diz.
Editorial da FSP
Escravos da moda
A boliviana Idalena Furtado vive há cinco anos no Brasil e, como tantos outros imigrantes sul-americanos, veio trabalhar numa confecção de roupas no bairro paulistano do Bom Retiro.
Seu relato, publicado nesta Folha, descreve condições análogas às de uma situação de trabalho escravo. Trabalhava 15 horas por dia. Comia sobre a máquina de costura e dormia em um cômodo, “todo mundo amontoado”.
Aliciados em seus países de origem, bolivianos, peruanos e paraguaios se juntam a trabalhadores brasileiros para viver em oficinas clandestinas, sem direito a férias e a um dia de descanso semanal, enredados numa espiral de dívidas e degradação. O ambiente de clausura em que trabalham não poderia oferecer maior contraste com o das lojas de grife para as quais fornecem seus produtos.
Vistorias do Ministério do Trabalho responsabilizaram marcas como Billabong, Brooksfield, Cobra d’Água, Ecko, Gregory, Tyrol e Zara por compactuar com o abuso. Nas oficinas que confeccionam roupas para suas lojas, verificou-se um regime de hiperexploração do trabalho: funcionários das empresas clandestinas tinham, por exemplo, de pedir autorização para deixar o local onde costuravam e viviam.
Relatos das condições nas chamadas “sweatshops” (oficinas-suadouro), em especial nos países em desenvolvimento, renderam publicidade negativa a marcas de artigos esportivos, brinquedos e roupas que, para uma sociedade ofuscada pelo brilho do consumo, parecem ainda assim associadas a prazer, desejo e sedução.
O consumidor raras vezes tem acesso à realidade que pode ocultar-se sob a aparência reluzente. A inclinação para o “consumo consciente” -trate-se de móveis de madeira certificada, empresas com responsabilidade social ou selos atestando compromisso contra o trabalho infantil- é algo relativamente recente no Brasil.
Depende, para fortalecer-se, do empuxo de fiscalização do Estado, que revela o avesso de algumas grifes. Ciente de fatos assim, o consumidor também se torna responsável, como pagante, pela degradação de seres humanos. ________________
18/8/2011
Catástrofe nuclear, convulsões árabes e debacle financeiro
O poder desnudado por suas próprias crises
A crise econômica iniciada em 2008, o acidente nuclear de Fukushima e as revoltas populares no mundo árabe convergem para um questionamento do capitalismo mundial. Apesar das diferenças que guardam entre si, os três grandes acontecimentos que agitam o mundo revelam de maneira gritante os limites de uma mesma lógica
por Denis Duclos (*)
Três grandes crises agitam o mundo e não se deixarão reduzir a assuntos que espiamos rapidamente antes de passar para o próximo: o grande pânico financeiro iniciado no final de 2008; o acidente nuclear em Fukushima, ocorrido em 11 de março de 2011; e a crise de regime em muitos Estados árabes, onde o povo se rebela desde o fim de 2010.
A priori, não é razoável comparar tais crises, já que elas se referem a campos muito diferentes. A primeira, que parece produzir-se em um mundo virtual, trata da evaporação de trilhões de dólares; a segunda decorre de um acidente gravíssimo relacionado a uma tecnologia que visa à produção de energia abundante; e a terceira nasce de uma revolta popular em massa contra ditaduras militarizadas. Também não seria decente justapô-las como puras catástrofes, sendo uma o efeito do “triunfo da ganância”1 e outra o resultado de um desastre natural imprevisível, com sofrimentos que assumem o sentido – desejável – de uma “primavera dos povos”.
Contudo esses eventos distintos convergem para um mesmo questionamento do sistema capitalista mundial. E a resultante poderia não ser o caos global anunciado por um impressionante concerto de pessimistas, mas uma evolução libertadora – um “parto da história”, retomando a clássica metáfora marxista.
Pontos em comum
Essas crises têm três pontos em comum. Elas fragilizam pilares cruciais do sistema: sua base energética, seu modo de orientação do trabalho humano pelo dinheiro e sua necessidade de estabilidade política, especialmente na periferia dos centros liberais. Em cada área respectiva, as crises são a manifestação do mesmo estilo do excesso, que conduz ao perigo tecnológico inaceitável, ao risco financeiro incontrolável ou ao poder autoritário insuportável. E revelam o poder das tendências que se opõem à manutenção do próprio sistema: dinâmicas ambientais e resistências humanas de sociedades inteiras que se recusam a submeter-se à incompetência, à poluição ou a autoridades delinquentes.
Em primeiro lugar, destaca-se um conjunto coerente de condições de sobrevivência do mecanismo dominante: a submissão do homem e da natureza ao controle e à exploração do melhor mercado, pelo maior rendimento possível. Assim, a tutela financeira da economia não é uma divagação especulativa: ela ordena as atividades humanas pela lógica do rendimento. A economia virtual constitui, portanto, menos uma aberração que um campo de manobra da autoridade mundializada, capaz de deslocar fábricas e trabalhadores; de criar economias “emergentes”, impérios-fábrica e continentes-escritório; de prever a produtividade e desenvolver o consumo cativo que lhes serão irreversivelmente necessários. Em outras palavras, a financeirização é a criação do quadro – muito caro – de uma economia-mundo. Daí que sua crise em enormes bolhas de insolvência desqualifica a governança geral do trabalho humano no sistema.
Imprevisibilidade e desordem
Sem o petróleo – mesmo três vezes mais caro que em 2000 e dez vezes mais que em 1990 –, deveríamos dividir por quatro a produção global de alimentos. A intendência que ainda fornece energia barata não pode desprezar nenhum de seus recursos fósseis, orientando cada setor a um uso preferencial: energia nuclear para a produção industrial; carvão liquefeito e gás para o aquecimento; e petróleo principalmente para deslocar um bilhão de veículos.2 Questionar o setor nuclear (e planejar seu abandono, como propõe a Alemanha até 2022) não será, portanto, apenas uma lição que incentiva a reorientar pelo menos 14% da produção elétrica mundial para a energia eólica, solar ou para a biomassa, mas um ataque a um segmento essencial do mecanismo global.
Enfim, sem esmagar as liberdades políticas num anel de países em torno das democracias de mercado supostamente regidas pelo Estado de direito, centenas de milhões de pessoas seriam desenfreadamente atraídas para mercados de trabalho distantes de seu local de vida; conflitos sociais ou religiosos adiariam indefinidamente a própria possibilidade de uma mundialização dócil das trocas.
Esses mesmos democratas puderam ver na solidez dos regimes eufemisticamente considerados “moderados” um escudo contra um conflito mundial oriundo do barril de pólvora do Oriente Médio. É por isso que as legítimas exigências dos povos rebelados não suscitam apenas a espontânea solidariedade (como na Líbia), mas também uma grande preocupação, mais ou menos disfarçada de expectativa.
Não é de surpreender, portanto, que essas três crises convoquem as mais altas instituições internacionais nem que corram a tentar debelá-las. Como disse o californiano especialista em energia nuclear Najmedin Meshkat sobre o acidente em Fukushima: “Isso vai muito além do que um país pode gerir. É algo que deve ser discutido pelo Conselho de Segurança da ONU. […] É uma questão mais importante que a zona de exclusão aérea sobre a Líbia.”3
Em segundo lugar, cada uma dessas três falhas sistêmicas designa a mesma tendência do sistema a “forçar” o curso das coisas: forçar o trabalho humano pelo constrangimento financeiro; forçar a natureza por meio de tecnologias perigosas; forçar o processo político, enquadrando as massas quando elas ainda não se disciplinaram pela lógica taylorista (que foi e continua sendo a faceta civil da disciplina militar).
A indústria financeira usou a garantia dos Estados liberais para beneficiar dívidas públicas, manipular ofertas de crédito e empurrar devedores para contratos injustos ou armadilhas invisíveis. Quanto aos regimes autoritários, eles exibem sua natureza em seus uniformes e nas suas barreiras rodoviárias, em prisões políticas e “estados de exceção”, na arrogância de suas classes nepotistas monopolizadoras. Por fim, a indústria nuclear cerca-se, desde suas origens, de uma cultura da segurança, policial e militar, para impor suas escolhas em nome dos interesses nacionais estratégicos.
Nos três casos também, a duplicidade serve como ferramenta de gestão cotidiana. Depois de escamotear os pontos fracos – impossibilidade de “titularizar” as dívidas sem tirar a solvibilidade do sistema financeiro; necessidade permanente de resfriar uma central nuclear; separação inelutável entre os povos e os serviços de segurança –, camufla-se a extensão dos danos. O programa de recuperação dos ativos bancários nos Estados Unidos, votado em outubro de 2008, cobria apenas US$ 300 bilhões (com um custo final de US$ 25 bilhões para os contribuintes), ou seja, menos de um décimo das perdas reais. O desastre nuclear de Fukushima foi e continua sendo constantemente minimizado pela operadora Tepco e pelas autoridades japonesas e internacionais, mesmo depois de ter sido considerado de gravidade equivalente à do acidente de Chernobyl. Isso sem falar nos desaparecimentos, torturas, prisões e abusos de todo tipo, ignorados pela mídia nos regimes principescos ou nas ditaduras militar-policiais ainda consideradas “moderadas”.
Esses excessos revelam agora seu limite comum. A falta de previsão, a confusão e a paralisia aparecem e perduram, apesar das afirmações infundadas e da insistência no erro. A incapacidade de pensar acompanha como uma sombra a vontade de impor uma ordem a despeito de qualquer razão: quando se decide construir uma indústria nuclear, não se pode incluir a prioriuma “preparação para um acidente grave” cuja simples possibilidade se nega (com apoio do cálculo de probabilidades). Assim, a França e o Reino Unido recusaram-se a incluir os ataques terroristas nos “testes de resistência” das centrais nucleares europeias.
No mundo financeiro, se acredita no mercado (que é sua fonte de vida), você não pode pensar o crescimento como uma bolha que vai “suicidá-lo” – e isso menos de um século após a última grande crise, e exatamente como previu o economista John Kenneth Galbraith.4 As elites ditatoriais parecem incapazes de imaginar, até o último segundo, que um buraco pode se abrir em seus palácios e que seus privilégios podem ser abolidos, tanto pela rua (que desprezam) como pelo congelamento de seus bens tão cuidadosamente expatriados. Considerando a impotência para resolver problemas, a analogia entre a crise nuclear e a financeira fica ainda mais evidente. Como observa Paul Jorion,5 a crise financeira assemelha-se à de Fukushima: em um caso, é necessário jogar água incessantemente para resfriar os núcleos danificados da central; no outro, é necessário jogar dinheiro incessantemente para remediar a implosão da bolha.
Mas, assim como será difícil esconder e reduzir por muito tempo o grau de endividamento ao qual conduziu a excessiva criação de moeda por meio do crédito – pois essas perdas acabarão sendo absorvidas pelos contribuintes –, também será impossível estabilizar por muito tempo a difusão mundial (por ar, mar e pelos produtos exportados) de substâncias radioativas de longa duração, como o césio 137, ou muito tóxicas, como o plutônio – pois os tanques de muitos reatores estão danificados. Do mesmo modo, já não se pode mais esconder que, para além das zonas de evacuação, o Japão está ameaçado por uma nova degradação dos reatores de Fukushima, pelo estado de outras centrais abaladas pelo terremoto ou pela radioatividade subavaliada que impregna o solo, os produtos agrícolas, os contêineres. Também não se pode mais esconder que outros milhões de pessoas serão afetados pelo agravamento da crise econômica e do desemprego, em decorrência do desastre.
Uma ideologia em declínio
É verdade que persiste a atitude de conduzir as coisas à força, com imposições financeiras, tecnológicas e policiais. Esses constrangimentos contam até mesmo com uma solidariedade corporativa mundializada: a definição, pelas instituições nucleares do mundo inteiro, do que se pode saber; o impedimento, pelos lobbiesfinanceiros, da restrição de seu poder de orientar o futuro; o socorro mútuo dos regimes autoritários (príncipes sunitas reprimindo juntos os manifestantes no Bahrein, ou cartéis militares do Magreb apoiando secretamente o coronel Muamar Kadafi); e a desconfiança ocidental implícita para com a juventude árabe.
Mas a estratégia de forçar o mundo não pode mais atuar como ideologia global. Ela não aparece mais como um mal necessário, revelando-se pelo que é: um estilo de governo arbitrário, perigoso e predatório, a serviço de três tipos de agentes de dominação, em detrimento da liberdade de cada um dispor de seu trabalho, desfrutar da natureza sem destruí-la (verdadeiro objetivo da economia, de acordo com o matemático e bioeconomista Nicholas Georgescu-Roegen) e participar sem entraves da comunidade política humana.
As três crises que manifestam os mesmos constrangimentos excessivos do dinheiro, da tecnologia e do poder têm como resposta a expectativa das “três libertações”: a de um trabalho humano que não deve ser apenas relocalizado, reformulado e orientado para o lucro máximo, mas sim rediversificado, em uma lógica de maior autonomia; a da natureza que não deve ser submetida ou torturada para obter sua máxima utilidade; e por fim a da livre participação na vida política do “povo planetário”, contrária tanto à dominação dos regimes militares (ou das fatwas aterrorizantes cada vez mais rechaçadas no mundo muçulmano) como ao fechamento xenófobo que sentimos crescer no Ocidente, presumido lar do liberalismo.
Em todas essas áreas, uma formidável batalha de ideias está sendo travada, especialmente na internet. Ela se mostra tão difícil no setor de energia como no campo financeiro – em que cada protagonista deve iniciar-se nos arcanos do funcionamento dos mercados –, e mesmo assim cresce em camadas cada vez mais amplas, apesar dessa dificuldade. A intuição de uma possibilidade de viver de outra forma, mais simples e livre, é o argumento que enfrentam agora os experts, sem que eles possam imediatamente tachar tais alternativas regressivas ou irrealistas.
(*) antropólogo, é diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS.
Referência bibliográfica
1 Joseph Stiglitz, Le triomphe de la cupidité [O triunfo da ganância], Les Liens qui Libèrent, Paris, 2010.
2 Temos 1,290 bilhão de veículos particulares e utilitários, ou seja, uma frota duplicada em quatro anos, de acordo com a avaliação em tempo real da associação Carfree.
3 C itado por Kiyoshi Takenaka e Yoko Kubota, “Le Japon se résigne à une longue crise nucléaire” [Japão resignado a uma longa crise nuclear], Reuters Online, 28 de março de 2011.
4 John Kenneth Galbraith, La crise économique de 1929: Anatomie d’une catastrophe financière [A crise econômica de 1929: Anatomia de uma catástrofe financeira], Petite Bibliothèque Payot, Paris, 2008.
5 V er seu blog de notícias financeiras: http://www.pauljorion.com/blog/.
Fonte: Le Monde Diplomatic
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14/8/2011
VELHO JORNALISMO
Serão mesmo os fatos subversivos?
Por Muniz Sodré em 08/08/2011 na edição 654 do Observatório da Imprensa
“Os fatos são subversivos” – é o que nos garante o escritor inglêsTimothy Garton Ash desde o título de seu livro que acaba de ser publicado em português (Companhia das Letras, 430 pp.). Ash pratica um misto de jornalismo e historiografia, combinando reportagens com a pesquisa e a reflexão acadêmicas. Como professor é “top-model”: ensina em Oxford e em Stanford. O grande interesse de seu trabalho para a atividade jornalística de hoje é a sua insistência na categoria dos fatos, cuja realidade procura elucidar tanto nas questões políticas como nas culturais. Mesmo considerando que “já houve tempos piores para os fatos” (por exemplo, na década de 30, o aparato totalitário da mentira organizada nas ditaduras tecnológicas), ele chama a atenção para as novas “fontes de arranjo dos fatos”, que se encontram principalmente na fronteira entre a política e a mídia.
A questão tem importância prática e teórica. Mais de uma vez, frisamos em textos publicados aqui no OI, assim como em trabalhos acadêmicos, que o jornalismo implica um tipo particular de “conhecimento de fato”, nos termos da definição de Hobbes:
“Há dois tipos de conhecimento: um é o conhecimento de fato, e outro o conhecimento da conseqüência de uma afirmação a respeito de outra. O primeiro não é outra coisa senão sensação e memória, e é conhecimento absoluto, como quando vemos realizar-se um fato ou recordamos o que se fez; deste gênero é o conhecimento que requer uma testemunha. O último se denomina ciência (….)”.
O conhecimento dos fatos redunda, na verdade, em História, em torno da qual sempre girou o jornalismo, mesmo sem pretensões de essência ou sequer de sistematização de seus registros. O que os fatos, em si mesmos, nos transmitem são conhecimentos contingentes, isto é, que poderiam ser de outra forma, relativos, não necessários. Entenda-se: não necessários em si próprios, como o conhecimento científico, mas absolutamente necessários à atividade jornalística, onde vigora a frase lendária “os comentários são livres, mas os fatos são sagrados”.
Imprensa em transformação
A preocupação de Ash deriva da evidência de que, com a transformação da imprensa pelas novas tecnologias da informação e da comunicação e por suas conseqüências comerciais, a frase tenha sido modificada para “os comentários são livres, mas os fatos são caros”. Ele é categórico:
“Com a mudança da economia da coleta de fatos, encontram-se novos modelos de receita para muitas áreas do jornalismo –– esportes, negócios, diversão, interesses especiais de todo tipo ––, mas os editores ainda tentam descobrir como sustentar o caro negócio do noticiário internacional e do jornalismo investigativo. Enquanto isso, as sucursais no estrangeiro de respeitados jornais estão fechando como luzes de escritório que um zelador apaga em sua ronda noturna”.
Não se trata de uma visão apocalíptica, mas realista, já que ele contrabalança, em meio a todas essas mutações, riscos e oportunidades. Oportunidades: as novas tecnologias –– câmeras de vídeo, satélites e telefones celulares, gravadores de voz e scanners de documentos –– criam novas possibilidades de registro e debate da história corrente. É agora muito difícil sustentar uma mentira a longo prazo, no padrão, por exemplo, do que ocorreu em 1651, depois da morte do líder político-espiritual fundador do Butão, quando seus ministros “fingiram por não menos que 44 anos que o grande Shabdrung ainda estava vivo, embora em retiro silencioso, e continuaram a emitir ordens em seu nome”. Hoje, “um único videoclipe postado no YouTube pode acabar com as aspirações presidenciais de um político”.
Em contrapartida, multiplicam-se os riscos: com a notável facilidade digital de se produzir mentiras visuais, é cada vez mais difícil separar o joio do trigo, ou seja, o factóide do fato no novo “bios” virtual em que todos hoje se misturam, capitaneados pela mídia em sua acelerada fragmentação. Daí, a dúvida de Ash: “Eu trabalho tanto em universidades como em jornais. Dentro de dez anos, as universidades ainda serão universidades. Quem sabe o que será dos jornais?” A indagação se dirige evidentemente àqueles que “buscam fatos”, isto é, à consciência cívica preocupada com a história do presente.
Pulverização do fato
Esse tipo de preocupação ou de cuidado ético aplica-se não apenas à hipótese da mentira deliberada, mas à realidade da pulverização do fato no circuito das redes sociais e do “jornalismo de internet” de um modo geral, sob o influxo da ficcionalização da realidade. Se antes, em plena era do impresso, predominava em publicações semanais de luxo uma espécie de “jornalismo de butique” em que os fatos eram travestidos de retórica literária, hoje se consomem “átomos” de fato, que são despolitizantes, porque recalcam a argumentação coerente dos problemas sociais e impedem o aparecimento de uma narrativa completa sobre a vida pública, em favor do boato e do mexerico privado.
Não se precisa ir muito longe para saber do que estamos falando. A fragmentária informação disseminada sobre o governo da república é capaz de fornecer um claro exemplo dessa distorção histórica. As demissões de ministros e de quadros administrativos de elevados escalões originam-se em informações jornalísticas que mais parecem rumores do que fatos consistentes, já que têm origem em fontes de fraca evidência, uma espécie de off obscuro, cuja garantia de verossimilhança é um aparente consenso público quanto à generalização da corrupção ou então a força partidária no tabuleiro da governabilidade. Assim, um ministério pode sair isento da mesma factualidade criminalmente imputável que enlameou o outro. A realidade dos fatos submerge na retórica fragmentária da informação miúda, de puro impacto emocional.
Por outro lado, seriam mesmo aqueles os acontecimentos determinantes da queda do Ministro da Defesa? Uma colega é avaliada como “fraquinha”, outra como “desconhecedora de Brasília”, outros inominados, mas classificados como “idiotas”. Teriam a egolatria e a futrica, diminutos fragmentos informativos, tomado o lugar dos fatos pertinentes ao controle histórico do Estado? Pode ser que se trate apenas disso mesmo, uma reedição da conhecida “síndrome do lítio” de Ulisses Guimarães, mas então estaremos afundando não apenas na “pequena política” teorizada por Antonio Gramsci, mas na “pequeníssima política”, onde fragmento de fato e disse-me-disse, jornalismo de internet, assumem o primeiro plano da história do presente.
Tudo isso, triste e preocupante, nos diz que o “velho” jornalismo dos fatos é mais necessário do que nunca, por mais caro que seja. É que, como reflete Gramsci, “o velho mundo morre enquanto o novo tarda a aparecer. No claro-escuro perfilam os monstros”.
***
[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]
13/8/2011
Volta e meia a imprensa revive os fatores históricos que levaram à derrubada do muro de Berlim, na década de 1980, como se fosse uma das maiores vitórias do capitalismo. Geralmente, as mensagem a esse respeito deixa subliminar a ideia de que esse modelo econômico não é segregacionista, mas agregador, humano e democrático a ponto de ter vencido a divisão e a segregação impostas pelo modelo socialista adotado na Europa oriental por cerca de sete décadas.
Quando a imprensa faz isso, fico me perguntando: por que não mostra o tal do muro da Cisjordânia? Ora, paradoxalmente, o estado capitalista de Israel constoi um muro para segregacionar. O muro vem quebrando laços econômicos, sociais, familiares. O muro de anexação vem para demolir laços históricos. Alunos encontram dificuldades para ir às escolas e à universidade, comércios são arruinados pela queda no número de fregueses e dificuldade de fornecimento. O Muro da Cisjordânia é uma barreira física que está sendo construída pelo Estado de Israel, passando em torno e por dentro dos Territórios Palestinos Ocupados (Cisjordânia e Jerusalém Oriental). A análise está no livro:
Um muro na Palestina
por Daniel Lopes – Antes de mais nada, o conflito Israel-Palestina envolve uma “camuflagem semântica”. A definição é do jornalista francês René Backmann, redator-chefe e editor de Mundo da Nouvel Observateur, uma das melhores semanais do planeta. Através dessa camuflagem, Cisjordânia vira “Judéia e Samária”, as colônias israelenses lá e em Gaza são meros “assentamentos” e, exemplo ainda mais revelador, o braço do exército israelense nos territórios ocupados responsável por lidar com a população nativa vira “administração civil”.
*
O “muro de segurança” que começou a ser construído em 2002 é um outro exemplo do jogo de palavras. Seu traçado avança em vastas áreas da Cisjordânia, “protegendo” diversas colônias, muitas das quais nunca tiveram problema com terroristas e que, de qualquer forma, são construções ilegais de acordo com o direito internacional, localizadas muito além da Linha Verde estabelecida pela ONU para servir de fronteira entre os estados de Israel e Palestina. Um sério indício de que trata-se na verdade de um muro de anexação, são as terras constantemente “requisitadas” aos palestinos, grande parte agricultável, por motivos de “segurança nacional”.
O muro vem quebrando laços econômicos, sociais, familiares. René Backmann visitou Israel e a Cisjordânia, vilas palestinas e colônias israelenses, conversou longamente com autoridades dos dois lados e com grupos de defesa dos direitos humanos. Seu Un mur en Palestine é talvez o mais esclarecedor painel sobre a questão escrito até o momento. Foi publicado em 2006 e ganhou este ano uma edição revista e ampliada. Uma legítima peça de jornalismo in loco, e quase escrevo jornalismo com J maiúsculo, pra diferenciar esse livro corajoso, generoso, bem pesquisado, bem escrito, das informações relaxadas que a maioria da mídia ocidental passa ao público quando o assunto é Oriente Médio. Embora cubra vastamente os dois lados (é de dar inveja a rede de contatos que possui no establishment político-militar de Israel), em nenhum momento o autor se deixa enganar ou se emprega em enganar o leitor com falsas simetrias.
Aqui está Backmann em Jerusalém Oriental, constatando que o muro de anexação vem para demolir laços históricos. Em uma área palestina em que todos se visitavam e livremente iam e vinham – para fazer compras, ir ao colégio, ao médico, ao trabalho –, “De um dia para o outro, como por um cruel passe de mágica, o outro lado da rua, os vizinhos, os comerciantes, o horizonte, o sol nascente haviam deixado de existir, apagados pelo muro.”
Alunos encontram dificuldades para ir às escolas e à universidade, comércios são arruinados pela queda no número de fregueses e dificuldade de fornecimento. Em caso de urgência médica, o incrível sistema de check points estabelecido por Israel entre a população árabe muitas vezes representa a diferença entre viver e morrer. Relata o médico Adnan Anafeh:
Em caso de urgência ou complicação, deve-se fazer vir uma ambulância de Belém ou de Ramalah e ir até o hospital de Ramalah. Quer dizer, entrar em contato com as autoridades israelenses, obter as autorizações necessárias para atravessar os check points e transportar o paciente pelas ruas estreitas e sinuosas que contornam Jerusalém. Isso pode levar trinta e cinco minutos ou três horas. Sobretudo à noite. Em caso de hemorragia interna ou de ataque cardíaco, esse tempo perdido pode ser fatal para o doente. Você acha que os israelenses pensaram nisso?
Passemos desse caso hipotético de Jerusalém para um real da Cisjordânia. René Backmann relata:
Em fevereiro de 2004 – o incidente é comprovado por um documento da agência das nações unidas para o auxílio a refugiados palestinos –, uma criança de 2 anos, sofrendo forte febre e convulsões, não pôde ser transportada rapidamente ao hospital de Qalquiliya, a passagem de Ras-Atiya estando fechada. Seus pais e o médico que lhe acompanhava tiveram que fazer um retorno de mais de uma hora pelas vilas de Izbat Salman, Kafr Thulth e Azzun para poderem chegar a Qalqiliya, e a criança morreu no caminho.
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Helmut Konitzer, alemão que trabalha em comunidades cristãs de Jerusalém, observou a René que, quando os primeiros blocos gigantes do muro do Oriente Médio estavam sendo firmados, entre os dias 13 e 14 de agosto de 2002, faziam exatamente 41 anos que o primeiro tijolo do Muro de Berlim fora posto no chão. “Um detalhe”, escreve René, “a que sem dúvida ninguém prestou atenção, naquela noite, mas que não poderia escapar a um alemão.”
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Em um artigo de 1923, escreveu Vladimir Jabotinsky, pai ideológico do partido de direita Likud: “Nossa ação de imigração na Palestina deve portanto, ou acabar, ou continuar sem que nos detenhamos diante da posição dos árabes; de tal forma que nosso estabelecimento possa se desenvolver sob a tutela de uma força que não dependa da população local, ao abrigo de uma muralha de ferro a que essa população não poderá jamais fazer frente. Tal deve ser nossa política quanto à questão árabe.”
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As frequentes e longas incursões do muro de anexação Cisjordânia adentro isolam comunidades palestinas em verdadeiros bolsões, separados uns dos outros pelo muro ou por vias de acesso exclusivas para israelenses ou de passagem estritamente regulada. Muitas vezes, para visitar parentes ou fazer compras em outra área, os indivíduos são submetidos a uma burocracia tremenda, em que “coisas simples se tornam complicadas, gestos banais se tornam impossíveis”. Isso igualou o dia-a-dia dos palestinos ao que René Backmann define como um “quebra-cabeça kafkiano”. Segundo relatório da ONU de meados do ano passado, o número de palestinos nas “zonas fechadas” (termo diplomático dos bolsões) era de 35 mil na Cisjordânia, mais 250 mil em Jerusalém Oriental.
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Arnon Sofer, da Escola de Defesa Nacional do exército israelense, e especialista no “perigo demográfico árabe”, deu no início desta década uma palestra com planos para a construção de uma “cerca” para somar definitivamente a Israel as colônias mais populosas da Cisjordânia e bairros de maioria judaica de Jerusalém Oriental, incorporando assim, oficialmente, 400 mil colonos e garantindo o caráter judaico de Israel. Na plateia, Ariel Sharon, que assim que chegou ao posto de primeiro-ministro mandou chamar o Sr. Arnon a seu gabinete. Sharon estava de início reticente quanto à construção de um muro para conter ataques terroristas – por causa de sua oposição a qualquer atitude que pudesse ser vista por inimigos e aliados como um ato de fraqueza, puramente defensivo, e porque o projeto desagradava aos extremistas da direita religiosa e nacionalista, que temiam (e temem) que o muro seja um futuro impeditivo para uma maior expansão e o fim do sonho da “retomada” da Grande Israel.
Mas a comoção causada na opinião pública após ataques de palestinos contra israelenses (após rejeitarem a “generosa” oferta de Sharon para a construção de um estado palestino sobre 42% das terras da Cisjordânia) obrigou o primeiro-ministro a tomar medidas mais drásticas. O que começou em meados de 2001 como a execução de um plano de segurança que previa a criação de uma “zona se separação” entre israelenses e palestinos de “meros” 80 quilômetros, em abril de 2002 tomou contorno mais amplo, com a previsão de incorporar três grandes porções da Cisjordânia. Hoje, mais de 400 quilômetros de barreira foram erguidos (entre cerca convencional, de arame farpado e o muro propriamente), de um total planejado de mais de 700.
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Outro homem público que ajudou a convencer Sharon da construção do muro foi Abraham Dichter, à época deputado pelo Kadima, mesmo partido de Sharon. Para Dichter, “barreiras altas fazem bons vizinhos”.
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O estrategista Uzi Dayan conta que em 2002, quando recebeu ordem de Sharon para levar adiante a primeira fase da construção, propôs três “parâmetros” sobre os quais fundar sua ação, segundo ele logo aceitos pelo chefe: “Primeiro: eu deveria fornecer a melhor segurança possível aos israelenses. Segundo: eu deveria incluir a oeste da barreira o menor número possível de palestinos e o maior número possível de israelenses. Por fim, eu devia me esforçar para não perturbar a vida cotidiana dos palestinos.”
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Netzah Mashiah foi o engenheiro encarregado por Sharon de chefiar a esquipe responsável pelas construções. Saído das forças armadas, onde serviu por 23 anos, Mashiah esclarece que as terras “requisitadas” aos palestinos por Israel “por motivos de segurança” e sobre as quais o muro passará, “não significa que nós nos tornamos proprietários das terras. Nos as reteremos apenas enquanto durar a missão a que a barreira se destina: fazer desaparecer o terrorismo. Partimos do princípio de que essa barreira é provisória. E que a duração de sua existência dependerá da maneira com que os palestinos caminharão rumo à paz. Ela pode durar tanto cinco minutos como cinco décadas.”
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David Grossman – aliás autor de um excelente livro de campo sobre as animosidades reais e imaginárias entre israelenses e palestinos, The yellow wind – escreveu em 2004 no Le Monde: “Ser forte e se perceber fraco é uma imensa tentação. Nós [israelenses] temos dezenas de bombas atômicas, tanques, aviões. Enfrentamos gente desprovida de todas essas armas. No entanto, permanecemos mentalmente como as vítimas. Essa incapacidade de nos vermos tal como somos em nossa relação com o outro constitui nossa principal fraqueza.”
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Ron Nachman, administrador da colônia de Ariel, uma das maiores (e bem adentrada na Cisjordânia), disse a Backmann que apenas o argumento da segurança dos israelenses não convenceu completamente Sharon da construção do muro. Apenas após ver os mapas do general Uzi Dayan, com as maiores colônias da Cisjordânia definitivamente incorporadas – colônias ocupando áreas com grande reserva de água e absolutamente fundamentais para um estado palestino viável –, apenas então o primeiro-ministro deu apoio total. Tal incorporação vai contra as resolução das Nações Unidas, União Europeia e mesmo (teoricamente) dos EUA.
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Com Ruthie Kedar, uma israelense que trabalha em uma organização de defesa dos direitos dos palestinos nos territórios ocupados, René escuta a opinião do intérprete Rafik Mrabe: “É verdade, podemos dizer que tudo é feito para romper os laços sociais. Eu tenho uma irmã em Habla, a 3 quilômetros, uma outra em Ras-Atiya, ainda mais perto. Não as vejo há mais de três meses. Temos apenas um meio pra se comunicar, o telefone. E tudo por razões que não têm nada a ver com a luta contra o terrorismo ou com a segurança dos israelenses. Essa é a grande mentira dessa questão.”
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A “administração civil” – ou seja, o setor militar que supervisiona o movimento dos palestinos – costuma fugir de qualquer explicação ou responsabilidade pela vida penosa dos que estão sob sua sombra com o mantra “questão de segurança”. Assim, quando moradores perguntaram certa vez a soldados israelenses o que iriam fazer com as 8 mil oliveiras que haviam acabado de desenraizar, eles retrucaram que não poderiam informar, porque se tratava de uma questão de segurança nacional.
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O muro não apenas separa terrivelmente palestinos de palestinos, mas também comunidades israelenses e palestinas que tinham historicamente boas relações. É o caso do kibutz Metzer, formado em grande parte por exilados judeus das ditaduras latino-americanas do século passado, e as vilas árabes de Qaffin e Meisar. Antes do muro, crianças de uma localidade e outra se visitavam, e, em períodos de festividades locais, todos comemoravam juntos. Nos anos 70, Meisar e Metzer tinham uma equipe de futebol comum, inscrita na federação israelense. Inconscientemente, o muro do século 21 pôs fim a essas boas relações – para quem acredita em processos inconscientes quando se trata dos efeitos da construção desse muro.
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Michael Sfard, jovem advogado israelense que representa palestinos e esteve entre o grupo de 450 reservistas que em 2002 se recusaram a servir nos territórios ocupados, desabafa: “Eu cresci num país em que os governos de direita como de esquerda permitiram e deram apoio à colonização dos territórios palestinos. E por essa ocupação, por essa colonização, Israel paga um preço moral muito alto. Nosso código ético está degradado. Mesmo nossa cultura foi tocada. Fundado sobre os valores do humanismo, do pluralismo, da democracia, o estado de Israel ao qual me sinto ligado não existe mais. Sim, é fato, hoje em dia eu tenho um problema com minha identidade israelense. Por quê? Porque tudo isso que se faz hoje em dia do outro lado da Linha Verde – o desenvolvimento da colonização, as demolições de casas, a construção do muro, os bloqueios, as prisões, as humilhações, as execuções dirigidas –, se faz em meu nome.”
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Um dos principais objetivos das anexações de terra de 1967 em diante, confirmam diversos oficiais israelenses, foi a separação de Jerusalém da Cisjordânia – “O objetivo real sendo tornar impossível qualquer divisão futura de Jerusalém”, diz o coronel Shaul Arieli.
Para a política defendida por estrategistas como Menahem Klein e o ex-primeiro-ministro Sharon, que não quer que Israel expulse os palestinos de Jerusalém, apenas que os controle pela força de uma maioria judaica, René Backmann cunhou o termo destinado a se tornar definitivo: spartheid.
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Ron Nachman, da colônia de Ariel, vigia-se para não cair nunca na armadilha do inimigo, de chamar a Cisjordânia, Cisjordânia e os palestinos, palestinos. Usa sempre os respectivos termos Judéia e Samária e árabes.
Nachman é um dos maiores entusiastas da colonização de terras palestinas por Israel. Colonização em massa, não a criação de comunidades muito espalhadas e parcamente habitadas – segundo ele, uma fraqueza e uma falha estratégica. “Você acha que o [Monte] Sinai teria sido evacuado há um quarto de século [após acordos entre Egito e Israel com o fim da disputa territorial iniciada com a guerra de 1967] se Israel tivesse construído duas ou três vilas de 15 mil habitantes? E você acha que em 2005 Sharon teria feito evacuar Gaza se, ao invés de vinte implantações somando 8.000 pessoas, houvesse em Goush Katif uma cidade de 80.000 habitantes?”
Mais adiante, o mesmo colono, com a mesma franqueza: “(…) eu observei de perto a reação dos israelenses aos atentados suicidas. E concluí uma coisa simples: os israelenses querem a separação. Eles não querem estar misturados com os árabes. Eles não querem nem mesmo lhes ver. Você poderá dizer que isso é racismo. É possível, mas é assim que as coisas são.”
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“O que querem os israelenses? Um sistema de apartheid que não dirá seu verdadeiro nome?”, pergunta Saeb Erekat, deputado palestino de Jericó, ao abordar René sobre o sistema de estradas instituído por Israel na Cisjordânia, com vias exclusivas para israelenses e interditadas aos palestinos. Completa: “Você conhece um só outro lugar no mundo onde existam duas redes viárias distintas, numa mesma terra, para dois povos?”
::: Un mur en Palestine ::: René Backmann ::: Folio/Gallimard, 2009, 330 páginas :::
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LEIA TAMBÉM:
::: Palestine: Peace not apartheid ::: Jimmy Carter ::: Simon & Schuster, 2007, 288 páginas :::
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::: The yellow wind ::: David Grossman ::: St. Martins Press, 2002, 232 páginas :::
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11/8/2011
DESEQUILÍBRIO DE PODERES
Nos EUA, a fusão entre imprensa, poder e dinheiro
No Reino Unido, o escândalo criado pelo grupo de Rupert Murdoch revelou as destrutivas ligações entre jornalismo, polícia e política. Nos EUA, o papel do complexo midiático-financeiro cresceu ainda mais depois que uma decisão da Suprema Corte fez explodir o gasto corporativo nas campanhas eleitorais
por Robert W. Mcchesnet
Ás vésperas das eleições de meio de mandato de novembro de 2010, Karl Rove, lobista e antigo estrategista de George W. Bush na Casa Branca, tentava dissimular o essencial seguindo à risca a recomendação do mágico de Oz (“não preste atenção no homem atrás da cortina”). Enquanto o presidente Barack Obama acusava os republicanos de jogo sujo por injetar milhões de dólares oriundos de transnacionais e bilionários conservadores em seus candidatos, o ex-conselheiro declarava aos jornalistas: “Obama parece completamente perdido ao falar de forma tão obsessiva da Câmara de Comércio, de Ed Gillespie1 e de mim mesmo. O presidente já desperdiçou uma das quatro semanas da campanha eleitoral falando apenas nessa bobagem”.2
A “bobagem” a qual se refere Rove foi, no entanto, um elemento crucial nas eleições de meio de mandato – a mais cara da história dos Estados Unidos. Transformada num grande investimento financeiro da direita,3 a vida política foi capturada por uma casta financeira e midiática muito mais poderosa do que qualquer partido ou candidato. Não se trata apenas de um novo capítulo do interminável romance entre dinheiro e poder, mas da redefinição da própria política pela conjunção de dois fatores: o aumento vertiginoso de doações eleitorais feitas por empresas e a omissão da mídia em examinar as finanças das campanhas. Nesse novo sistema, um pequeno círculo de conselheiros mobiliza somas exorbitantes para orientar os votos em função de seus clientes, enquanto a imprensa renuncia à tarefa de fiscalização – no ano passado, por exemplo, os canais comerciais de televisão nos Estados Unidos abocanharam US$ 3 milhões apenas com propaganda política. Esse “complexo eleitoral capital–mídia” cria uma força quase imbatível, alheia a qualquer forma de regulação e obrigação ética.
Em 2010, dos 54 distritos eleitorais em que Rove e seus aliados injetaram financiamentos “independentes” nos candidatos republicanos à Câmara – valores muito superiores aos que receberam os rivais democratas –, os conservadores ganharam em 51. Cerca de três quartos dos republicanos eleitos no ano passado – alguns totalmente desconhecidos até serem desenterrados pelos dólares – são de distritos em que o dinheiro da Câmara de Comércio ou da American Crossroads (o clube de Rove) corre solto.
Um dólar, um voto
O poder político do dinheiro ganha força à medida que diminui a atuação de jornalistas independentes e críticos. Em outros tempos, o compasso de uma campanha eleitoral era marcado por uma imprensa que tentava, com mais ou menos sucesso, fornecer elementos para o leitor avaliar os cenários criticamente. Hoje, são os anúncios publicitários que ocupam esse lugar. Se os canais de televisão sempre desempenham o papel de maestros da orquestra, a partitura que interpretam é composta e financiada pelas elites econômicas – cujo objetivo não é apenas orientar o resultado dos pleitos, mas também modelar a aparência e a política do próprio governo. Negligenciar a aglutinação do capital e dos meios de comunicação, ou pior, imaginar que as forças progressistas não podem superá-la, pode contribuir para ampliar o fenômeno nas eleições presidenciais de 2012.
A sentença da Suprema Corte em relação à causa que opunha a associação conservadora Citizens United à Comissão Eleitoral Federal, proferida em 21 de janeiro de 2010, teve importância fundamental nesse processo. Ao dar ganho aos conservadores – que reivindicavam o direito de difundir um filme publicitário contra Hillary Clinton sob o argumento da “liberdade de expressão” –, os juízes desmantelaram um século da regulamentação que até então proibia grandes grupos privados de usar recursos financeiros para pesar os políticos na balança. Com a abertura do precedente, pessoas jurídicas (associações, sindicatos, empresas privadas etc.) passaram a beneficiar-se do mesmo direito: mobilizar os meios que desejarem para produzir e difundir filmes e propaganda de caráter político.
A decisão da Suprema Corte provocou reações imediatas. Obama a considerou “uma grande vitória para as transnacionais do petróleo, os bancos de Wall Street, as empresas de planos de saúde e muitos outros grupos de interesses privados que, todos os dias, mobilizam suas forças em Washington para calar a voz do povo norte-americano”.4 De acordo com o fundador do Instituto Nacional dos Direitos do Eleitor (National Voting Rights Institute), John Bonifaz, a possibilidade de as corporações usarem seu capital para expressar opiniões políticas sem qualquer tipo de regulamentação transformará esses setores privados em “proprietários efetivos de nossa democracia”.
Os meios empresariais não perderam tempo em se aproveitar da brecha. “Os primeiros setores a investir no campo do jogo eleitoral foram a indústria de serviços financeiros, a indústria de energia e as seguradoras privadas”,5 reconhece Scott Reed, o veterano dos consultores republicanos. Seu clube de lobbying, a Comissão da Esperança, do Crescimento e da Oportunidade, investiu dezenas de milhões de dólares para comprar espaços publicitários de programas televisivos hostis aos democratas em estados estratégicos. Segundo a associação Media Matters Action Network, contudo, o tesouro de guerra de Reed representa apenas algumas migalhas do total de financiamentos privados: em outubro de 2010, um mês antes do maremoto eleitoral republicano, mais de sessenta grupos de lobby já tinham desembolsado US$ 4 bilhões para difundir 150 mil anúncios publicitários e assegurar o envio de inúmeros folhetos de propaganda aos eleitores por correio. Esse abuso ultrapassa os gastos das campanhas nas eleições de 2004, durante as quais houve votação presidencial além das consultas legislativas habituais (Câmara de Representantes e Senado).
Os democratas, por sua vez, apressaram-se para entrar no jogo e levantar o máximo de fundos junto às transnacionais. Mas o páreo era muito desfavorável. Segundo o Centro pelos Meios de Comunicação e a Democracia, que estuda as relações de cumplicidade entre o meio empresarial e o político, “em 2010, as contribuições injetadas pelos grupos de interesses foram pelo menos cinco vezes superiores às das eleições anteriores, e os grupos pró-republicanos reuniram sete vezes mais fundos que os rivais pró-democratas”.
De certa maneira, essa história é tão antiga quanto a própria nação estadunidense. “Os donos do país querem também governá-lo”,6 observou há dois séculos John Jay, um dos pais fundadores da Constituição. A tentativa de derrubar o sistema político fundado no princípio “uma pessoa, uma voz” – e não “um dólar, uma voz” – percorre toda a história dos Estados Unidos. “Nesse país, podemos ter a democracia ou uma imensa riqueza concentrada nas mãos de uma minoria ínfima, mas os dois não são conciliáveis”, avaliava Louis Brandeis, juiz da Suprema Corte, antes da 2ª Guerra Mundial.
Democracia ou plutocracia, essas são as opções. O “complexo capital-mídia” consolidou a paisagem eleitoral mais restrita desde o século XIX.7 Especialistas já diagnosticavam um “refluxo de entusiasmo” desde as últimas eleições. Qual a surpresa? Os cidadãos entenderam que as doações pessoais, e até mesmo as cédulas de voto, não podem fazer frente à avalanche de US$ 4 bilhões. Assim, os que manipulam o sistema se aproveitam do cinismo e da apatia dos eleitores: quanto mais rápido for virada a página da participação recorde dos jovens nas eleições de 2008 – 51% com menos de 30 anos compareceram às urnas (contra 49% em 2004 e 40% em 2000) –, melhor para eles, pois nada beneficia mais esses setores do que o declínio da vida cívica e a despolitização, cenário propício às operações do setor privado para dominar o Estado.
Para os candidatos, a alternativa é simples: submeter-se ao novo complexo eleitoral-midiático-financeiro ou correr em direção à derrota. Não surpreende, portanto, que os candidatos íntegros ou hostis à corrupção tenham sido derrotados nas eleições de novembro de 2010, como o senador do Wisconsin, Russel Feingold, figura da ala progressista do Partido Democrata e pioneiro das leis de regulamentação de gastos eleitorais; ou o representante do Delaware, Mike Castle, um moderado do Partido Republicano eliminado nas primárias pela heroína do Tea Party, Christine O’Donnell. O panorama não será diferente no ano que vem: “Fincamos nossa bandeira e temos certeza de que seremos ainda maiores em 2012”,8 proclama Robert Duncan, presidente da American Crossroads.
As transnacionais e seus consultores dispõem de um aliado decisivo: a indústria da televisão. No ano passado, esse meio de comunicação viveu a temporada eleitoral mais lucrativa de sua história, graças à nova fonte de renda: a publicidade política. Cerca de dois terços das somas abocanhadas na campanha eleitoral de 2010 foram para as emissoras. Nos anos 1990, os comerciais políticos representavam 3% da renda publicitária de um canal comercial; hoje, essa proporção subiu para 20%. E as estatais também se aproveitam: de acordo com o Los Angeles Times, a tarifa de um comercial local de 30 segundos passou de US$ 2 mil em 2008 para US$ 5 mil em 2010.
Permissão para mentir
Os canais comerciais são beneficiados pela concessão gratuita oferecida pelo Estado, em troca do dever de “servir ao interesse público” – por exemplo, informar e esclarecer o eleitor. Porém, a qualidade da cobertura televisiva das campanhas eleitorais não parou de cair nos últimos trinta anos. De acordo com o Centro de Estudos Norman Lear, da Universidade da Califórnia do Sul, 30 minutos de programas televisivos em período eleitoral contêm mais propagandas de candidatos que informação política.9 “Informação” também parece ganhar outro sentido, já que os jornalistas se limitam cada vez mais a simplesmente comentar as propagandas dos candidatos.
Longe de ser característica exclusiva da televisão comercial, o declínio do jornalismo político atinge também a imprensa escrita. Os meios independentes agonizam10 e jornais fecham suas portas e deixam dezenas de milhares de jornalistas e funcionários de comunicação desempregados – um terço dos jornalistas profissionais estadunidenses foi demitido nos últimos dez anos, sendo 11 mil apenas de três anos para cá.11 Os diários que sobrevivem não podem mais sustentar uma rede de correspondentes pelo país, nem mesmo manter uma sucursal em Washington. Certamente, os novos sites de informação na internet prestam um valioso serviço, mas são insuficientes para preencher o vazio e incapazes de empreender pesquisas e investigações de fôlego em função do modelo econômico estabelecido.
As transformações que afetam o financiamento e o tratamento midiático das campanhas eleitorais têm efeito devastador na política estadunidense em geral. Se, por um lado, muitas teorias buscam explicar a derrota do setor progressista em 2010, por outro, subestimam o papel da aglutinação do capital e dos meios de comunicação no jogo eleitoral.
Elucidar o funcionamento desse sistema é de fundamental importância, ao menos para compartilhar a ideia de que os democratas poderiam recobrar o ânimo se buscassem doadores tão generosos quanto os bilionários de Rove. Mas o preço de beneficiar-se do complexo midiático-financeiro é a alma: um projeto verdadeiramente progressista não tem nenhuma chance de ganhar a corrida pelos dólares. (ver box)
Rove, Reed e seus afiliados – entre os quais estão o chefe dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, e seu homólogo na Câmara dos Representantes, John Boehner – clamam que o dinheiro estimula a democracia e a publicidade política “educa o público”. Essas intervenções orwellianas aparecem como argumentos nas causas conservadoras levadas à Suprema Corte– desde o caso Buckley contra Valeo, em 1976,12 até a decisão de janeiro de 2010. Nos Estados Unidos, doar o próprio dinheiro para fins políticos é uma forma de liberdade de expressão (“dinheiro é discurso livre”).
O conselho dado aos candidatos não varia: é preciso alavancar fundos e mais fundos, e cuidar-se para não dizer nada que desagrade aos doadores. Essa visão da política impregnou o pouco que resta da imprensa: os meios de comunicação preferem falar do dinheiro arrecadado pelos candidatos, seus partidos e grupos de interesse, do que discutir o balanço ou o programa político dos já eleitos e candidatos. Transformar comerciais eleitorais em fonte de informação política faz com que o debate se apoie em verdades parciais isoladas de seus contextos.
Por exemplo, Shanon Angle, em pé, de frente para a câmera, explica que seu adversário democrata no estado de Nevada, o senador Harry Reid, “votou pela utilização dos impostos dos cidadãos para financiar o Viagra, as pessoas que batem em seus filhos e os agressores sexuais”. Em publicidade “aprovada” por David Vitter (candidato republicano ao cargo de senador de Louisiana), Charles Melancon, democrata em fim de mandato, é acusado de favorecer a imigração ilegal e impedir a polícia de prender os clandestinos. As imagens reforçam o objetivo: a grade na fronteira entre México e Estados Unidos está perfurada. Abaixo do buraco, pisca um letreiro luminoso: “Entre aqui”. Mexicanos se amontoam e atravessam o alambrado para o solo estadunidense, onde são acolhidos com uma fanfarra e fogos de artifício. Os partidários de Melancon lhe dão um imenso cheque em benefício de “todos os estrangeiros clandestinos”, cujo montante equivale a “uma grande parte dos impostos dos contribuintes”. E a Luisiana nem faz fronteira com o México…
As publicidades eleitorais têm o direito de mentir abertamente, contrariamente aos anúncios comerciais. Há trinta anos, Robert Spero, então diretor da agência publicitária Ogilvy & Mathers, justificava essa exceção sob o argumento de que obrigar os candidatos a responder pelos mesmos critérios usados para os vendedores de sabão em pó faria com que as publicidades eleitorais fossem condenadas como fraudulentas pela Comissão Federal do Comércio.
Recusa ao debate
Na campanha eleitoral de novembro passado, muitos candidatos que compraram o acesso ao público decidiram eximir-se das solicitações de entrevistas por parte da mídia, como a republicana Angle, ou recusaram comparecer em debates cara a cara com seus adversários. Houve um tempo em que os candidatos batalhavam para enfrentar pessoalmente e publicamente os detentores dos cargos pelos quais estavam concorrendo. Agora, ao contrário, são os que estão no fim do mandato, como Alan Grayson, representante da Flórida, que correm atrás dos candidatos dotados de recursos. Quando o senador Feingold, do Wisconsin, propôs uma série de debates políticos a Ron Johnson, seu rival republicano, o milionário recusou com desprezo o convite do adversário – da mesma forma que declinou os pedidos de entrevista – apesar de ser desconhecido pelo público.
Johnson julgou mais prudente deixar a Câmara de Comércio, a Rede de Ação Americana e outras organizações falarem em seu lugar, enquanto bombardeava os eleitores com publicidades hostis a Feingold. Quando finalmente ele aceitou participar de um fórum concebido pelo prime time da televisão, muitas emissoras locais recusaram-se a transmitir o encontro ao vivo. Ed Garvey, candidato derrotado ao cargo de governador do Wisconsin, conta que zapeou os canais a cabo com a esperança de ver o debate tão esperado. Não encontrou nada e decidiu telefonar para uma emissora local, que o aconselhou a procurar informações na internet. “Na condição de cidadão, minha única alternativa foi assistir às publicidades. A televisão não forneceu nenhuma informação digna de nota, embora tenha como dever servir ao interesse público”, avaliou.
Esse exemplo ilustra o que deveria constituir o ponto de partida da ofensiva contra o complexo capital-mídia: apontar a responsabilidade dos grandes meios de comunicação e seus acionários. Se a liberdade de imprensa está inscrita na Constituição, cabe às agências de regulação zelar pela salvaguarda dos interesses públicos. A Comissão Federal das Comunicações e a Comissão Eleitoral Federal (FEC) devem estabelecer quanto dinheiro pode ser gasto e com que fim, além de determinar se os canais de televisão – que arrecadam fortunas ao transmitir comerciais eleitorais – respondem aos critérios de interesse público com os quais seus proprietários se comprometeram ao ganhar a concessão.
Se as comissões de pesquisa do Senado e da Câmara dos Representantes submetessem o complexo eleitoral capital-mídia a auditorias públicas, Pete DeFazio, representante democrata, teria muito a dizer. Em 2010, esse franco atirador foi alvo de uma campanha publicitária implacável orquestrada por um adversário obscuro e um grupo de pressão desconhecido. Ele contra-atacou convidando uma equipe de filmagem a visitar a luxuosa residência de Washington em que esse grupo estava sediado. Descobriu-se, então, que o chefe da campanha era uma empresa de investimentos especializada em hedge funds incomodada com o engajamento do parlamentar democrata em reivindicar o dever dos especuladores de Wall Street a prestar contas sobre suas transações.
BOX
Propostas muito radicais?
Para controlar a influência do dinheiro sobre as campanhas eleitorais e a vida política, não faltam soluções. A Comissão Federal das Comunicações (FCC, em inglês) poderia exigir que os canais de televisão garantissem o direito de resposta a todos os candidatos alvo de publicidades políticas. Se um candidato pode inundar os comerciais televisivos para glorificar-se, cada um de seus concorrentes deveria dispor da mesma vantagem. Assim, os candidatos mais abastados seriam obrigados a debater e responder questionamentos, em vez de apenas massacrar os rivais. A onda publicitária fluiria a partir do momento em que pudesse ser aproveitada por todos, em vez de assegurar a dominação dos mais ricos. O refluxo permitiria também que os jornalistas consagrassem mais tempo à campanha propriamente dita. Os canais deveriam, igualmente, chegar a um acordo sobre a distribuição igualitária do tempo de antena entre os candidatos e transmitir os debates. Essas propostas soam radicais? A maior parte delas retoma a versão original do que seria a lei McCain-Feingold, de 2002.
Para tentar remediar a decisão da Suprema Corte no caso “Citizens United” (ver artigo na página 5), o projeto de lei apresentado pelo democrata Alan Grayson, judicialmente batizado Que as empresas cuidem de seus negócios”, avança na ideia de estipular uma taxa de 500% sobre os investimentos feitos por empresas em benefício de seus partidos ou candidatos preferidos. Grayson propõe também exigir de cada empresa que declare todas as despesas destinadas a outros fins que não sejam diretamente ligados aos bens ou serviços de sua competência. Finalmente, ele recomenda uma restrição nas doações efetuadas por empresas privadas que se beneficiam de contratos públicos. É compreensível a razão pela qual os lobbies investiram US$ 1,2 milhão na violenta campanha publicitária contra o parlamentar da Flórida.
A única alternativa para neutralizar com eficácia o julgamento da Suprema Corte seria fazer uma emenda na Constituição. Nesse ponto, pouco importa a estratégia para alcançá-la, mas Barack Obama e seus aliados teriam que evidenciar a crescente influência do complexo midiático-financeiro na política norte-americana. E não adiantaria murmurar alguns comentários tímidos sobre a contribuição de transnacionais: seria preciso gritar alto e em bom tom que a democracia está em perigo. O presidente Dwight Eisenhower o fez em sua época em relação ao complexo militar-industrial. “Não devemos jamais deixar o peso dessa aliança ameaçar nossas liberdades ou nossos processos democráticos”, bradou (ao sair da Casa Branca, é verdade..). (J.N. e R.W.M.)
(*) Robert W. Mcchesnet
Professor de comunicação na Universidade de Ilinois, em Urbana-Champaign.
1 Antigo conselheiro de George W. Bush, Gillespie também é fundador de um lobby.
2 Karl Rove “I am no threat to democracy” [Não sou uma ameaça para a democracia], The Wall Street Journal, Nova York, 14 de outubro de 2010.
3 O Partido Republicano levou representantes a 239 das 427 cadeiras da Câmara, ou seja, 61 candidatos a mais do que nas eleições anteriores.
4 C omunicado de Barack Obama, Serviço de Imprensa da Casa Branca, Washington, 21 de janeiro de 2010.
5 C itado em Peter H. Stone, “Campaign cash: The independent fundraising gold rush since ‘Citizens United’ ruling” [“Dinheiro de campanha: A corrida dourada pelo levantamento de fundos independentes desde o mandato da ‘Citizens United’”], Centro pela Integridade Pública, Washington, outubro de 2010.
6 Trata-se de uma de suas máximas preferidas. Ver William Jay. Life of John Jay [A vida de John Jay]. Nova York: J & J Harper, 1833.
7 V er Howard Zinn, “Au temps des ‘barons voleurs’” [Na época dos barões ladrões], Le Monde diplomatique (França), setembro de 2002.
8 Jim Rutenberg, “Conservative donor groups lay a base for 2012 elections” [“Grupos de doadores conservadores estabelecem as bases para as eleições de 2012”], The New York Times, 31 de outubro de 2010.
9 M artin Kaplan e Matthew Hale, “Local TV in the Los Angeles media market: Are stations serving the public interest?” [“TVs locais no mercado da mídia de Los Angeles: as emissões servem ao interesse público?”], Norman Lear Center e Universidade da Carolina do Sul, Escola Annenberg para as Comunicações e o Jornalismo, 11 de março de 2010.
10 V er John Nichols e Robert W. McChesnay, “The Death and Life of Great American Newspapers” [A vida e a morte de grandes jornais norte-americanos], The Nation, Nova York, 6 de abril de 2009.
11 L er Rodney Benson, “Trahison au Huffington Post” [Traição em Huffington Post], Le Monde diplomatique (França), maio de 2011.
12 A sentença do caso Valeo versus Buckley, proferida por unanimidade na Suprema Corte no dia 30 de janeiro de 1976, anulou o limite da maioria dos gastos eleitorais permitidos pelo Congresso e pelo presidente.
Palavras chave: Poder, dinheiro, imprensa, midía, EUA, inglaterra, conglomerados, eleições, financiamento, corporações
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ALTERNATIVAS
Mídia e democracia na América Latina
Os meios de comunicação desempenham papel fundamental na construção de sentido social: é a partir deles que construímos a ideia de bem-estar e progresso, realizamos intercâmbio de sentido. Os meios de comunicação não nos dizem o que fazer, mas apontam caminhos – por isso constituem um campo de disputa social e política
por Maria Pía Matta
A desigualdade ainda é o problema crucial da América Latina. Mesmo quando os indicadores oficiais marcam índices positivos e crescentes de renda per capita, a desigualdade entre o setor mais rico e o mais pobre da população aumenta e se expressa na má distribuição da renda, na iniquidade e na exclusão. Essa situação recrudesceu nos anos 1990 e, na média, permanece invariável na década atual. As políticas públicas para enfrentar a desigualdade na região deveriam considerar e incentivar a participação da sociedade civil. Combater esse problema depende também da capacidade dos Estados – para além de sua legitimidade democrática – de promover inclusão e distribuição das riquezas.
Num cenário como esse, é fundamental analisar a repercussão da liberalização e concentração econômica dos meios de comunicação sobre a liberdade de expressão cidadã, e o obstáculo que esses processos representam para o desenvolvimento do terceiro setor das comunicações.
De acordo com o sociólogo Armand Mattelart, os processos atuais de concentração e monopólio dos meios de comunicação são determinados pela incorporação do capital financeiro, gestão empresarial, poder dos acionistas e integração das indústrias das telecomunicações com os meios e a cultura. Essa integração de caráter horizontal, vertical e multimídia constituiu polos regionais e nacionais das indústrias da cultura e da comunicação. As políticas estatais favorecem a construção de grandes grupos nacionais de comunicação (Clarín, Televisa, Globo) capazes de rivalizar com outros gigantes do mercado global e se inserir em outros âmbitos financeiros.
A lógica da concentração
A mesma lógica de concentração atinge todos os setores: discográfico, editorial, impresso, radiofônico, televisivo. Esse cenário se configurou no final dos anos 80, e um dos marcos foi o ano de 1998, quando o processo de liberalização das telecomunicações se generalizou a partir dos acordos da Organização Mundial do Comércio.
Nesse contexto, as rádios comunitárias travaram longa e decidida batalha contra a desigualdade no acesso aos meios (frequências de rádio e TV) e pelo direito à comunicação. A Associação Mundial de Rádios Comunitárias (Amarc) trabalhou na formulação de quatorze princípios por uma radiodifusão democrática (http://legislaciones.amarc.org), que buscam o reconhecimento dos meios comunitários e o fomento à pluralidade e à diversidade no sistema dos meios de comunicação.
São centenas de rádios que compartilham a missão de democratizar as comunicações, e nas quais organizações da sociedade civil exercem papel fundamental com princípios e gestão que não visam lucro nem proselitismo político ou religioso. São meios que representam os interesses da comunidade onde estão inseridos, seja uma pequena localidade ou um amplo setor social. Podem trabalhar com alta ou baixa potência, com voluntariado ou trabalhadores contratados. Têm como missão centrar a comunicação em questões sociais, ressignificar o trabalho comunicacional e contribuir para remover a inércia do sistema de comunicação atual. A propriedade coletiva e não lucrativa ocupa o centro dos debates que questionam o viés mercantil dos grandes meios de comunicação.
Os meios de comunicação desempenham papel fundamental na construção de sentido social: é a partir deles que construímos a ideia de bem-estar e progresso, realizamos intercâmbio de sentido. É também nesses espaços que se concretiza a visão e representação das relações sociais, e é construída a ideia de sujeito e de desenvolvimento democrático. Os meios de comunicação não nos dizem o que fazer, mas apontam caminhos – e por isso constituem um campo de disputa social e política.
Na estrutura atual do sistema de meios de comunicação, a indústria formou consórcios que privilegiam o lucro em detrimento do serviço, e instituiu uma forte padronização de formatos e lógicas uniformes na produção de conteúdos de entretenimento e informação. Nesse sentido, Catalina Botero, relatora sobre liberdade de expressão na Corte Interamericana de Direitos Humanos, afirma que o guarda-chuva da liberdade de expressão aumentou, pois hoje não se deve proteger apenas a liberdade individual dos emissores (os “donos dos meios”), mas toda a cidadania.
A Amarc defende que a regulação das concessões e frequências de rádio e TV seja indicadora para analisar e valorar a situação de liberdade de expressão – tema cuja relevância tem crescido na agenda regional. No relatório de 2009 da Relatoria de Liberdade de Expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, foi incluído um capítulo sobre radiodifusão e liberdade de expressão. Em 2010, o relatório estabeleceu critérios de liberdade de expressão para uma radiodifusão livre e inclusiva. No âmbito mundial, a Relatoria Especial para a Liberdade de Opinião e Expressão da ONU incorporou o tema no segundo relatório apresentado ao Conselho de Direitos Humanos.
Existem avanços legislativos referentes às rádios comunitárias em alguns países da região, porém via de regra os sistemas regulatórios de rádio e TV violam a liberdade de expressão ao permitir práticas arbitrárias e discriminatórias na adjudicação de frequências. O resultado é a concentração da propriedade dos meios de comunicação sem qualquer limite ou contrapartida, e a imposição de barreiras ao acesso a esses meios por organizações sociais. Sem acesso equitativo, vários segmentos da população deparam-se com limitações técnicas e econômicas que impedem o desenvolvimento de atividades comunicacionais e, em última análise, silenciam vozes dissidentes.
O último ano se caracterizou por intensos debates sobre projetos de lei ou leis aprovadas relativos à radiodifusão e aos serviços de comunicação audiovisual. Atualmente, a disputa pelo poder político passa necessariamente pela repartição do espectro eletromagnético utilizado no gerenciamento das agendas informativas.
Direito à comunicação e à expressão
No processo de afirmação dos direitos à comunicação como parte dos direitos humanos, a ciência jurídica realizou uma síntese que considera a liberdade de expressão um direito de mão dupla: individual e social. Implica o direito a difundir informação e o direito dos demais cidadãos em recebê-la sem qualquer discriminação ou censura. Não se trata de um direito declamatório, e sim de contar com os meios técnicos para seu exercício. Supõe uma dimensão do direito individual e coletivo que obriga o Estado a promovê-lo – justamente porque se trata de um direito que possibilita a deliberação pública, a expressão das diferenças e o questionamento da aparente neutralidade. A conquista desse direito coloca à disposição da sociedade discursos que expressam a assimetria dos poderes existentes e permite a aparição de novas formas de deliberação como parte da vida em democracia.
Isso não significa tornar o consenso impraticável, nem legitimar a desigualdade em nome da diversidade. Trata-se de reconhecer a heterogeneidade na representação e entendimento dos assuntos públicos como um valor positivo. A Convenção Interamericana assinala no artigo 13º as condições que conferem o estatuto de direito à liberdade de expressão: pesquisar, receber e difundir informação por qualquer meio. Desses critérios, derivam dois princípios de universalidade: a universalidade dos sujeitos, e a dos suportes. O Estado tem mais obrigações que a mera abstenção da censura. Para cumprir obrigações de direitos humanos, o Estado não pode estabelecer mecanismos de restrição indireta, como o abuso de controle sobre o papel para periódicos ou sobre as frequências de rádio e TV. Não importa o suporte, o que importa é a proteção do direito à expressão livre.
Por oposição, outra doutrina afirma que o único papel do Estado na radiodifusão é ordenar as emissões como um código de trânsito, ou seja, impedir que as emissoras se choquem. Mas diversas declarações de organismos internacionais de defesa da liberdade de expressão apoiam a regulação como ferramenta de promoção da diversidade e pluralismo de vozes. Em 2007, a relatoria de liberdade de expressão da ONU recomenda aos Estados legislar a favor da existência de três setores de radiodifusão: privado, público e comunitário sem fins lucrativos.
A cidadania e a luta pela liberdade
A luta pela liberdade de expressão está presente há muito tempo na construção cidadã, e foi chamada “a mãe de todas as batalhas pela liberdade”. No século XX, uma demanda importante foi que o Estado não exercesse controle sobre a expressão. Com o tempo, os movimentos pela liberdade de expressão e de rádios comunitárias definiram a comunicação como direito cidadão e fundamental, conceito que levou o tema para o direito internacional e permitiu a construção de marcos de exigência e critérios relativos à liberdade de expressão como direito humano. Esse processo se vale da experiência de muitas rádios comunitárias que fizeram do direito à comunicação um espaço de construção de outros direitos e o transformaram em direito cidadão, assim como a diversidade, a cultura e a identidade.
Todas essas considerações supõem assegurar a expressão no sistema de meios com diferentes tipos de narrativa que convivem no coletivo. Novamente, não se trata de tornar o consenso impraticável. Trata-se de reconhecer a heterogeneidade na representação dos assuntos públicos como valor positivo, e isso só é possível pela expressão pública da diversidade – que só existe quando a comunicação é reconhecida como um direito humano.
A pergunta é: como garantir a comunicação como direito da cidadania? O tema poderia ser considerado complexo, porém uma das chaves está em evitar o monopólio e equilibrar a representação da diversidade de interesses e atores sociais no debate público. Isso requer um sistema de meios de comunicação integrado por meios públicos, privados e comunitários sem fins lucrativos. Um sistema de meios composto dessa forma coloca à disposição da população representações diferentes que possibilitam o papel deliberativo das cidadãs e cidadãos, cuja origem está no direito de se expressar, estar informado e se comunicar.
Trata-se de um sistema que não restringe a liberdade de expressão à não interferência do Estado na livre circulação da informação, e obriga o poder público a garantir as condições para o desenvolvimento dos meios pelos diferentes atores (representantes da composição da comunidade política e da pluralidade que forma o universo temático do público).
Nas ações afirmativas do direito à comunicação, o reconhecimento do direito dos atores comunitários é fundamental: são eles que levam adiante experiências de participação, no sistema de meios, de setores com menos poder e que representam, muitas vezes, culturas e identidades marginalizadas.
Maria Pía Matta
Jornalista e presidente da Associação Mundial da Rádios Comunitárias (Amarc)
BOX
Tempo de Mudança
A Argentina inaugurou um importante precedente na região com a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, mais conhecida como Lei de Meios. Aprovada no dia 10 de outubro de 2009, incorporou muitos critérios interamericanos relativos à liberdade de expressão e radiodifusão. É importante analisar essa lei de forma rigorosa, com base nos aspectos jurídicos e à luz dos critérios mencionados – e não em função dos confrontos políticos entre o governo argentino e os conglomerados midiáticos.
A nova lei (nº 26.522/09) substituiu o Decreto 22.285, sancionado em 1980 pela última ditadura militar, e constitui um avanço central e decisivo para cumprir o objetivo de democratizar a comunicação e a cultura na Argentina. A própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, no relatório anual sobre liberdade de expressão de 2009, estabeleceu que “essa reforma legislativa representa um importante avanço em relação à situação anterior no país”.
Um aspecto relevante da Lei de Meios, especialmente em tempos de convergência tecnológica e serviços, foi o enfoque do processo legislativo: em vez do suporte tecnológico, privilegiou a instituição de normas sobre os serviços. Já de início, esse caminho marcou a transformação do modelo midiático argentino, pois implica outro critério de regulação (que vai desde o uso do espectro eletromagnético até o tipo de atividade realizada). Dado que os meios digitais multiplicaram os modos de expressão por via eletrônica, a lei fornece uma plataforma jurídica cujo objetivo é promover a diversidade e o pluralismo. Outro aporte sumamente relevante da lei são as normas para evitar a concentração da propriedade dos meios de comunicação, única alternativa possível para garantir a pluralidade dos atores consagrados na Constituição.
A Lei de Meios incorpora em seu texto diversos critérios discutidos no âmbito dos direitos humanos, das declarações dos relatores de liberdade de expressão e da Cúpula Mundial da Sociedade da Informação. O fundamento da lei consiste em regular os princípios e o exercício da comunicação social ou da liberdade de expressão por meio dos distintos meios eletrônicos, sem entrar em debates relativos a minúcias tecnológicas (normas técnicas, banda, multiplex etc.), que em última instância atrelariam a validade e atualidade da lei às mudanças tecnológicas contínuas da nossa era.
Em nenhuma parte da normativa – como afirmam seus detratores – é abordado o tema da qualidade da informação ou do conteúdo, à exceção de casos de populações específicas, como a infância. A nova lei busca, na realidade, fomentar a produção nacional independente e as cotas da tela, como acontece em outros países democráticos. A única porcentagem de reserva – um terço do espectro eletromagnético – é destinada a entidades sem fins lucrativos. Essa reserva inclui o setor comunitário em todas as bandas e frequências existentes e futuras a partir da Televisão Digital Terrestre, e exclui o setor comercial e público. Contém ainda provisões para os povos originários, e uma parte medular que implica uma mudança estrutural: a limitação à concentração de meios, o que hoje é um dos principais obstáculos à diversidade e pluralidade na região.
A lei vigente na Argentina tem os seguintes objetivos: regular os serviços de comunicação audiovisual; garantir o direito universal de todos os cidadãos de receber, difundir e pesquisar informações e opiniões; constituir-se como verdadeiro pilar da democracia e promover a pluralidade, a diversidade e a efetiva liberdade de expressão; colocar os meios a serviço do aprofundamento da participação democrática da cidadania; desconcentrar e democratizar a propriedade dos meios; favorecer um federalismo que fortaleça o local, proteja os bens culturais e defenda os trabalhadores e criadores pelo fomento do acesso à informação e a conteúdos alternativos. (M.P.M.)
Palavras chave: mídia, democracia, rádios, América Latina, meios de comunicação
Fonte: Le Monde Diplomatic
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DIREITO PRIVADO
Bens públicos globais, um conceito revolucionário
Os bens públicos globais são uma proposição de restringir os direitos de propriedade, sobre bens de utilidade e interesse publico. A água, a terra, o ar, as sementes, são bens públicos globais. Eles se confrontam com a propriedade privada e o controle do capital quando este quer transformar estes bens em mercadoria
por Inge Kaul
É necessário repensar o equilíbrio entre “privado” e “público”, entre as atividades dos atores “privados” em âmbito global (Estados, grandes empresas, ONGs e indivíduos) e o domínio público mundial. Como levar os diferentes atores a serem mais responsáveis por suas ações – e especialmente pelos danos que possam causar?
Começa a surgir uma reflexão, mesmo nos círculos mais neoliberais, a partir dos seguintes eixos:
• Uma regulamentação excessivamente tolerante de determinado país acaba fazendo com que seus custos (sociais, econômicos ou ambientais) sejam arcados por outros, o que não é apenas injusto, mas também ineficaz;
• As desigualdades crescentes comportam aquilo que os economistas chamam de importantes “externalidades negativas”: a pobreza de uns mina a prosperidade de outros.
Essa análise é particularmente aplicável à poluição transfronteiriça, às epidemias, às privações humanas (miséria ou violação dos direitos fundamentais são fermentos da emigração) e ao direito comercial (investidores buscam segurança em regimes de propriedade intelectual, regulação bancária etc.).
Uma nova ferramenta teórica
Na era da globalização a resposta às necessidades “privadas” (incluindo os interesses nacionais) passa cada vez mais pela realização de objetivos comuns e pela cooperação internacional. Para isso, o conceito de “bens públicos globais” é especialmente útil.
Há uma primeira categoria, tradicional, de bens públicos globais. Estas se encontram “fora” dos Estados, ou nos limites de suas fronteiras, e sua regulamentação constitui o que se convencionou chamar de “assuntos externos”. Assim, o espaço e os oceanos, que existiam antes de qualquer atividade humana, são regidos por regulamentações internacionais. No século XVII foram assinados os primeiros tratados internacionais para garantir livre acesso ao alto-mar. Com a intensificação das atividades econômicas internacionais ao longo de todo o século XIX e início do XX, multiplicaram-se acordos desse tipo: transporte de mercadorias e correspondência, telecomunicações, aviação civil. Quando são multilaterais e de envergadura planetária, eles compõem um bem público global – pois criam um quadro regulamentar comum. Esse primeiro tipo de bens públicos globais é hoje mais importante do que nunca, em razão do crescimento das atividades econômicas internacionais e da globalização da tecnologia e das comunicações (Internet).
As questões mundiais que estão no topo da agenda política constituem um segundo tipo de bens públicos, que já não estão simplesmente “do lado de fora”, no exterior dos Estados, mas atravessam as fronteiras, saindo assim do simples campo dos “assuntos externos”. Durante muito tempo consideramos os bens públicos naturais (camada de ozônio) como gratuitos, realizando um consumo excessivo. Medidas corretivas, a exemplo da redução do uso de clorofluorcarbono (CFC) e de energias não-renováveis, devem agora ser aplicadas em toda parte, no plano nacional.
Em certo sentido, esses bens públicos globais, que acreditamos estar “do lado de fora”, tornaram-se questões de política nacional. Inversamente, bens públicos tradicionalmente considerados nacionais (saúde, gestão do conhecimento, eficiência do mercado, estabilidade financeira, e até a lei, a ordem, os direitos humanos e a justiça econômica) ultrapassam a soberania nacional.
O controle de epidemias é uma das pedras angulares da cooperação internacional há mais de um século, porém seu funcionamento já não pode apoiar-se na mera coordenação de sistemas nacionais de alerta. Em outras palavras, essas questões de política mundial exigem – mais do que acordos de princípio (como os que garantem a liberdade de circulação de navios estrangeiros em alto-mar) – uma harmonização das políticas nacionais e das efetivas mudanças em curso.
Vários fatores explicam a emergência desse novo tipo de bens públicos globais. Em primeiro lugar, a maior abertura das fronteiras facilitou a extensão de “males globais”: social, desvalorização competitiva e até comportamentos de risco (consumo de tabaco). Em segundo lugar, a globalização porta um risco sistêmico global: volatilidade inerente aos mercados financeiros internacionais, mudanças climáticas planetárias, explosões políticas provocadas pelo crescimento das desigualdades… Um terceiro fator é o poder crescente do setor privado e das firmas transnacionais, além da sociedade civil e ONGs. Com objetivos próprios, eles pressionam os governos a aderir a normas políticas comuns, sejam elas técnicas ou de respeito aos direitos humanos.
Como garantir a produção de um bem? Quando se trata de bens privados, o investimento e a produção são, em princípio, motivados pela demanda – e as empresas privadas planejam cuidadosamente sua produção para garantir eficácia e competitividade. Já a demanda por bens públicos, particularmente a demanda por bens públicos globais, é temperada pelo medo de que nem todos paguem sua parte.
O Protocolo de Montreal, assinado em 1987 para reduzir as emissões de CFC, com o objetivo de lutar contra a destruição da camada de ozônio apresenta objetivos simples e define incentivos claros, como uma ajuda adicional para que os países mais pobres possam respeitar seus compromissos internacionais, e penalidades (sob a forma de sanções comerciais) para aqueles que não os respeitarem. Portanto, a exemplo desse protocolo, existem estratégias para a produção de bens públicos globais1.
Três diferentes classes de bens implicam procedimentos específicos:
• Alguns bens públicos globais, como o ar puro (ou, mais modestamente, a redução dos gases de efeito estufa), demandam um “procedimento aditivo”. Eles só podem ser obtidos pela soma de um grande número de contribuições de igual importância. Em outras palavras, uma tonelada de gás de efeito estufa economizada em Bangladesh é igual à mesma quantidade no Brasil ou no Peru, nos Estados Unidos ou na Alemanha. Claro que o objetivo só será alcançado se todos aceitarem as mesmas regras, oferecendo contribuições nos quadros dos limites globais, seja em produto (reduzindo efetivamente suas emissões) ou em dinheiro (comprando direitos de emissão de outros países), de acordo com os procedimentos defendidos pelos Estados Unidos em Kyoto, em 1998;
• Para outros bens públicos a estratégia adequada é socorrer o elo mais fraco. Por exemplo, para evitar a propagação de doenças contagiosas, todos os países devem adotar conjuntamente medidas profiláticas. Se um quebra a cadeia de prevenção, os esforços de todos os outros serão em vão. Como o custo do mal global resultante da ausência de ajuda é muito maior do que o custo da própria ajuda, torna-se eficaz (e não apenas necessário) prestar apoio ao ator mais fraco;
• Finalmente, há bens públicos globais, sobretudo no campo do conhecimento, que assentam num único avanço decisivo. Basta inventar a vacina contra a poliomielite em um lugar do mundo para que ela possa ser utilizada em toda parte – com a condição, no entanto, de que as patentes não impeçam o acesso das populações mais pobres à aplicação de tais descobertas2.
Em todos os casos, é indispensável uma colaboração integrada entre diferentes atores, tanto em escala nacional como internacional.
Apesar da importância crescente dos bens públicos globais, os Estados continuam a se comportar no cenário internacional como atores “privados”: preocupam-se acima de tudo com seu “interesse nacional”, considerando muitas vezes que a melhor opção, a mais racional para eles, é esperar que outros decidam prover um bem público, para então aproveitar-se gratuitamente dele – atuando como “passageiros clandestinos”.
Princípio de justiça
Nos países mais ricos, os fundos para a manutenção do planeta – intervenções em tempos de crise financeira, proteção da camada de ozônio, luta contra o aquecimento global – são muitas vezes retirados de recursos de apoio ao desenvolvimento ou de fundos de emergência para os países pobres. Estimativas indicam que aproximadamente um quarto dos recursos anualmente alocados como ajuda internacional ao desenvolvimento serve de fato às perspectivas globais, ou seja, às atividades destinadas a manter um equilíbrio do mundo, e não a permitir que os mais pobres satisfaçam suas necessidades e interesses nacionais (“privados”).
O que se propõe? Em primeiro lugar um estudo sistemático do conceito, a análise dos efeitos dos bens públicos globais sobre a vida cotidiana. Quais são, por exemplo, os impactos da busca da estabilidade financeira sobre o emprego e a aposentadoria? Quais as consequências do crescimento das desigualdades sobre as migrações internacionais e a paz?
Somente quando a opinião pública perceber que o bem-estar depende dos bens públicos globais e da cooperação internacional é que os políticos sentirão o dever de enfrentar essas necessidades, de trazer o “exterior” (a camada de ozônio) para as questões nacionais, e de repensar o “interior” (saúde, aposentadoria) como uma questão de política internacional.
Nessa perspectiva, o envolvimento dos parlamentares nacionais em todas as decisões relativas à cooperação internacional é uma prioridade, mesmo que seja apenas para pegar essas questões “de fora”, geralmente confiadas aos tecnocratas, e trazê-las de volta para o cidadão (ver boxe).
Para isso, um pré-requisito de qualquer discussão sobre bens públicos globais é fundamentá-las no princípio da justiça mundial. Mesmo que um bem global possa efetivamente revestir-se de um caráter público, nem todos lhe atribuem necessariamente o mesmo valor.
Um banqueiro de investimentos ocidental dará grande prioridade à estabilidade financeira, aprovando o controle da malária por conta de suas viagens. Já o camponês do Sul preferirá que nos debrucemos sobre a doença, dado que a volatilidade da moeda o afeta de maneira menos direta. Do mesmo modo, prioridades diferentes podem ser estabelecidas em relação à propriedade intelectual, caso se queira promover o investimento privado em pesquisa, ou favorecer a disseminação do conhecimento.
Um programa de bens públicos globais deve considerar de maneira equitativa as prioridades das diferentes populações envolvidas. E é necessário, evidentemente, que esses novos bens públicos não agravem as desigualdades existentes. A Internet é o exemplo mais gritante desse dilema, permitindo, por um lado, difundir conhecimento com um custo mínimo e, por outro, criando uma fratura cada vez maior entre “inforricos” e “infopobres”.
Da mesma maneira, a existência de um sistema de livre troca – em si um bem público global – favorece, num mundo desigual, os mais fortes, suscitando assim uma desconfiança em relação à política mundial. A maioria das negociações internacionais se dá em torno dos bens públicos globais que interessam mais aos ricos, negligenciando os interesses de outros países. A prioridade dada a determinado bem público global é formulada em função das preferências de um clube de países ricos. A equidade é uma dimensão importante de promoção de bens públicos mundiais, e não é de espantar que a desigualdade de representação dos interesses nas instâncias internacionais tenha sido denunciada nas manifestações desde Seattle e Washington.
Para além de seu valor instrumental, a justiça é em si um bem público global. É um recurso inesgotável – o fato de um indivíduo ser tratado com justiça em nada diminui as chances de outra pessoa ser tratada da mesma forma. Quanto mais amplamente se aceite e encoraje o conceito e a prática da equidade, maior será a confiança de todos em poder contar com ela um dia. Sem uma justiça, que, por definição, se aplique a todos os povos, regiões e gerações, é vã a pretensão de defender o interesse geral.
A noção de “prioridades globais compartilhadas” existe há muito tempo. Ela certamente foi uma inspiração após as devastadoras guerras do século XX. A criação da Organização das Nações Unidas (ONU) foi motivada por essa perspectiva. Assim como o Plano Marshall de reconstrução da Europa e, no mesmo modelo, o sistema internacional de ajuda ao desenvolvimento dos países mais pobres.
É chegado o tempo de fazer renascer essa idéia das “prioridades globais compartilhadas”, sob a forma, mais atual, dos “bens públicos globais”. Essa noção poderá desempenhar um papel decisivo para transformar a gestão da globalização, inspirada numa visão utópica da nova sociedade
1 Para uma abordagem completa e rigorosa dessa questão, ler Todd Sandler, [Mudanças globais. Uma abordagem dos problemas ambientais, políticos e econômicos], Cambridge University Press, Cambridge, 1997.
2 Ler Martine Bulard, “Les firmes pharmaceutiques organisent l’ sanitaire” [Empresas farmacêuticas organizam o sanitário], janeiro de 2000.
Palavras chave: Bens públicos, capitalismo, direito privado, propriedade, propriedade intelectual
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“Saulo, Saulo por que me persegues?”
(O texto é bíblico, mas a conotação aqui é política e atual. A seguir uma explicação bíblica, a qual cunhou a frase mencionada como um dos momentos marcantes da história da criação das primeiras comunidades e do estabelecimento do pensamento cristão e da sua filosofia no mundo, bem como da fundação da própria Igreja. Por fim, depois de perseguir dezenas de cristãos, Saulo foi, digamos assim, “cooptado” e, ao assumir (a) e ingressar na instituição, foi batizado. Com o batismo, adquiriu um novo nome, Paulo).
Saulo perseguia cristãos. Ele aprovou o apedrejamento até a morte do primeiro mártir cristão, Santo Estêvão (Atos 7,58-59).
At 8,1-3, “Naquele dia, rompeu uma grande perseguição contra a IGREJA em Jerusalém.
Saulo, porém, devastava a Igreja.
At 9,1-5, “Enquanto isso, Saulo só respirava ameaças e morte contra os discípulos do Senhor. Apresentou-se ao príncipe dos sacerdotes e pediu-lhe cartas para as sinagogas de Damasco, com o fim de levar presos a Jerusalém todos os homens e mulheres que achasse seguindo essa Doutrina (palavra usada para Cristandade). Durante a viagem, estando já perto de Damasco, subitamente o cercou uma luz resplandecente vinda do céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” Saulo disse: “Quem és, Senhor?” Respondeu Ele: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues.””
http://br.groups.yahoo.com/group/eskuerra/message/16165?var=1
Ministro de Lula aciona Justiça contra jornalista
Sidney de Souza
Editor do Jornal Planalto Central
O ministro-chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e Gestão
Estratégica, Luiz Gushiken, homem forte da cúpula do Partido dos Trabalhadores
e do governo Lula, protagonizou no último dia 16 deste mês de setembro um dos
mais vergonhosos atentados à liberdade de imprensa no Brasil, em clara afronta
ao princípio da transparência que sempre norteou as ações do PT.
Gushiken decidiu pedir explicações na Justiça à repórter Maria Carla Lisboa, do
Jornal Planalto Central, um pequeno semanário de política de Brasília, por
ter-se sentido atingido em sua honra na reportagem intitulada A Irmandade dos
Fundos de Pensão, publicada em agosto por aquele veículo e pelo boletim da CNESF
(Coordenação Nacional de Entidades dos Servidores Federais), a qual expõe
suas ligações com a aposentadoria complementar, objetivo da reforma da
Previdência que o governo quer aprovar no Congresso.
Sob a alegação de que a reportagem também teria atingido o cargo que ocupa, o
ministro acionou a Advocacia Geral da União para cobrar as explicações da
jornalista na 12ª Vara de Justiça Federal, em Brasília, o que configura
tentativa de intimidação e uso particular da máquina pública, já que a repórter
de forma alguma se referiu ao cargo de forma pejorativa. Uma atitude, portanto,
que só reforça a suspeita de que o ministro cultiva um interesse particular na
reforma da Previdência, já que, pelo cargo que ocupa, responde pelas ações
estratégicas do governo.
Detalhe curioso da ação encaminhada à Justiça por Gushiken: em nenhum momento
ele acionou o verdadeiro autor das denúncias que o envolvem, o advogado Magno
Mello, consultor legislativo da Câmara dos Deputados e autor do livro A Face
Oculta da Reforma Previdenciária, lançado recentemente no Congresso Nacional.
No livro, Magno Mello relata episódios nebulosos relacionados à Previ, o fundo
de pensão dos funcionários do Banco do Brasil, revela a vinculação de Gushiken e
de seu grupo – a Articulação Bancária – com a direção desta entidade e relembra
negociatas lesivas ao interesse nacional, como a privatização da siderúrgica
Vale do Rio Doce, feita com capital dos associados da Previ e de outros fundos
de pensão de empresas estatais.
Ao receber a intimação de uma oficial de Justiça da 12ª Vara, a jornalista tomou
uma atitude que deverá surpreender o ministro: constituiu como advogado o
próprio acusador, Magno Mello, que tratou de protocolar as devidas
“explicações” ao ministro na mesma Vara, tendo o cuidado de juntar ao processo o
livro em que tece as acusações ao grupo do qual o ministro faz parte.
Vale registrar que, no mês de agosto passado, Magno Mello entrou com uma
notícia-crime na Polícia Civil do Rio de Janeiro, onde fica a sede da Previ,
contra o presidente desta entidade, Sérgio Rosa, por crime contra o sistema
financeiro nacional, processo que foi encaminhado para a Polícia Federal. Sérgio
Rosa está desaparecido e há informações de que foi para a Califórnia, retirado
de cena estrategicamente a fim de esfriar as investigações
Magno Mello, depois de pesquisar no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) as contas
de mais de 250 candidatos e 25 comitês, constatou que muitos políticos do PT,
PSDB, PFL, PMDB e PPS foram beneficiados por doações milionárias de empresas
que constam da carteira de investimentos da Previ, como a Paranapanema, a
Alcatex, a Bumge e a própria Vale do Rio Doce, entre outras, o que despertou a
suspeita de que o fundo de pensão investiu pesadamente o dinheiro dos associados
na campanha eleitoral do ano passado.
Entre os maiores beneficiados pelas empresas das quais a Previ tem
ações estão o próprio presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o grupo político do
senador baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL), ex-aliado de FHC, o senador
Aloizio Mercadante (PT), o ex-presidenciável José Serra (PSDB) e o senador
Roberto Freire (PPS), o qual, em nome da “modernidade”, transformou-se
subitamente em um dos maiores defensores da reforma da Previdência.
Entenda o caso
Intrigado com a pressa do governo Lula em privatizar a Previdência dos
servidores e desconfiado das mudanças de posição do presidente Lula e da cúpula
do PT, que sempre combateram a venda das empresas estatais e o desmonte do
Estado, o advogado Magno Mello começou a colecionar reportagens e fatos
veiculados na imprensa a fim de decifrar as razões que levaram os governos de
FHC e de Lula a tentar mudar a Constituição para subtrair direitos do
funcionalismo sem qualquer discussão com a sociedade, maior interessada no
fortalecimento dos serviços públicos.
Começou então a desvendar uma trama que expõe interesses pessoais de
políticos dos dois partidos ligados a fundos de pensão de empresas estatais, um
negócio bilionário que envolve corrupção e escândalos em privatizações com
dinheiro dos servidores. Em Belém do Pará, em 1998, durante uma palestra,
conseguiu a primeira pista da existência de uma confraria interessada na
privatização da Previdência: era um boletim de campanha eleitoral da Previ.
Naquela época, por força da mudança do estatuto da entidade, os funcionários do
Banco do Brasil passaram a ser representados na direção da Previ, à qual tinham
acesso por meio de eleição. No boletim da chapa 1, a que Magno Mello teve
acesso, constavam como apoiadores daquela chapa, inclusive com fotografias, o
ministro Gushiken, então deputado federal pelo PT, o senador Aloizio
Mercadante, o hoje ministro da Previdência Ricardo Berzoini, também oriundo do
movimento sindical bancário de São Paulo, e o deputado cearense José Pimentel,
que viria a se tornar relator da reforma da Previdência na Câmara dos Deputados.
Todos petistas.
Até então, o advogado não entendia como pessoas ligadas ao PT, que sempre
combateram as privatizações e defendiam a previdência pública, apoiavam uma
chapa de fundo de pensão. A ficha caiu quando leu uma matéria publicada em um
jornal paulista dando conta de que a reforma da Previdência que o presidente
Lula pretendia fazer fora concebida no escritório de consultoria Frascino
Gushiken Associados, cujo nome mudou para GlobalPrevi.
Era um escritório montado pelo então deputado federal Luiz Gushiken em sociedade
com Wanderley Freitas e Tadeu Ferrari, uma empresa particular de consultoria que
não só elaborou a proposta de reforma da Previdência que Lula pretende
implementar, forçando a criação de fundos de pensão para o funcionalismo, como
escreveu, sob encomenda do Palácio do Planalto, no governo de Fernando Henrique
Cardoso, o livro Regime Próprio de Previdência dos Servidores. Como Implementar?
Uma Visão Prática e Teórica, prefaciado pelo então secretário de Previdência
Social do ministério, José Cechin.
“Isso tudo ficou na minha cabeça durante algum tempo e achei que alguma coisa
estava errada. Não é normal que um escritório da iniciativa privada faça
proposta para um partido e depois esse sujeito (Luiz Gushiken) vá se transformar
em ministro curinga e ainda indique o ministro da Previdência (Ricardo
Berzoini)”, estranha o advogado Magno Mello.
Além da nomeação de Berzoini, a quem apoiou no movimento sindical e ajudou a
eleger deputado federal, Gushiken também teria auxiliado o presidente Lula na
escolha do ministro da fazenda, Antônio Palocci, seu amigo desde os anos 70, e
emplacado Adacir Reis, seu ex-assessor na Câmara dos Deputados, para a
Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência Social.
Hoje, com a ida de Gushiken para a Secretaria de Assuntos Estratégicos do
governo, Wanderley Freitas e Augusto Tadeu Ferrari respondem pela GlobalPrevi.
Wanderley, por sinal, vem fazendo seminários para empresários e sindicalistas
sobre a criação de fundos de pensão a partir do vínculo associativo.
Para fechar o círculo de articulações políticas sobre a rede de
apoiadores de fundos de pensão, Gushiken, segundo o advogado Magno Mello, passou
a nomear todos os dirigentes de fundos de pensão estatais. O conselho de gestão
da previdência complementar, criado por decreto expedito pelo presidente Lula, é
composto de oito membros, seis dos quais indicados pelo governo e outros dois
pela Abrapp (Associação das Entidades de Previdência Complementar Fechada) e
pela Anapar (Associação Nacional dos Participantes de Fundos de Pensão).
O representante da Abrapp é José Ricardo Sasseron, que fazia parte dos
apoiadores da chapa 1 à eleição da Previ no ano passado. Há também a figura do
superintendente da Superintendência de Seguros Privados (Susep), René Garcia, o
qual controla os fundos de pensão e cuja foto também aparece no jornal de
campanha da chapa 1 nas eleições de 1998.
Vale lembrar que Sérgio Rosa, presidente da Previ e alvo da
notícia-crime protocolada na polícia pelo advogado Magno Mello, foi convidado
por Gushiken para integrar o governo de transição, logo após a vitória de Lula
nas urnas.
Brasília, 29 de setembro de 2003
[As partes desta mensagem que não continham texto foram removidas]
26/5/2011
As 10 transnacionais secretas que controlam as matérias primas
Como é possível que no século 21 ainda existam empresas “secretas” e/ou piratas, que se dão ao luxo de não ter ações nas bolsas de valores, mas que gozam de todas as vantagens do “livre mercado”, incluindo operações suspeitas em paraísos fiscais. Pode manter-se “secreta” a atividade dessas dez transnacionais “gigantes” que controlam os alimentos e a energia, usados como “armas de destruição maciça” contra a maioria do gênero humano? O jornal The Daily Telegraph revelou a identidade oculta das principais 10 transacionadoras globais de petróleo e matérias primas. O artigo é de Alfredo Jalife-Rahme.
Alfredo Jalife-Rahme – La Jornada
Antecedentes: Zheng Fengtian, professor da Escola de Economia Agrária da Universidade Renmin, na China (Global Times, 13/4/11), fustiga “o monopólio dos cereais que o Ocidente exerce” e a “manipulação deliberada dos preços pelos especuladores internacionais” graças à desregulação de que gozam em Wall Street e na City, assim como nos paraísos fiscais (nomeadamente a Suíça): “não podemos depender apenas dos Estados Unidos (EUA) para resolver a crise alimentar global” nem das “quatro (sic) gigantes (sic) transnacionais”.
Não especifica quais, mas os leitores podem consultar os meus artigos sobre o “cartel anglo-saxão da guerra alimentar” e o seu “meganegócio” (Radar Geopolítico; Contralínea, 30/1/11). Fengtian adota a velha tese deBajo la Lupa sobre a “guerra alimentar” que trava Washington para submeter o mundo: “no passado (sic), os EUA aproveitaram as vantagens do seu papel dominante no mercado global de alimentos para adotá-los como arma (¡supersic!) política”.
Atos: O mundo anglo-saxão cacareja vaziamente sobre a transparência e a prestação de contas, enquanto oculta simultaneamente as suas “10 gigantes (sic) transnacionais secretas (¡supersic!)” que “controlam a comercialização dos hidrocarbonetos e das matérias primas”, segundo The Daily Telegraph (15/4/11). Como se não bastassem as depredadoras transnacionais (BP, Tepco, Schlumberger/Transocean, etc.) que estabelecem suas cotações desapiedadamente na bolsa!
Para além dos tenebrosos grupos da plutocracia – como o grupo texano Carlyle (ligado ao nepotismo dos Bush) e o inimputável Blackstone Group (controlado por Peter G. Petersen e Stephen A. Schwarzman, cujas façanhas remontam ao macabro recebimento dos seguros das Torres Gémeas do 11/9) – The Daily Telegraph revela a identidade oculta das “principais 10 transacionadoras globais de petróleo e matérias primas”:
1. Vitol Group: sede em Genebra e Roterdan, com resultados de 195 mil milhões de dólares na comercialização de hidrocarbonetos; a primeira petrolífera a exportar com pontualidade da região controlada pelos rebeldes na Líbia.
2. Glencore Intl.: sede em Baar (Suíça), com resultados por 145 bilhões de dólares em metais, minerais, produtos agrícolas e de energia; fundada pelo israelo-belga-espanhol Marc Rich; acusada pela CIA (¡supersic!) de subornar governantes; controla 34 por cento da mineira global suíço-britânica Xstrata; apostou na subida do trigo durante a seca russa (The Financial Times, 24/4/11); o banqueiro Nat Rothschild “recomendou” o seu polêmico novo director Simon Murray (The Daily Telegraph, 23/4/11); destaca a circularidade financeira do binômio Rotshchild-Rich.
3. Cargill: sede em Minneapolis, Minnesota, com resultados por 108 bilhões de dólares em agronegócios, carnes, biocombustíveis, aço e sal; severamente criticada pela desflorestação, contaminação de todo o gênero (incluindo a alimentar) e abusos contra os direitos humanos.
4. Koch Industries: sede em Wichita, Kansas, com resultados por 100 bilhões de dólares em refinação e transporte de petróleo, petroquímicos, papel, etc.; empresa familiar (a segunda mais importante nos EUA depois da Cargill) manejada pelos irmãos ultraconservadores David e Charles Koch, que financiam o Tea Party.
5. Trafigura: sede em Genebra, com resultados por 79,200 bilhões de dólares em petróleo cru, comercialização de metais; depredadora tóxica em África; provém da separação de várias empresas do israelo-belga-espanhol Marc Rich.
6. Gunvor Intl.: sede em Amsterdã e Genebra, com resultados por 65 bilhões de dólares em petróleo, eletricidade e carvão.
7. Archer Daniels Midland Co.: sede em Decatur, Illinois, com resultados por 62 bilhões de dólares em milho, trigo, cacau; listada na Bolsa de Nova Iorque; atuação escandalosa e processada por contaminação reiterada; beneficiou com os subsídios agrícolas do governo dos EUA.
8. Noble Group: sede em Hong Kong, com resultados por 56 700 bilhões de dólares em açúcar brasileiro e carvão australiano; sólidos laços com a HSBC e a polêmica empresa contabilística Pricewaterhouse Coopers; cotada no Índice Strait Times (Singapura).
9. Mercuria Energy Group: sede em Genebra, com resultados de 46 bilhões de dólares em petróleo e gás.
10. Bunge: sede em White Plains, Nova Iorque, com resultados de 45,7 bilhões de dólares em cereais, soja, açúcar, etanol e fertilizantes; multada nos EUA por emissões contaminantes.
The Daily Telegraph adiciona surpreendentemente como “menção especial” a Phibro, hoje subsidiária da Occidental Petroleum Corporation (Oxy): sede em Westport (Connecticut), com 10 por cento dos resultados do banco Citigroup em 2007 em petróleo, gás, metais e cereais, onde iniciou a sua “aprendizagem” o israelo-belga-espanhol Marc Rich.
Das 11 transnacionais piratas, cinco pertencem aos EUA, três à Suíça (notável paraíso fiscal bancário), duas são suíço-holandesas e uma é de Hong Kong (ligada à Grã-Bretanha). Se as 11 fossem cotadas na bolsa colocar-se-iam da posição sete até à 156 na classificação da Fortune Global 500. Sem penetrar na genealogia dos seus testa-de-ferro e verdadeiros donos, destaca-se a nefasta sombra do israelo-belga-espanhol Marc Rich em três empresas piratas: Glencore Intl., Trafigura e Phibro.
O israelo-belga-espanhol Marc Rich merece uma menção honrosa e com uma biografia mafiosa revela quiçá uma das razões do hermetismo das “gigantes” transnacionais que não estão cotadas nas bolsas e que movimentam nocivamente verdadeiras fortunas sem o menor escrutínio governamental ou cidadão. Será mera causalidade que Rich apareça em três das “secretas” 11 empresas “gigantes” que especulam na penumbra com os preços dos alimentos, hidrocarbonetos e metais?
Marc Rich, perseguido por evasão fiscal nos EUA (logo perdoado, polemicamente, por Clinton), foi denunciado como “espião da Mossad israelense” (Niles Latham, New York Post, 5/2/01) e “lavador de dinheiro” das mafias (The Washington Times, 21/6/02).
O investigador William Engdahl expôs há 15 anos “a rede financeira secreta (¡supersic!)” por trás dos banqueiros escravagistas Rothschild, o megaespeculador “filantropo” George Soros e Marc Rich. Cada vez se afirma mais o papel determinante de Israel na lavagem de dinheiro global (ver Bajo la Lupa, 20/4/11).
Conclusão: Como pode uma transnacional “gigante” passar sem ser detectada na época da antiterrorista “segurança interna”? Será possível que no século 21 ainda existam empresas “secretas” e/ou piratas, que se dão ao luxo de não se cotar nas bolsas, mas que gozam de todas as vantagens do “livre mercado”, incluindo operações suspeitas em paraísos fiscais.
São “gigantes secretos” e/ou “clandestinos” tolerados pelo sistema anglo-saxão e seus mafiosos paraísos fiscais? Pode manter-se “secreta” a atividade dessas transnacionais “gigantes” que controlam os alimentos e a energia, usados como “armas de destruição maciça” contra a maioria do gênero humano?
(*) Tradução de Paula Sequeiros para o Esquerda.net
Fonte CartaMaior
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Quarta, 25 de maio de 2011
O Código e o sangue
Felipe Milanez/Terra Magazine
Os extratitivistas José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, assassinads nesta terça-feira (24) |
Felipe Milanez
De São Paulo
“Qualquer coisa que eu fale, e qualquer coisa que eu escreva, tem lágrima. Eu acho que a tinta, quando eu to escrevendo, ela é borrada pela lagrima”. Pausa. Choro. Lágrimas.
E dona Maria continua: “A ousadia. Ela é uma coisa que alimenta, para mim. Alimenta a luta”. Mais choro.
Estamos sentados na varanda de sua casa, no assentamento agroextrativista Praia Alta Piranheira. Faz um dia bonito, sol forte, mês de outubro de 2010. A varanda é o “escritório” de Dona Maria, disse o marido seu Zé Cláudio.
Seu Zé Cláudio anda impaciente, enquanto dona Maria está sentada conversando comigo. Ele fica nervoso. Sabe que ela fala. E dona Maria conta as ameaças que eles têm sofrido. Intimidações. Recados. As angústias. Os madeireiros que querem cortar as castanheiras. Os carvoeiros que querem fazer carvão. Os fazendeiros que querem pasto. É mulher forte. E sensível. Está concluindo a dissertação de mestrado – “quero estudar o nosso projeto de assentamento. Quem vem fazer pesquisa aqui, vem e vai, não volta.” Ela quer fazer um livro. Porque acha que as histórias devem ficar escritas.
Foto: Felipe Milanez
Ela me disse coisas muito bonitas. Cheia de lágrimas:
“Quando criou esse assentamento, pra mim era uma coisa tão distante. E eu sou do campo. Meu pai era do campo, nunca criou boi, sempre colheu da floresta. Com esse projeto, eu, como liderança dos povos extrativistas, toda a minha trajetória, chegando aqui, essa história de luta que nós estamos construindo aqui dentro. Todas as coisas bonitas. Foi um modelo em 1997. Hoje, contamos com o Conselho Nacional dos Seringueiros e a Comissão Pastoral da Terra. Ninguém mais apóia. Isso foi me angustiando. Surgiu a idéia de escrever um livro. O projeto ta sendo saqueado a cada momento, a biodiversidade está desaparecendo.
Os demais, são só omissos.
Tem que ficar alguma coisa escrita. Não pode eu fazer só o trabalho para universidade. Mas para eu deixar alguma coisa para as futuras gerações. Se você voltar daqui a um mês, ou daqui 10 anos, não importa. O dia que você voltar aqui você vai encontrar as mesmas pessoas, só um pouco mais velhas, já que a cada dia a gente envelhece. Mas a floresta é essa mesma. A idéia é essa mesma.”
Seu Zé Cláudio, um bravo guerreiro, estava revoltado com a venda ilegal de madeira: “quem compra?” E se dizia o verdadeiro ambientalista: “por que eu moro na floresta, eu vivo nela, e não vendo.”
Foto: Felipe Milanez
O casal foi assassinado na manhã desta terça-feira, por volta das 7:30, a cerca de 8 km de sua casa, enquanto iam para Marabá. Dilma mandou que a Polícia Federal investigasse – mandar a polícia investigar um crime seria necessário se não houvesse uma lei que obrigue a tanto. Mais justo teria sido o Planalto mandar algum representante para acompanhar as investigações, ao local, como foi feito no assassinato da irmã Dorothy Stang.
No mesmo dia do crime, à noite, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto do novo Código Florestal.
Na plenária, o deputado Sarney Filho (PV), leu trechos de uma reportagem que escrevi sobre Zé Cláudio (http://www.viceland.com/blogs/br/2010/10/28/ze-claudio-e-a-majestade/). Zé Cláudio dizia amar a floresta, e queria que suas cinzas fossem enterradas junto da Majestade – a linda e imponente castanheira que ainda está de pé, dentro do seu lote. Muitos no plenário se emocionaram. Alguns choraram. Como eu choro quando releio o texto. Como as lágrimas que estão no teclado enquanto escrevo esse texto.
O assassinato do casal poderia tê-los tornado mártires em defesa da floresta. Mas nesse mesmo dia, os representantes da nação preferiam apontar um caminho diferente para o futuro: aquele onde a floresta, se continuar a existir, não terá importância para os brasileiros. Onde a biodiversidade, que tanto encantava seu Zé Cláudio Ribeiro da Silva e dona Maria do Espírito Santo, corre o risco de ser reduzida a pasto e boi. Num campo marcado de sangue.
Felipe Milanez é jornalista e advogado, mestre em ciência política pela Universidade de Toulouse, França. Foi editor da revista Brasil Indígena, da Funai, e da revista National Geographic Brasil, trabalhos nos quais se especializou em admirar e respeitar o Brasil profundo e multiétnico.
Fale com Felipe Milanez: felipemilanez@terra.com.br
Fonte: Terra Magazine
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22/5/2011
¡Revolucion!
Reiniciar o sistema
Por Murilo Roncolato
No início da semana passada, políticos espanhóis tomaram um susto. O que começou com um grupo de manifestantes discutindo pela internet questões relativas à Lei Sinde – que, similar à Lei Hadopi francesa, desconectaria da internet quem fizesse downloads ilegais –, tornou-se, em questão de dias, um movimento descentralizado que correu por mais de 60 cidades no país.
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Na semana retrasada, paulistanos bem humorados fizeram churrasco. O que começou como uma piada de Facebook para tirar sarro de uma declaração infeliz contra a instalação do metrô em Higienópolis virou um movimento descentralizado, que levou milhares ao bairro, num protesto brincalhão. Três meses antes, ditadores de países árabes caíram depois que pessoas foram às ruas protestar, em movimentos organizados online.
Já deu para entender, né?
Não dá para comparar a queda do ditador egípcio Hosni Mubarak com o churrascão diferenciado. Mas em algum ponto entre um e outro está algo muito importante, que agora surge em novo palco, a partir da Espanha, rumo a outras cidades da Europa.
Os espanhóis não querem derrubar um ditador, nem uma estação de metrô. Querem mais. Querem reiniciar o sistema e questionar a atual organização política e financeira. Querem uma “revolução ética” na política.
O professor universitário e fundador do movimento NoLesVotes (“não vote neles”), Enrique Dans ajuda a recapitular os acontecimentos. “Os três maiores partidos – Partido Popular, o Partido Socialista Trabalhista e o Convergência e União – fizeram um pacto para aprovar a Lei Sinde”, disse em entrevista ao Link. “Agiram em nome da indústria fonográfica e de cinema e não em prol do povo, que era contra a Lei. Por isso criamos o NoLesVote, para que ninguém votasse nos três partidos.”
O grupo organizou reuniões, redigiu um manifesto e criou o wiki.nolesvotes.org. Em pouco tempo milhões já haviam acessado o site. “De repente, pessoas de todo o mundo estavam envolvidas e enviando relatos da criação de grupos semelhantes em suas cidades”, diz Dans. O NoLesVote se associou ao movimento Juventude Sin Futuro, formado por universitários infelizes sem expectativas profissionais. E foram para as ruas.
Ao mesmo tempo surgia outro grupo de universitários que se chamava de Democracia Real Ya. “Foram eles que convocaram a manifestação no dia 15 de maio”, lembra Dans. E, surpresa, apareceu muito mais gente do que era esperado naquele dia. A surpresa virou animação, que virou confiança. Decidiram acampar. Na madrugada policiais invadiram o acampamento e prenderam 20 pessoas. Alguém gravou a ação e postou no YouTube.
“Foi quando YouTube, Facebook e Twitter começaram a ser usados para gerar impacto, e a partir daí, para mobilizar os espanhóis e chamar a atenção das pessoas pelo mundo”, comenta o espanhol Paco Ragageles, fundador da Campus Party, o maior evento de cultura digital do mundo.
“Estamos assistindo a um momento histórico. Não recordo de um movimento global reunido tão rapidamente”, afirma. Paco crê que o movimento terá um enorme impacto político. “Os governos espanhol e dos demais países agora sabem que não basta mais só escutar os empresários, o que acontece na rua e na internet é imprescindível”. Dans aposta que “com a tecnologia, algumas indústrias tiveram que mudar sua forma de trabalhar e isso também irá ocorrer com a política”.
Ele lembra que alguns políticos diziam que na internet havia só “quatro gatos” – expressão espanhola para dizer que não havia ninguém –, zombando da incapacidade dos grupos da internet de irem às ruas e fazerem manifestações concretas. “Esse movimento foi a oportunidade de lhes mostrar que não somos ‘quatro gatos’, somos muitos e que podemos nos organizar.” Segundo o último relatório do Instituto Nacional de Estatísticas espanhol, mais da metade do país já está online.
O movimento começou fazendo oposição à Lei Sinde, que permite que sites de downloads ilegais sejam tirados do ar à força pelo governo, e conseguiu juntar milhares de ativistas usando redes sociais. Apesar das críticas generalizadas, o projeto foi aprovado.
Um projeto para limitar a velocidade nas estradas para 110 km/h, os casos de corrupção e o enorme desemprego que o país enfrenta entraram na mesma conta. O clima de insatisfação geral foi o que moveu os manifestantes a organizar os protestos via Twitter e Facebook.
• #15m
A primeira grande manifestação do movimento aconteceu em 15 de maio, em mais de 60 cidades espanholas. Mais de 130 mil pessoas saíram às ruas.
A mais significativa foi uma concentração perto da Puerta del Sol, ponto de encontro no coração da cidade de Madri. Lá se formou o primeiro e maior dos acampamentos.
Outras cidades criaram sua própria forma de mobilizar os seus cidadãos, centralizando informações sobre acampamentos locais em hashtags como #acampadavalencia e #acampadabcn, de Barcelona.
Não há organização central no movimento, nem líderes ideológicos. Outra mobilização, contra a Lei Sinde, usa a hashtag #nolesvote para pedir que os eleitores punam nas urnas os partidos PP, PSOE e CIU (que aprovaram o projeto e são acusados de corrupção). Os dois movimentos se confundem, e parte dos acampantes pode muito bem concordar com os dois, mas não são o mesmo.
A ideia de mudança dos manifestantes é resumida no nome dado ao movimento: “Democracia real YA! No somos mercancía en manos de políticos y banqueros” (democracia real já! Não somos mercadoria nas mãos de políticos e banqueiros).
A insatisfação exposta na #spanishrevolution (principalmente por causa da corrupção, leis sem apoio da sociedade e desemprego) não é estranha a lugar nenhum do mundo. Por isso, movimentos como #italianrevolution, #frenchrevolution e #germanrevolution nasceram na esteira da revolução espanhola. Um mapa online, checado até o fechamento desta edição, mostra que 282 campings e 46.429 acampantes se envolveram na causa, em todo o mundo.
Fonte: Estadão
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7/5/2011
Egipto: Os movimentos sociais, a CIA e a Mossad
“Em última análise, o fracasso da CIA e da Mossad em detectar e impedir a ascensão do movimento democrático popular põe em evidência a precariedade das bases do poder imperial e colonial. No longo prazo, não são as armas, os milhares de milhões de dólares, a polícia secreta e as câmaras de tortura que decidirão a história. As revoluções democráticas ocorrem quando a grande maioria de um povo se levanta e diz «basta», vai para as ruas, paralisa a economia, desmantela o Estado autoritário e exige a liberdade e as instituições democráticas, sem a tutela imperial ou a submissão colonial.”
Os limites dos movimentos sociais
Os movimentos de massas que forçaram a retirada de Mubarak revelam os pontos fortes e fracos dos levantamentos espontâneos.
Por um lado, os movimentos sociais demonstraram a sua capacidade de mobilizar centenas de milhares, talvez milhões, de pessoas, numa luta sustentada de sucesso que culminou no derrube do ditador de uma forma que os partidos da oposição e as personalidades pré-existentes não puderam ou não quiseram fazer.
Em contraste, por outro lado, na falta de liderança política nacional, os movimentos não foram capazes de conquistar o poder político e materializar as suas aspirações, o que permitiu aos comandantes militares de Mubarak tomar o poder e definir o post-mubarakismo, assegurando a continuidade da subordinação do Egipto aos EUA, a protecção da riqueza ilícita do clã Mubarak (70 milhões de dólares), a manutenção das numerosas empresas propriedade da elite militar e a protecção das classes mais altas.
Os milhões de pessoas mobilizadas pelos movimentos sociais para derrubar a ditadura foram excluídos, na prática, pela nova Junta militar, autoproclamada «revolucionária» quando se tratou de definir as instituições e as políticas, para não mencionar as reformas sócio-económicas necessárias para atender às necessidades básicas da população (40% da população vive com menos de dois dólares por dia e o desemprego juvenil é superior a 30%). O Egipto, como os casos dos movimentos sociais populares e de estudantes contra as ditaduras da Coreia do Sul, Taiwan, Filipinas e Indonésia, é uma demonstração de como a falta de uma organização política ao nível do estado permite que personagens neoliberais e conservadoras «da oposição» substituam o regime. Estes personagens trabalham para estabelecer um sistema eleitoral que continue a servir os interesses imperiais de dependência e defenda o aparelho estatal existente. Em alguns casos, substituem os velhos «amigos» capitalistas por outros de novo tipo. Não é por acaso que a comunicação social elogia a natureza «espontânea» das lutas (não das reivindicações sócio-económicas) e apresenta sob uma luz favorável o papel dos militares (sem levar em conta os 30 anos em que foram um baluarte da ditadura). As massas são elogiadas pelo seu «heroísmo» e os jovens pelo seu «idealismo», mas em nenhum caso são reconhecidos como actores políticos centrais no novo regime. Uma vez caída a ditadura, os militares e a oposição eleitoralista «saudaram» o êxito da revolução e agiram rapidamente para desmobilizar e desmontar o movimento espontâneo, a fim de abrir caminho para negociações entre os políticos liberais eleitoralistas, Washington e a elite militar no poder.
A Casa Branca pode tolerar ou mesmo fomentar movimentos sociais que levem à queda («sacrifício») de ditaduras, mas tem todo o interesse em preservar o Estado. No caso do Egipto, o principal aliado estratégico do imperialismo dos EUA, não é Mubarak, é o exército, com o qual Washington tem estado em constante colaboração, antes, durante e depois do derrube de Mubarak, assegurando-se de que a “transição para a democracia” (sic) assegura a subordinação permanente do Egipto aos interesses e políticas dos E.U.A. para o Próximo Oriente e Israel.
A rebelião do povo: os fracassos da CIA e da Mossad
A revolta árabe demonstra mais uma vez várias falhas estratégicas em instituições tão gabadas como a polícia secreta, as forças especiais e as agências de espionagem dos E.U.A., assim como o aparelho do Estado de Israel, nenhum dos quais foi capaz de prever, muito menos de agir para impedir a bem-sucedida mobilização e influenciar as políticas dos seus governos para salvar os governantes lacaios que estavam em perigo.
A imagem que a maioria dos escritores, académicos e jornalistas projectam da invencibilidade da Mossad israelita e da todo-poderosa CIA foi submetida a uma dura prova, com a sua incapacidade em reconhecer o alcance, profundidade e intensidade do movimento de milhões de pessoas que derrubou a ditadura de Mubarak. A Mossad, o orgulho e a alegria dos produtores de Hollywood, apresentada como um «modelo de eficiência» por bem organizados companheiros de viagem sionistas, não foi capaz de detectar o crescimento de um movimento de massas num país vizinho. O primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, mostrou-se surpreendido (e consternado) pela precária situação de Mubarak e com o colapso do seu cliente árabe mais importante, precisamente por causa de falhas de espionagem da Mossad. Da mesma forma, Washington, com as suas 27 agências de espionagem, além do Pentágono, foi apanhada de surpresa pelos levantes populares massivos e os movimentos emergentes, apesar das centenas de milhares de funcionários remunerados e os seus orçamentos de milhares de milhões de dólares.
Várias observações teóricas se impõem. Ficou demonstrado que a ideia de governantes ferozmente repressivos, que recebem milhares de milhões de dólares em ajuda militar dos EUA e têm quase um milhão de militares, policias e forças paramilitares para garantir a hegemonia imperial, não é infalível. A suposição de que manter vínculos de larga escala e longo prazo com tais governantes ditatoriais, salvaguarda os interesses imperiais dos E.U.A., foi refutada.
O balão da arrogância de Israel e a presunção de superioridade judaica em matéria de organização, estratégia e política sobre «árabes», saíram bastante furados. O Estado de Israel, os seus peritos, os agentes infiltrados e os seus académicos das melhores universidades norte-americanas, permaneceram cegos às realidades emergentes, desconhecendo a profundidade do descontentamento e impotentes para impedir a oposição maciça aos seus clientes mais valiosos. Os publicitários de Israel nos E.U.A., que não perdem qualquer oportunidade para elogiar o «brilhantismo» das forças de segurança de Israel, quer seja para matar um líder árabe no Líbano ou no Dubai, ou bombardear uma instalação militar na Síria, ficaram temporariamente sem fala.
A queda de Mubarak e o possível surgimento de um governo democrático e independente, significariam que Israel perderia o seu principal aliado policial. Uma opinião pública democrática não vai cooperar com Israel para manter o bloqueio de Gaza e condenar os palestinianos a morrer de fome a fim de quebrar a sua vontade de resistir. Israel não poderá contar com um governo democrático para apoiar as suas violentas ocupações de terras na Cisjordânia e o seu regime fantoche palestiniano. Nem os EUA poderiam contar com um Egipto democrático para apoiar as suas conspirações no Líbano, as suas guerras no Iraque e no Afeganistão ou as suas sanções contra o Irão. Além disso, o levantamento do Egipto serviu de exemplo para outros movimentos populares contra as ditaduras clientes dos EUA na Jordânia, Iémen e Arábia Saudita. Por todas estas razões, Washington apoiou o golpe militar, a fim de dar forma a uma transição política de acordo com o seu gosto e com os seus interesses imperiais.
O enfraquecimento do principal pilar do poder imperial dos EUA e do poder colonial israelita no norte da África e no próximo Oriente põe em destaque o papel essencial dos regimes colaboradores do Império. A natureza ditatorial destes regimes é um resultado directo do papel que desempenham na defesa dos interesses imperiais. E os grandes pacotes de ajuda militar que corrompem e enriquecem as elites dominantes são a recompensa pela sua disponibilidade para cooperar com os estados imperiais e coloniais. Dada a importância estratégica da ditadura egípcia, como explicar o fracasso das agências de espionagem dos EUA e Israel para antecipar os motins?
Tanto a CIA como a Mossad trabalharam em estreita colaboração com os serviços de espionagem do Egipto, e basearam-se neles para obter informações, confiando nos seus relatórios conformistas segundo os quais tudo estava sob controlo. Os partidos da oposição são fracos, têm sido dizimados pela infiltração e a repressão, os seus militantes apodrecem na cadeia ou sofrem «fatais ataques de coração» devido a severas «técnicas de interrogatório», disseram. As eleições foram manipuladas para eleger os clientes dos EUA e Israel, para não haver surpresas democráticas no horizonte imediato ou a médio prazo.
Os serviços secretos egípcios são treinados e financiados por agentes americanos e israelitas, e têm uma tendência natural para satisfazer a vontade dos seus senhores. Eles eram tão obedientes a produzir relatórios para agradar aos seus mentores, que ignoravam qualquer informação sobre uma crescente inquietação popular ou a agitação através da Internet. A CIA e a Mossad estavam tão apoiados no vasto aparelho de segurança de Mubarak, que foram incapazes de obter qualquer outra informação sobre os movimentos populares, descentralizados e florescentes, todos eles movimentos independentes da oposição eleitoral tradicional, que controlavam.
Quando os movimentos de massas extra-parlamentares eclodiram, a Mossad e a CIA contavam com o aparelho estatal de Mubarak para assumir o controlo através da típica operação da cenoura e do pau: dar concessões simbólicas de transição para tomar as ruas pelo exército, a polícia e esquadrões da morte. À medida que o movimento crescia de dezenas de milhares para centenas de milhares e para milhões de pessoas, a Mossad e os principais congressistas pró Israel pediam a Mubarak para «aguentar». A CIA limitou-se a apresentar à Casa Branca os perfis políticos dos militares e políticos confiáveis e dos «flexíveis», de transição, dispostos a seguir os passos de Mubarak. Mais uma vez, a CIA e a Mossad demonstraram a sua dependência de aparelho de Estado egípcio para obter informações sobre quem poderia representar uma alternativa viável pró-americana e israelita, ignorando as necessidades básicas das massas. A tentativa de cooptar a velha guarda eleitoralista da Irmandade Muçulmana por meio de negociações com o vice-presidente General Omar Suleiman fracassou, em parte porque os Irmãos Muçulmanos não detinham o controlo do movimento e porque Israel e os seus seguidores nos EUA se opuseram. Além disso, a ala jovem dos Irmãos pressionou para que a organização se retirasse das negociações.
As falhas em matéria de espionagem complicaram os esforços de Washington e Telavive para sacrificar o regime ditatorial e salvar o Estado: nem a CIA nem a Mossad tinham ligações com qualquer dos novos líderes emergentes. Os israelitas não conseguiram encontrar nenhuma «cara nova», que tivesse adesão popular e disposta a desempenhar o papel pouco digno de colaborador da opressão colonial. A CIA tinha estado totalmente comprometida com a prática dos serviços secretos egípcios de torturar suspeitos de terrorismo (as «entregas extraordinárias») e com a vigilância dos países árabes vizinhos. Como resultado, Washington e Israel procuraram e promoveram o golpe militar para se antecipar a uma maior radicalização.
Em última análise, o fracasso da CIA e da Mossad em detectar e impedir a ascensão do movimento democrático popular põe em evidência a precariedade das bases do poder imperial e colonial. No longo prazo, não são as armas, os milhares de milhões de dólares, a polícia secreta e as câmaras de tortura que decidirão a história. As revoluções democráticas ocorrem quando a grande maioria de um povo se levanta e diz «basta», vai para as ruas, paralisa a economia, desmantela o Estado autoritário e exige a liberdade e as instituições democráticas, sem a tutela imperial ou a submissão colonial.
* James Petras, Professor da Universidade de Nova Iorque, é amigo e colaborador de odiario.info.
Fonte: ODiario. info
Tradução: Guilherme Coelho
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05/05/2011
Sobre Osama Bin Laden/EUA/Terrorismo
Fonte: http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=3198
This article below entitled Who is Osama bin Laden? was drafted on September 11, 2001. It was first published on the Global Research website on the evening of September 12, 2001.
Since 2001, it has appeared on numerous websites. The original September 11, 2001 posting is one of the most widely read articles on the internet, pertaining to Al Qaeda.
From the outset, the objective was to use 9/11 as a pretext for launching the first phase of the Middle East War, which consisted in the bombing and occupation of Afghanistan.
Within hours of the attacks, Osama bin Laden was identified as the architect of 9/11. On the following day, the “war on terrorism” had been launched. The media disinformation campaign went into full gear.
Also on September 12, less than 24 hours after the attacks, NATO invoked for the first time in its history “Article 5 of the Washington Treaty – its collective defence clause” declaring the 9/11 attacks on the World Trade Center (WTC) and the Pentagon “to be an attack against all NATO members.”
What happened subsequently, with the invasions of Afghanistan and Iraq is already part of history. Iran and Syria constitute the next phase of the US adminstration’s military roadmap.
9/11 remains the pretext and justification for waging a war without borders.
Michel Chossudovsky, September 11, 2008
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Excerpts from the Preface of America’s “War on Terrorism”, Second edition, Global Research, 2005.
At eleven o’clock, on the morning of September 11, the Bush administration had already announced that Al Qaeda was responsible for the attacks on the World Trade Center (WTC) and the Pentagon. This assertion was made prior to the conduct of an indepth police investigation.
That same evening at 9.30 pm, a “War Cabinet” was formed integrated by a select number of top intelligence and military advisors. And at 11.00 pm, at the end of that historic meeting at the White House, the “War on Terrorism” was officially launched.
The decision was announced to wage war against the Taliban and Al Qaeda in retribution for the 9/11 attacks. The following morning on September 12th, the news headlines indelibly pointed to “state sponsorship” of the 9/11 attacks. In chorus, the US media was calling for a military intervention against Afghanistan.
Barely four weeks later, on the 7th of October, Afghanistan was bombed and invaded by US troops. Americans were led to believe that the decison to go to war had been taken on the spur of the moment, on the evening of September 11, in response to the attacks and their tragic consequences.
Little did the public realize that a large scale theater war is never planned and executed in a matter of weeks. The decision to launch a war and send troops to Afghanistan had been taken well in advance of 9/11. The “terrorist, massive, casualty-producing event” as it was later described by CentCom Commander General Tommy Franks, served to galvanize public opinion in support of a war agenda which was already in its final planning stage.
The tragic events of 9/11 provided the required justification to wage a war on “humanitarian grounds”, with the full support of World public opinion and the endorsement of the “international community”.
Several prominent “progressive” intellectuals made a case for “retaliation against terrorism”, on moral and ethical grounds. The “just cause” military doctrine (jus ad bellum) was accepted and upheld at face value as a legitimate response to 9/11, without examining the fact that Washington had not only supported the “Islamic terror network”, it was also instrumental in the installation of the Taliban government in 1996.
In the wake of 9/11, the antiwar movement was completely isolated. The trade unions and civil society organizations had swallowed the media lies and government propaganda. They had accepted a war of retribution against Afghanistan, an impoverished country of 30 million people.
I started writing on the evening of September 11, late into the night, going through piles of research notes, which I had previously collected on the history of Al Qaeda. My first text entitled “Who is Osama bin Laden?” was completed and first published on September the 12th. (See full text of 9/12 article below).
From the very outset, I questioned the official story, which described nineteen Al Qaeda sponsored hijackers involved in a highly sophisticated and organized operation. My first objective was to reveal the true nature of this illusive “enemy of America”, who was “threatening the Homeland”.
The myth of the “outside enemy” and the threat of “Islamic terrorists” was the cornerstone of the Bush adminstration’s military doctrine, used as a pretext to invade Afghanistan and Iraq, not to mention the repeal of civil liberties and constitutional government in America.
Without an “outside enemy”, there could be no “war on terrorism”. The entire national security agenda would collapse “like a deck of cards”. The war criminals in high office would have no leg to stand on.
It was consequently crucial for the development of a coherent antiwar and civil rights movement, to reveal the nature of Al Qaeda and its evolving relationship to successive US adminstrations. Amply documented but rarely mentioned by the mainstream media, Al Qaeda was a creation of the CIA going back to the Soviet-Afghan war. This was a known fact, corroborated by numerous sources including official documents of the US Congress. The intelligence community had time and again acknowledged that they had indeed supported Osama bin Laden, but that in the wake of the Cold War: “he turned against us”.
After 9/11, the campaign of media disinformation served not only to drown the truth but also to kill much of the historical evidence on how this illusive “outside enemy” had been fabricated and transformed into “Enemy Number One”.
Michel Chossudovsky, Excerpts from the Preface of America’s “War on Terrorism”, Second edition, Global Research, 2005.
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Who Is Osama Bin Laden?
by Michel Chossudovsky
http://www.globalresearch.ca
September 12, 2001
A few hours after the terrorist attacks on the World Trade Centre and the Pentagon, the Bush administration concluded without supporting evidence, that “Osama bin Laden and his al-Qaeda organisation were prime suspects”. CIA Director George Tenet stated that bin Laden has the capacity to plan “multiple attacks with little or no warning.” Secretary of State Colin Powell called the attacks “an act of war” and President Bush confirmed in an evening televised address to the Nation that he would “make no distinction between the terrorists who committed these acts and those who harbor them”. Former CIA Director James Woolsey pointed his finger at “state sponsorship,” implying the complicity of one or more foreign governments. In the words of former National Security Adviser, Lawrence Eagleburger, “I think we will show when we get attacked like this, we are terrible in our strength and in our retribution.”
Meanwhile, parroting official statements, the Western media mantra has approved the launching of “punitive actions” directed against civilian targets in the Middle East. In the words of William Saffire writing in the New York Times: “When we reasonably determine our attackers’ bases and camps, we must pulverize them — minimizing but accepting the risk of collateral damage” — and act overtly or covertly to destabilize terror’s national hosts”.
The following text outlines the history of Osama Bin Laden and the links of the Islamic “Jihad” to the formulation of US foreign policy during the Cold War and its aftermath.
Prime suspect in the New York and Washington terrorists attacks, branded by the FBI as an “international terrorist” for his role in the African US embassy bombings, Saudi born Osama bin Laden was recruited during the Soviet-Afghan war “ironically under the auspices of the CIA, to fight Soviet invaders”. 1
In 1979 “the largest covert operation in the history of the CIA” was launched in response to the Soviet invasion of Afghanistan in support of the pro-Communist government of Babrak Kamal.2:
With the active encouragement of the CIA and Pakistan’s ISI [Inter Services Intelligence], who wanted to turn the Afghan jihad into a global war waged by all Muslim states against the Soviet Union, some 35,000 Muslim radicals from 40 Islamic countries joined Afghanistan’s fight between 1982 and 1992. Tens of thousands more came to study in Pakistani madrasahs. Eventually more than 100,000 foreign Muslim radicals were directly influenced by the Afghan jihad.3
The Islamic “jihad” was supported by the United States and Saudi Arabia with a significant part of the funding generated from the Golden Crescent drug trade:
In March 1985, President Reagan signed National Security Decision Directive 166,…[which] authorize[d] stepped-up covert military aid to the mujahideen, and it made clear that the secret Afghan war had a new goal: to defeat Soviet troops in Afghanistan through covert action and encourage a Soviet withdrawal. The new covert U.S. assistance began with a dramatic increase in arms supplies — a steady rise to 65,000 tons annually by 1987, … as well as a “ceaseless stream” of CIA and Pentagon specialists who traveled to the secret headquarters of Pakistan’s ISI on the main road near Rawalpindi, Pakistan. There the CIA specialists met with Pakistani intelligence officers to help plan operations for the Afghan rebels.4
The Central Intelligence Agency (CIA) using Pakistan’s military Inter-Services Intelligence (ISI) played a key role in training the Mujahideen. In turn, the CIA sponsored guerrilla training was integrated with the teachings of Islam:
“Predominant themes were that Islam was a complete socio-political ideology, that holy Islam was being violated by the atheistic Soviet troops, and that the Islamic people of Afghanistan should reassert their independence by overthrowing the leftist Afghan regime propped up by Moscow.”5
Pakistan’s Intelligence Apparatus
Pakistan’s ISI was used as a “go-between”. The CIA covert support to the “jihad” operated indirectly through the Pakistani ISI, –i.e. the CIA did not channel its support directly to the Mujahideen. In other words, for these covert operations to be “successful”, Washington was careful not to reveal the ultimate objective of the “jihad”, which consisted in destroying the Soviet Union.
In the words of CIA’s Milton Beardman “We didn’t train Arabs”. Yet according to Abdel Monam Saidali, of the Al-aram Center for Strategic Studies in Cairo, bin Laden and the “Afghan Arabs” had been imparted “with very sophisticated types of training that was allowed to them by the CIA” 6
CIA’s Beardman confirmed, in this regard, that Osama bin Laden was not aware of the role he was playing on behalf of Washington. In the words of bin Laden (quoted by Beardman): “neither I, nor my brothers saw evidence of American help”. 7
Motivated by nationalism and religious fervor, the Islamic warriors were unaware that they were fighting the Soviet Army on behalf of Uncle Sam. While there were contacts at the upper levels of the intelligence hierarchy, Islamic rebel leaders in theatre had no contacts with Washington or the CIA.
With CIA backing and the funneling of massive amounts of US military aid, the Pakistani ISI had developed into a “parallel structure wielding enormous power over all aspects of government”. 8 The ISI had a staff composed of military and intelligence officers, bureaucrats, undercover agents and informers, estimated at 150,000. 9
Meanwhile, CIA operations had also reinforced the Pakistani military regime led by General Zia Ul Haq:
‘Relations between the CIA and the ISI [Pakistan’s military intelligence] had grown increasingly warm following [General] Zia’s ouster of Bhutto and the advent of the military regime,’… During most of the Afghan war, Pakistan was more aggressively anti-Soviet than even the United States. Soon after the Soviet military invaded Afghanistan in 1980, Zia [ul Haq] sent his ISI chief to destabilize the Soviet Central Asian states. The CIA only agreed to this plan in October 1984…. `the CIA was more cautious than the Pakistanis.’ Both Pakistan and the United States took the line of deception on Afghanistan with a public posture of negotiating a settlement while privately agreeing that military escalation was the best course.”10
The Golden Crescent Drug Triangle
The history of the drug trade in Central Asia is intimately related to the CIA’s covert operations. Prior to the Soviet-Afghan war, opium production in Afghanistan and Pakistan was directed to small regional markets. There was no local production of heroin. 11 In this regard, Alfred McCoy’s study confirms that within two years of the onslaught of the CIA operation in Afghanistan, “the Pakistan-Afghanistan borderlands became the world’s top heroin producer, supplying 60 percent of U.S. demand. In Pakistan, the heroin-addict population went from near zero in 1979… to 1.2 million by 1985 — a much steeper rise than in any other nation”:12
CIA assets again controlled this heroin trade. As the Mujahideen guerrillas seized territory inside Afghanistan, they ordered peasants to plant opium as a revolutionary tax. Across the border in Pakistan, Afghan leaders and local syndicates under the protection of Pakistan Intelligence operated hundreds of heroin laboratories. During this decade of wide-open drug-dealing, the U.S. Drug Enforcement Agency in Islamabad failed to instigate major seizures or arrests … U.S. officials had refused to investigate charges of heroin dealing by its Afghan allies `because U.S. narcotics policy in Afghanistan has been subordinated to the war against Soviet influence there.’ In 1995, the former CIA director of the Afghan operation, Charles Cogan, admitted the CIA had indeed sacrificed the drug war to fight the Cold War. `Our main mission was to do as much damage as possible to the Soviets. We didn’t really have the resources or the time to devote to an investigation of the drug trade,’… `I don’t think that we need to apologize for this. Every situation has its fallout…. There was fallout in terms of drugs, yes. But the main objective was accomplished. The Soviets left Afghanistan.’13
In the Wake of the Cold War
In the wake of the Cold War, the Central Asian region is not only strategic for its extensive oil reserves, it also produces three quarters of the World’s opium representing multibillion dollar revenues to business syndicates, financial institutions, intelligence agencies and organized crime. The annual proceeds of the Golden Crescent drug trade (between 100 and 200 billion dollars) represents approximately one third of the Worldwide annual turnover of narcotics, estimated by the United Nations to be of the order of $500 billion.14
With the disintegration of the Soviet Union, a new surge in opium production has unfolded. (According to UN estimates, the production of opium in Afghanistan in 1998-99 — coinciding with the build up of armed insurgencies in the former Soviet republics– reached a record high of 4600 metric tons.15 Powerful business syndicates in the former Soviet Union allied with organized crime are competing for the strategic control over the heroin routes.
The ISI’s extensive intelligence military-network was not dismantled in the wake of the Cold War. The CIA continued to support the Islamic “jihad” out of Pakistan. New undercover initiatives were set in motion in Central Asia, the Caucasus and the Balkans. Pakistan’s military and intelligence apparatus essentially “served as a catalyst for the disintegration of the Soviet Union and the emergence of six new Muslim republics in Central Asia.” 16.
Meanwhile, Islamic missionaries of the Wahhabi sect from Saudi Arabia had established themselves in the Muslim republics as well as within the Russian federation encroaching upon the institutions of the secular State. Despite its anti-American ideology, Islamic fundamentalism was largely serving Washington’s strategic interests in the former Soviet Union.
Following the withdrawal of Soviet troops in 1989, the civil war in Afghanistan continued unabated. The Taliban were being supported by the Pakistani Deobandis and their political party the Jamiat-ul-Ulema-e-Islam (JUI). In 1993, JUI entered the government coalition of Prime Minister Benazzir Bhutto. Ties between JUI, the Army and ISI were established. In 1995, with the downfall of the Hezb-I-Islami Hektmatyar government in Kabul, the Taliban not only instated a hardline Islamic government, they also “handed control of training camps in Afghanistan over to JUI factions…” 17
And the JUI with the support of the Saudi Wahhabi movements played a key role in recruiting volunteers to fight in the Balkans and the former Soviet Union.
Jane Defense Weekly confirms in this regard that “half of Taliban manpower and equipment originate[d] in Pakistan under the ISI” 18
In fact, it would appear that following the Soviet withdrawal both sides in the Afghan civil war continued to receive covert support through Pakistan’s ISI. 19
In other words, backed by Pakistan’s military intelligence (ISI) which in turn was controlled by the CIA, the Taliban Islamic State was largely serving American geopolitical interests. The Golden Crescent drug trade was also being used to finance and equip the Bosnian Muslim Army (starting in the early 1990s) and the Kosovo Liberation Army (KLA). In last few months there is evidence that Mujahideen mercenaries are fighting in the ranks of KLA-NLA terrorists in their assaults into Macedonia.
No doubt, this explains why Washington has closed its eyes on the reign of terror imposed by the Taliban including the blatant derogation of women’s rights, the closing down of schools for girls, the dismissal of women employees from government offices and the enforcement of “the Sharia laws of punishment”.20
The War in Chechnya
With regard to Chechnya, the main rebel leaders Shamil Basayev and Al Khattab were trained and indoctrinated in CIA sponsored camps in Afghanistan and Pakistan. According to Yossef Bodansky, director of the U.S. Congress’s Task Force on Terrorism and Unconventional Warfare, the war in Chechnya had been planned during a secret summit of HizbAllah International held in 1996 in Mogadishu, Somalia. 21 The summit, was attended by Osama bin Laden and high-ranking Iranian and Pakistani intelligence officers. In this regard, the involvement of Pakistan’s ISI in Chechnya “goes far beyond supplying the Chechens with weapons and expertise: the ISI and its radical Islamic proxies are actually calling the shots in this war”. 22
Russia’s main pipeline route transits through Chechnya and Dagestan. Despite Washington’s perfunctory condemnation of Islamic terrorism, the indirect beneficiaries of the Chechen war are the Anglo-American oil conglomerates which are vying for control over oil resources and pipeline corridors out of the Caspian Sea basin.
The two main Chechen rebel armies (respectively led by Commander Shamil Basayev and Emir Khattab) estimated at 35,000 strong were supported by Pakistan’s ISI, which also played a key role in organizing and training the Chechen rebel army:
“[In 1994] the Pakistani Inter Services Intelligence arranged for Basayev and his trusted lieutenants to undergo intensive Islamic indoctrination and training in guerrilla warfare in the Khost province of Afghanistan at Amir Muawia camp, set up in the early 1980s by the CIA and ISI and run by famous Afghani warlord Gulbuddin Hekmatyar. In July 1994, upon graduating from Amir Muawia, Basayev was transferred to Markaz-i-Dawar camp in Pakistan to undergo training in advanced guerrilla tactics. In Pakistan, Basayev met the highest ranking Pakistani military and intelligence officers: Minister of Defense General Aftab Shahban Mirani, Minister of Interior General Naserullah Babar, and the head of the ISI branch in charge of supporting Islamic causes, General Javed Ashraf, (all now retired). High-level connections soon proved very useful to Basayev.”23
Following his training and indoctrination stint, Basayev was assigned to lead the assault against Russian federal troops in the first Chechen war in 1995. His organization had also developed extensive links to criminal syndicates in Moscow as well as ties to Albanian organized crime and the Kosovo Liberation Army (KLA). In 1997-98, according to Russia’s Federal Security Service (FSB) “Chechen warlords started buying up real estate in Kosovo… through several real estate firms registered as a cover in Yugoslavia” 24
Basayev’s organisation has also been involved in a number of rackets including narcotics, illegal tapping and sabotage of Russia’s oil pipelines, kidnapping, prostitution, trade in counterfeit dollars and the smuggling of nuclear materials (See Mafia linked to Albania’s collapsed pyramids, 25 Alongside the extensive laundering of drug money, the proceeds of various illicit activities have been funneled towards the recruitment of mercenaries and the purchase of weapons.
During his training in Afghanistan, Shamil Basayev linked up with Saudi born veteran Mujahideen Commander “Al Khattab” who had fought as a volunteer in Afghanistan. Barely a few months after Basayev’s return to Grozny, Khattab was invited (early 1995) to set up an army base in Chechnya for the training of Mujahideen fighters. According to the BBC, Khattab’s posting to Chechnya had been “arranged through the Saudi-Arabian based [International] Islamic Relief Organisation, a militant religious organisation, funded by mosques and rich individuals which channeled funds into Chechnya”.26
Cocluding Remarks
Since the Cold War era, Washington has consciously supported Osama bin Laden, while at same time placing him on the FBI’s “most wanted list” as the World’s foremost terrorist.
While the Mujahideen are busy fighting America’s war in the Balkans and the former Soviet Union, the FBI –operating as a US based Police Force- is waging a domestic war against terrorism, operating in some respects independently of the CIA which has –since the Soviet-Afghan war– supported international terrorism through its covert operations.
In a cruel irony, while the Islamic jihad –featured by the Bush Adminstration as “a threat to America”– is blamed for the terrorist assaults on the World Trade Centre and the Pentagon, these same Islamic organisations constitute a key instrument of US military-intelligence operations in the Balkans and the former Soviet Union.
In the wake of the terrorist attacks in New York and Washington, the truth must prevail to prevent the Bush Adminstration together with its NATO partners from embarking upon a military adventure which threatens the future of humanity.
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Michel Chossudovsky is the author of the international best America’s “War on Terrorism” Second Edition, Global Research, 2005. He is Professor of Economics at the University of Ottawa and Director of the Center for Research on Globalization.
To order Chossudovsky’s book America’s “War on Terrorism”, click here
Note: Readers are welcome to cross-post this article with a view to spreading the word and warning people of the dangers of a broader Middle East war. Please indicate the source and copyright note.
media inquiries crgeditor@yahoo.com
Related article: Where was Osama on September 11, 2001? by Michel Chossudovsky, 9 September 2006
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24/4/2011
O Correio Braziliense, corajosamente, mostrou o problema da ocupação do Bioma Cerrado. Há ainda muito mais a falar, a denunciar e a educar o povo, mas esse foi realmente um grande passo do jornal. Entre as questões em jogo, estão as imensas monoculturas e pecuárias, bem como a ganância da especulação imobiliária com sede de lucro. Tudo isso descrito aqui e outras denúncias fazem parte de um rol de estudos que denunciam a ação desses setores e o prejuízo de vários biomas de bacias hidrográficas interligados. Um ínfimo pedaço disso tudo é o rio Corrente, que também está na margem esquerda do São Franciso e que vem sistematicamente sendo prejudicado pelas monoculturas que avançam sobre o oeste baiano e ninguém faz nada para impedir!
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A morte no berço das águas
Série de reportagens mostra como a devastação do Cerrado provoca impactos irreversíveis nas bacias hidrográficas irrigadas pelo bioma e na qualidade de vida de 88,6 milhões de brasileiros
Vinicius Sassine
Com quase 20 mil nascentes, o Cerrado irriga seis das 12 regiões hidrográficas brasileiras e tem papel decisivo no abastecimento do Pantanal, situado na Bacia do Paraguai, e da Amazônia, na Bacia Amazônica. O bioma funciona como uma caixa d’água para 1,5 mil cidades de 11 estados, do Paraná ao Piauí, incluindo o Distrito Federal. Mas a fonte seca de forma dramática. Há provas suficientes da morte no berço das águas.
A maior savana da América do Sul, que ocupa um quarto do território brasileiro, foi o bioma desmatado com mais velocidade nos últimos 30 anos. Reduziu-se à metade para abrigar plantações de soja e, mais recentemente, de cana-de-açúcar. Levantamentos inéditos e com precisão científica nas nascentes comprovam a consequência da devastação: o fornecimento de água dentro e fora dos limites do Cerrado já sofre impactos irreversíveis, num processo de degradação localizado exatamente em pontos estratégicos para a existência e a qualidade dos recursos hídricos.
O retrato da morte do Cerrado é mais dramático quando se sabe que, desse reservatório, dependem regiões ocupadas por 88,6 milhões de brasileiros e lugares com grande quantidade de água, como a região amazônica. Para a Bacia São Francisco, onde está parte do Nordeste brasileiro, o Cerrado contribui com 94% da água que flui na superfície de rios e córregos. A água do Brasil Central chega aos estados que estão no litoral de Norte e Nordeste.
Um estudo do Ministério do Meio Ambiente (MMA), obtido pelo Correio com exclusividade, faz relação direta entre a devastação do bioma e as áreas de maior drenagem, aquelas com grande concentração de nascentes. Com base no levantamento feito pela Agência Nacional de Águas (ANA), o bioma foi dividido em 679 bacias de drenagem, situadas numa área de 3,5 mil km². Daquelas que drenam o Cerrado e outros biomas, 62,1% têm índice de desmatamento que impacta no abastecimento de água. As nascentes são assoreadas e deixam de aflorar por causa do rebaixamento do lençol freático. Morrem antes de encorpar e abastecer os corpos hídricos das bacias brasileiras.
Minas e São Paulo são os estados com maiores concentrações de nascentes. E são os lugares com os piores índices de desmatamento nas áreas de grande drenagem, assim como Mato Grosso do Sul e Goiás. O levantamento elaborado pelo Departamento de Políticas para o Combate ao Desmatamento do MMA relacionou 60 municípios com “risco muito alto” de impactos hidrológicos, ou seja, regiões de nascentes que perdem a função de abastecedoras por causa da devastação sem freio ou fiscalização. São os casos, por exemplo, das cidades de Pirajuba (MG) e Batatais (SP). Ricos em nascentes, os dois municípios têm um índice de desmatamento superior a 93%. Em Inocência (MS), que também aparece no documento do MMA, o desmatamento chegou a 85%.
“Essas áreas desmatadas são estratégicas para a manutenção do ciclo de unidades hidrológicas maiores”, aponta o engenheiro florestal Ralph Trancoso, responsável por elaborar o documento do MMA. A partir de amplo levantamento, que inclui pesquisas e visitas a áreas impactadas, o Correio reuniu provas sobre mortes de nascentes e de importantes cursos d’água do Cerrado. O resultado é publicado numa série de reportagens, a partir de hoje.
Poucos estudos analisam a relação entre desmatamento e qualidade dos recursos hídricos. Há levantamentos isolados, produzidos para regiões específicas. A ANA, por exemplo, mantém 89 estações sedimentométricas nos rios do Cerrado. Essas estações medem a quantidade de sedimentos nos cursos d’água, provenientes de processos de erosão. Pelas medições das estações, porém, é difícil correlacionar desmatamento e sedimentação.
A pedido do Correio, uma equipe da ANA e da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa Cerrados) analisou os dados de sedimentação nas cidades que mais desmataram o Cerrado nos últimos oito anos. Concluiu que em Formosa do Rio Preto, no Oeste da Bahia, a quantidade de sedimentos no Rio Preto mais do que dobrou a partir de 2002 — chegou a triplicar em algumas medições.
O oeste baiano é o espaço por onde avança a fronteira agrícola em curso no país, principalmente a cultura da soja. Formosa do Rio Preto está sucessivamente no topo da lista de desmatamento do Cerrado nos últimos anos. Foram 2,2 mil km² devastados, somente na cidade, entre 2002 e 2009. As estações detectaram também índice elevado de erosões em rios da Bacia Tocantins-Araguaia. Uma região de chapada em Formosa do Rio Preto concentra nascentes dos Rios do Sono e Preto, que desaguam no Rio Grande, ainda na Bahia. É esse o principal afluente do lado esquerdo do São Francisco. A soja avança pela chapada.
Distrito Federal
A sensação dos trabalhadores mais antigos da Estação Ecológica de Águas Emendadas, no Distrito Federal, é de que a vereda existente no local está se deslocando. Trata-se de um encolhimento. Há dezenas de nascentes na estação. A expansão imobiliária em Planaltina, grudada à reserva, os novos loteamentos e o avanço da soja impactam no tamanho da vereda, de seis quilômetros de extensão. Num determinado ponto, apenas uma estrada separa a estação das plantações de soja e milho.
Um fenômeno raro ocorre em Águas Emendadas: duas grandes bacias nascem ali. Dois córregos afloram da vereda, em direções opostas. O que corre para o norte encontra o Rio Maranhão e abastece o Rio Tocantins, da Bacia Tocantins-Araguaia. O córrego que segue para o sul forma rios que vão desaguar no Rio Paraná, da Bacia do Paraná. A ocorrência desse fenômeno depende da conservação da área de proteção ambiental (APA) da Lagoa Formosa, na parte norte de Águas Emendadas.
A lagoa não conta mais com proteção natural: está cercada por plantações de soja, chácaras, clubes e empreendimentos imobiliários. O volume de água diminuiu nos últimos anos. O Correio flagrou uma plantação de eucalipto praticamente às margens da lagoa, bem ao lado de um clube recreativo. Um homem aplicava os defensivos agrícolas na plantação.
Em outra margem, um “empresário do Lago Sul”, em Brasília, constrói um haras a 150m da lagoa. No local é possível ver postes inundados pelo curso d’água. A margem na área do haras foi aterrada e concretada para a instalação de muretas, que servem de suporte para a entrada de jet skis na lagoa. Os próprios funcionários contam que o Ibama já questionou a concretagem da margem. “Meu patrão teve de ir ao Ibama em Brasília para resolver”, diz um dos trabalhadores do local.
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MORTE NO BERÇO DAS ÁGUAS
Quando a irrigação é uma ameaça
No Cerrado, quase 7 mil pivôs centrais são utilizados por agricultores, os maiores consumidores dos recursos hídricos das bacias São Francisco, Tocantins-Araguaia e Parnaíba. Uso intensivo afeta o volume de rios
Vinicius Sassine
O produtor rural Ricardo Torres, 49 anos, comprou toda a tubulação necessária e se prepara para instalar o segundo pivô central de irrigação em sua propriedade agrícola, que produz soja, milho, feijão e sorgo. A água será sugada diretamente do Rio Cariru para as plantações, a exemplo do pivô que já funciona e que garante a produção nos meses mais secos. São 80 litros de água por segundo, canalizados do leito para as plantações.
O Cariru desemboca no Rio Jardim, importante curso d’água da Bacia do Rio Preto, no Distrito Federal. Os três rios estão mais estreitos, sofrem um processo de seca e diminuição da vazão. Incontáveis nascentes secaram nas fazendas. Falta água para os produtores, que precisam se revezar e racionar o uso em tempos de chuvas escassas. “Na seca, só planta quem tem pivô. Mesmo assim, já tive de atrasar plantios por falta d’água”, conta Torres.
A Bacia do Rio Preto, uma das mais importantes do Distrito Federal, perde sistematicamente capacidade hídrica por causa da irrigação intensiva. Estudos realizados há mais de 15 anos já apontavam o limite dos mananciais, obrigando o gerenciamento e o racionamento do uso da água.
Na região do Padef — no leste do Distrito Federal —, onde atuam 200 produtores rurais, cerca de 100 pivôs de irrigação captam a água necessária para a produção agrícola nos meses secos. Somente ao pequeno Rio Cariru estão conectados oito pivôs centrais. Serão nove quando os equipamentos adquiridos por Torres, a um custo de R$ 700 mil, começarem a funcionar. “As fazendas que têm um rio e têm outorga utilizam pivôs”, diz. O Governo do Distrito Federal (GDF) estuda cobrar pelo uso da água na bacia.
A opção dos grandes plantadores de soja e milho por pivôs centrais levou a um ganho de produtividade no Cerrado, mas representou a morte de nascentes e cursos d’água altamente explorados. No caso do plantio de soja, a irrigação permite duas colheitas por ano. Vistas do alto, essas plantações aparecem, em imagens de satélites, divididas em grandes círculos — cada círculo é um pivô central, com áreas variando entre 20 e 150 hectares. A consequência direta é a paulatina perda de água, que gera conflitos entre os produtores e a necessidade de racionamento. Ao todo, 6,7 mil pivôs centrais estão instalados no Cerrado, segundo os últimos levantamentos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa).
Fronteira agrícola
Três cidades concentram as maiores quantidades de pivôs: Cristalina (GO), Paracatu (MG) e Luiz Eduardo Magalhães (BA). São fronteiras agrícolas antigas e novas, que dependem da irrigação para produzir o grão. No DF, a Bacia do Rio Preto sente a pressão dos pivôs centrais. O Rio Jardim, que abastece 35 pivôs, já não comporta novos projetos de irrigação. Muitos produtores precisaram interromper as plantações ou os planos de expansão, por causa da falta d’água. A Cooperativa Agropecuária da Região do Distrito Federal (Coopa-DF), formada majoritariamente por gaúchos plantadores de soja, tenta resolver conflitos e administrar o uso da água na região.
“Com o desmatamento e a instalação de vários equipamentos de irrigação, diminuiu a vazão de água”, diz o produtor Ricardo Torres. “Os rios precisam de recuperação.” Grande parte das propriedades rurais não mantém as áreas de preservação permanente (APPs) e reservas legais, previstas em lei. A soja tomou conta de tudo e as manchas verdes se restringem aos pontos dos rios onde é captada a água dos pivôs. Pequenos trechos de mata ciliar são a única garantia de que os cursos d’água não serão assoreados por completo.
Poços
A irrigação representa o principal uso da água nas bacias São Francisco, Tocantins-Araguaia e Parnaíba. Supera a quantidade de água usada nas cidades, nas indústrias ou para a criação de animais. Em todo o país, para cada 10 litros de água consumidos, sete são destinados a irrigantes. Essa proporção se deve principalmente ao que ocorre no Cerrado, onde o cultivo de soja, milho e demais grãos depende de pivôs centrais.
Na divisa entre Goiás, Tocantins e Bahia, centenas de poços foram perfurados para exploração de águas subterrâneas. Os impactos são notados no Rio São Francisco. “Se os poços continuarem a ser escavados com alta vazão de água bombeada, a água vai correr para alimentar os poços, e não em direção ao rio”, alerta o pesquisador do Instituto de Geociências da Universidade de Brasília (UnB) José Elói Campos.
Os pivôs se multiplicaram no oeste da Bahia, a região de Cerrado mais devastada nos últimos oito anos. Soja e algodão são as principais culturas. Em 15 anos, até o ano de 2000, as áreas irrigadas quintuplicaram. No mesmo período, a vegetação de Cerrado encolheu 20%. A fronteira agrícola continuou em franca expansão na década seguinte.
A exemplo do que ocorre na zona rural do DF, a água é bombeada diretamente dos rios ou de poços cavados, que passaram a ser o principal recurso de irrigação em locais onde já se esgotou a concessão de outorgas para uso de água superficial. Em três anos, a quantidade de outorgas para uso de água superficial aumentou 76% na região. As autorizações para exploração de água subterrânea cresceram 125% no mesmo período.
“A preocupação no desenvolvimento da região está no uso intensivo da terra, na grande demanda de água e na vazão dos rios que alimentam o médio São Francisco”, afirma a pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) Márcia Tereza Gaspar, numa tese de doutorado sobre o oeste da Bahia. “A melhor eficiência da infiltração da água no solo se dá nas áreas de Cerrado.”
Infográfico:
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23/4/2011
O planeta reage aos desertos verdes
Nascida nos Estados Unidos, filha de pai holandês e mãe indiana, Ruby van der Wekken passaria por uma morena brasileira. Aliás, viveu, entre 2002 e 2005, em Alter do Chão (PA), participando, com o marido, de um projeto de cooperação internacional. Fisicamente, está agora em Helsinque, Finlândia. Mas seus sonhos e sentimentos não deixaram o Sul. Em 31 de março, Ruby ajudou a organizar uma ruidosa manifestação na sede da Stora Enso (ela envia a mensagem final, no vídeo abaixo). A maior produtora mundial de papel, de capital finlando-sueco, realizava na capital finlandesa sua assembleia anual de acionsitas. Do lado de fora, Ruby e seus companheiros denunciavam o envolvimento da empresa em formação de latifúndios, aquisição ilegal de propriedades, violência contra trabalhadores rurais e boicote à reforma agrária, no Brasil.
Os textos que a Biblioteca Diplô e Outras Palavras publicam agora, sobre o tema, são uma continuação, no plano do debate de ideias, da luta pedagógica de Ruby. Foram produzidos por jornalistas finlandeses do Le Monde Diplomatique e da revista Voima, com os quais nossos sites mantêm acordo de reprodução de conteúdos livre de copyright. Revalam a existência, nos países do Norte, de setores da opinião pública interesados em romper as cadeias internacionais de produção e consumo alienados que oprimem as maiorias no Sul.
Redigido por Hanna Nikkanen, de Voima, o primeiro texto é uma denúncia da ação da Stora Enso no Brasil (algo desconhecido pela esmagadora maioria dos brasileiros). Em poucas páginas, ácidas e riquíssimas em fatos, Hanna desfaz o mito de “responsabilidade social” a que a Stora Enso está procurando se associar, na Finlândia e em todo o mundo. Por trás desta imagem, relata o texto, a empresa reproduz um velho modelo de concentração de riquezas. Desloca para os países em desenvolvimento (América do Sul e China) as atividades mais sujas ambiental e socialmente. Concentra, contudo, todas as decisões estratégicas no andar de cima do planeta.
O rol das atividades executadas, para tanto, inclui posse disfarçada de terras em zonas de fronteira (o que a lei brasileira veda a estrangeiros). Atravessa as próprias eleições brasileiras (A governadora do Rio Grande do Sul, Yeda Crusius, é muito grata às contribuições eleitorais da Stora Enso; e a polícia militar sob seu comando, particularmente violenta, quando os sem-terra enfrentam a companhia…). Chega à política empresarial de manter as plantações de árvores no Brasil (onde terra e trabalho são muito mais baratos) e exportar, para a Finlândia, pasta de celulose não-industrializada. A etapa mais lucrativa da produção de papéis finos mantém-se na matriz.
Hanna relata, ao final, o desmascaramento de uma mentira. A política de “limpeza de imagem” da Stora Enso incluía uma difamação. O Movimento dos Sem-Terra (MST), que resiste às relações de exploração praticadas pela transnacional precisava ser demonizado. Para tanto, João Paulo Rodrigues, um dos líderes nacionais do movimento, foi acusado, no principal diário finlandês, de “exigir” que a empresa se retirasse do Brasil. Em caso de negativa, teria prometido desencadear violência e até mortes. Hanna participou ativamente, como se lê em seu texto, da desmontagem da farsa.
O segundo texto, de Mika Ronkko (editor do Le Monde Diplomatique finlandês e marido da ativista Ruby van der Wekken) é uma entrevista com o próprio João Paulo Rodrigues e João Pedro Stédile, também referência nacional do MST. Nas conversas com Mika, Stédile e Rodrigues deixam claro que a luta dos sem-terra não é contra o eucalipto, seu plantio ou a fabricação de papel no Brasil. O que eles querem é rever é a forma de cultivo e, em especial, as relações sociais que ela gera.
Papel, um dos usos do eucalipto1 e o produto final da Stora Enso é um bem necessário. Poderia ser consumido de forma mais racional e austera, evitando a necessidade de ampliar a exploração dos solos águas. Mas, acima de tudo, não precisa ser cultivado em latifúndios, nem como monocultura – um atentado à diversidade natural do campo.
“Um pequeno produtor poderia cultivar, digamos, dois hectares de eucalipto, numa propriedade de dez hectares”, sugere Stédile. Plantaria, além disso, alimentos. Ao invés de comprar imensas áreas, a empresa estabeleceria relações com milhares de pequenos produtores.
Perfeitamente viável, do ponto de vista técnico, a idéia não é executada por esbarrar num obstáculo político. O capital não existe para fazer caridade. Enquanto as sociedades não se conscientizarem e mobilizarem, sua tendência será sempre extrair o máximo lucro – sejam quais forem as consequências sociais e ambientais.
O mês de mobilizações do MST revela, mais uma vez, que uma parcela crescente dos agricultores brasileiros já não aceita estas circunstâncias. É estimulante saber que o mesmo se dá nos países onde estão sediadas as empresas que promovem desigualdade e devastação. (Antonio Martins)
DOSSIÊ DIPLÔ
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23/4/2011
Nórdica, discreta e… voraz! Retratos da Stora Enso
Por Hanna Nikkanen*
Veja também:
> O planeta reage aos desertos verdes, na Biblioteca Diplô
> Adeus à era do “me-dá-um-emprego-aí”, em Outras Palavras
A Stora Enso, gigante sueco-finlandesa da indústria “florestal”, está conquistando o Brasil em alta velocidade. A ação envolve múltiplos problemas, mas nem os acionistas, nem os consumidores parecem peocupados. A América do Sul poderá ser um Oeste Selvagem para a indústria do papel, baseada no eucalipto?
Há cerca de uma década, o exótico eucalipto foi o imã que atraiu os gigantes ocidentais da indústria florestal e do papel para o calor das disputas por terra, corrupção e acusações de crime ambiental na América do Sul e no Extremo Oriente. O desejo eram lucros rápidos.
A produção desloca-se para o Sul, mas o centro de decisões permanece no Norte distante. Neste arranjo, é impossível controlar todos os elos da cadeia de produção. Há sempre pontos cegos. A informção sobre problemas nas plantações do Sul quase nunca chega aos ativistas ou à midia do Norte. Quando isso acontece, a falta de contexto torna impossível desencadear as ações necessárias. Políticos, acionistas e consumidores do Norte ficam sem condições de atuar.
Esta desconexão fez do Sul, durante uma década, o Oeste Selvagem para a indústria de reflorestamento. Quando as leis eram violadas, ou as tensões locais transformavam-se em conflitos, não havia, nos países-sedes, riscos de demissão de dirigentes nem de boicotes de consumidores.
A Stora Enso, finlando-sueca, é uma das muitas grandes empresas que migraram para o Sul, em busca de matérias-primas baratas. É também uma das grandes companhias obrigadas a enfrentar o fato de que os tempos de Oeste Selvagem estão terminando. ONGs suecas e finlandesas e estão somando forças para que a opinião pública dos dois países preocupe-se com a imagem da empresas. Ela responde com uma campanha agressiva de lavagem de imagem.
Com o enorme crescimento das plantações destinadas à produção de celulose, é pouco provável que as disputas entre as corporações e os camponeses se atenuem. Porém, estas disputas envolveram, na última década, muito mais que disputas locais, no Sul ou no Norte. Elas dizem respeito a uma batalha constante sobre o controle de o que atrai a atenção da mídia no Norte e o que ocorre de fato no Sul.
Storalândia, Brasil
No sul do Brasil, a companhia nórdica de reflorestamento reina. Conflitos nas plantações, eleições para governo do Estado e violência contra pequenos agriculturoes são fios da mesma meada
Dia Internacional das Mulheres, 2008. Estado do Rio Grande do Sul, Brasil.
Trabalhadores em latifúndios protestam contra as plantações de eucalipto da Stora Enso. Segundo o Movimento dos Sem-Terra (MST), a empresa driblou as leis do país para comprar vastas áreas para suas plantações. Ao final de estranhas aquisições, dois executivos da empresa tornaram-se os dois maiores proprietários de terra do Estado. Por meio de uma companhia de fachada, eles possuem 45 mil hectares de terra que a Stora Enso não poderia legalmente adquirir.
A manifestação termina com um ataque da polícia militar. Quase cem trabalhadoras rurais são feridas por balas de borracha e bombas. A operação é dirigida pelo subcomantante Lauro Binsfeld, chefe da segurança pessoal da governadora Yeda Crusius.
O incidente é destaque nos jornais da Europa. A Stora Enso desculpa-se na mídia finlandesa, mas permanece em silêncio no Brasil.
Agosto de 2009. São Gabriel, Rio Grande do Sul.
Ao menos trinta sem-terras, que haviam ocupado uma propriedade, são feridos num ataque da polícia militar. Houve casos parecidos na área, antes, mas desta vez a violência é ainda mais brutal. Os presos dizem que a PM disparou contra eles com armas que produzem choques elétricos e os obrigou a passar por um “corredor polonês”. Muitos dos detidos exibem ossos quebrados, ao serem libertados.
A operação, assim com outra em Tarumã, no ano anterior, foi conduzida por Lauro Binsfeld, o chefe de segurança da governadora.
Março de 2010. Costa Dourada, sul da Bahia.
A equpe armada de segurança da empresa Fibria abre fogo contra dois pequenos agricultores que recolhiam lenha. Henrique de Souza Pereira, de 24 anos, morre. Osvaldo Pereira Bezerra tem o braço quebado.
A Fibria e parceira da Stora Enso no sul da Bahia.
Com o crescimento das plantações de eucalipto, pequenos agricultores vizinhos acabam recolhendo lenha nas terras de propriedade das empresas de papel. Em seu press-release sobre a morte de Henrique, a Fibria expressa às autoridades do Estado sua preocupação com o aumento do “roubo de madeira” na área, e requer ações para restringir estas “atividades ilegais”.
Yeda Crusius, a governadora do Rio Grande do Sul, é conhecida pelo apoio que dá às megaempresas e por reprimir os protestos dos trabalhadores rurais. É seguro que, em Tarumã, Lauro Binsfeld recebeu da governadora a ordem de atacar; e é muito provável que o mesmo tenha ocorrido em São Gabriel.
A situação no Estado é explosiva. Há muitos trabalhadores rurais desempregados e cerca de 2,5 mil famílias vivem em barracas. Ao mesmo tempo, as aquisições de áreas por parte de grandes empresas estão reduzindo as terras usadas para cultivo de alimentos.
Para os ativistas, estas aquisições, feitas com por meio de testas-de-ferro, são ilegais. A empresa alega que são uma fase necessária, até que as autorizações para compra definitiva sejam concedidas.
As fábricas de celulose que a Stora Enso e empresas associadas a ela estão planejando, em áreas de fronteira no Brasil, Uruguai e Paraguai, vão requerer imensas plantações de eucalipto. As companhias têm enorme influência econômica na área e fazem lobby permanente para que mudanças na lei permitam-lhe adquirir diretamente as terras. Deste ponto de vista, o apoio de políticos como Yeda é ouro.
Um exemplo concreto: em 2006, a Stora Enso e sua companhia-parceira Aracruz doaram à campanha de Crusius, de acordo com os números oficiais, cerca de 300 mil reais.
Yeda Crusius é apenas uma, ente os muitos políticos brasieliros apoiados pela Stora Enso. De acordo com dados oficiais do TSE, a empresa doou em 2006, junto com a Aracruz e a Veracel (que resulta de sociedade entre Stora e Aracruz) cerca de R$ 1,2 milhões para campanhas de políticos brasileiros. As doações da Stora Enso concentraram-se no Rio Grande do Sul. A Veracruz financiou políticos na Bahia, o Estado em que é acusada por crimes ambientais (Mais tarde, a Veracel foi condenada por desmatamento ilegal no sul do Estado e está sendo acusada de pagamento de propinas, no caso).
Em 2009, a ética das doações da Stora Enso a políticos brasileiros foi finalmente questionada na matriz das empresas – por azar, no mesmo instante em que eclodia um escândalo sobre financiamento das eleições na Finlândia. A situação tornou-se ainda mais desconfortável pelo fato de o Estado finlandês ser, com 30% do capital, o maior acionista da Stora Enso.
O escândalo nos países nórdicos foi tão forte que obteve algo não alcançado pelos movimentos que denunciam a Stora Enso no Brasil. A empresa anunciou que vai interromper as doações a campanhas eleitorais no Brasil.
Yeda Crusius continua a governar o Rio Grande do Sul.
[Veja, nos links a seguir, a lista das doações a campanhas eleitorais e suas parceiras no Brasil, em 2006:
Stora Enso | Veracel | Aracruz ]
Florestas, mentiras e fitas de áudio
Há poucos anos, a Sotra Enso era uma gigante da indústria florestal conservadora e desajeitada, cuja estratégia de responsabilidade corporativa era permanecer em silêncio. Agora, tudo mudou. O circo midiático montado no ano passado entre a empresa e ONGs brasileiras diz algo não apenas sobre uma campanha agressiva de lavagem de imagem, mas também sobre os pontos cegos da mídia europeia.
Agosto de 2009. Helsingin Sanomat, o jornal-líder na Finlândia publica, em seu suplemento de domingo, uma longa matéria sobre as ações da Stora Enso no Brasil. Os repórteres fizeram um grande trabalho. Porém, algo me surpreende.
O artigo cita João Paulo Rodrigues, representante do MST, quando encontrou-se, um mês antes, como Eija Pitkänen, responsável por sustentabilidade da empresa. “Se a Stora Enso continuar seu projeto, o MST vai provocar mais conflitos, violência e até mortes, que causarão publicidade negativa internacional para a empresa”, teria dito Rodrigues, segundo o jornal.
A imagem construída pelo texto choca-se com minhas experiências sobre representantes do MST. Ameaças de provocar conflitos e sacrificar os próprios agricultores não estão em sintonia com nada que eu tenha ouvido antes deles. Que demônios teriam levado Rodrigues a falar deste modo?
Nas semanas seguintes, a Stora Enso frequentemente usou a citação em suas declarações públicas. Quando a empresa é criticada por suas ações no Brasil, ela brande as supostas ameaças de violência de seus oponentes. O Helsingin Sanomat publica uma resposta de Jouko Karvinen, executivo-chefe da companhia, em que ele ataca um pesquisador finlandês que estudou o assunto. É óbvio, sugere o texto, que o cientista está do mesmo lado dos violentos terroristas.
Até então, os finlandeses não tinham uma ideia clara do que é o MST, mas agora o movimento ganha rápida e notória reputação. É apresentado como um grupo terrorista.
Algumas semanas mais tarde, recebo uma mensagem do Brasil. As notícias sobre a repentina atenção da mídia finlandesa chegaram aos ativistas do MST. O autor da mensagem não pode entender de onde o Helsingin Sanomat obteve a citação. Assegura que Rodrigues não disse nada semelhante, durante o encontro.
Por desconfiança mútua, tanto o MST quanto a Stora Enso gravaram o encontro sem revelar o registro para a outra parte. Ambas as partes tinham prometido que não haveria gravadores e nada das discussões vazaria.
Como as promessas de silêncio já haviam sido quebradas, peço ao MST e à Stora Enso que me forneçam suas gravações. Dessa forma, a verdade poderia ser facilmente verificada.
O MST imediatamente envia-me uma fita de áudio. A Stora Enso recusa-se a fazer o mesmo.
O chefe de Comunicação Corporativa na Stora Enso, Lauri Peltonen, é novo em seu posto. Foi recrutado em 2009, por uma companhia atacada gravemente por publicidade negativa. A transferência da produção de celulose para o Sul provocou críticas ácidas nas duas pontas do processo. A comunicação da companhia durante a crise foi pobre durante todo o processo. Por isso, a Stora Enso aposta em Peltonen, esperando transformações radicais.
Peltonen desempenha bem seu papel. Vejo sua atuação mais tarde, num seminário de comunicações, onde faz uma apresentação sobre “A Stora Enso – uma das companhias mais responsáveis do mundo”. A audiência é constituída de colegas, cuja admiração aberta faz-me sentir um pouco inconfortável.
Depois da chegada de Peltonen, duas coisas sofreram mudanças drásticas. Primeiro, o aumento notável da atenção para a ética e ecologia. A velha Stora Enso não se preocupava muito com isso. Peltonen conseguiu o que antes distante executivo-chefe, Jouko Karvinen, voasse para a China para se encontrar com famílias de agricultores – em frente de câmeras fotográficas, é claro. A influência do chefe de comunicação também se fez notar quando Karvinen celebrou, com ativistas do Greenpeace, um acordo de proteção de florestas na Lapônia. A vitória do relações-públicas não exigiu muito esforço. Foi só uma questão de converter más notícias sobre o fechamento de fábricas e aumento do desemprego em agradáveis fatos “verdes” sobre a proteção das florestas.
A segunda mudança é a crescente agressividade da comunicação de crise da empresa. O incidente da fita gravada é um bom exemplo.
“Somos uma empresa de capital aberto”, diz Peltonen, quando lhe peço que me forneça o áudio do encontro em São Paulo, para checar se a citação do Helsingin Sanomat estava correta. “Uma empresa de capital aberto não pode mentir. No entanto, nossos oponentes não estão sujeitos a tais restrições”.
Peltonen parece ser uma sujeito cordial, mas ao telefone ele mostra-se, agora, surpreendentemente agressivo. Deve ser a característica pessoal de que se fala tanto. Fui colocada em sua lista suja, e ele subitamente parece transformar-se num captador de informações dedicado a seu trabalho – não um chefe de Comunicações.
Também penso: se eu não estivesse tão convencida de seguir a pista certa, desistiria com certeza. A autoconfiança de Peltonen é impressionante.
Não sou autorizada a ouvir a gravação. A desculpa é pobre. Ele diz que a fita está no Brasil e teria de ser embarcada para a Finlândia. No exato instante em que estou a ponto de dizer algo espirituoso sobre a introdução de tecnologia moderna no Hemisfério Sul, recebo uma mensagem eletrônica contendo a gravação do MST.
Embora seja longa, consigo encontrar o trecho utilizado na citação ameaçadora publicada no Helsingin Sanomat.
Está tudo claro, agora. João Paulo Rodrigues nada diz sobre o MST “provocar mais conflitos”. Ele apenas propõe uma trégua. Se a companhia aceitar retardar os planos de quadruplicação dos cultivos, haverá mais tempo para resolver as disputas de terra em andamento e os problemas ambientais. Do contrário, a situação vai se agravar, diz Rodrigues.
“O conflito no Rio Grande do Sul não tem a ver com a polícia militar. O conflito é sobre eucaliptos”, prossegue Rodrigues, na fita. “Ele terá sérias consequências ambientais”.
Publicamos as gravações e a tradução dos pontos principais no mesmo dia. Nas semanas seguintes, a fita será escutada pelo Helsingin Sanomat e pela Stora Enso. Ambas as partes publicam sua própria tradução do trecho. Ninguém é capaz de encontrar Rodrigues falando nada sobre provocar violência contra ninguém.
A Stora Enso não admite que mentiu. Em seu press-release, a companhia acusa todas as outras partes de mentir, mas não detalha as acusações.
Mais tarde, os repórteres do Helsingin Sanomat admitiram que realmente não haviam ouvido as fitas antes de escrever o artigo. Tinham confiado no relato de Lauri Peltonen sobre a conversa entre Pitkänene Rodrigues.
Significa que o jornal publicou uma citação que obteve de Peltonen, sem mencionar que não ouviu a gravação e que a havia obtido de uma fonte não-isenta na disputa entre as duas partes. Depois da primeira publicação, a mentira foi repetidamente citada nas páginas do mesmo jornal, até que o debate finlandês finalmente chegou aos ouvidos de um ativista brasileiro.
É algo muito preocupante, por duas razões.
Primeiro: estamos testemunhando um lado mais sombrio da limpeza de imagem? Quando a direção da companhia está nos países nórdicos e os conflitos desagradáveis ocorrem no Sul do Brasil, é mais barato difamar os oponentes brasileiros na mídia nórdica do que desistir de projetos lucrativos porém questionáveis. É fácil travar uma luta desequilibrada. O que pode fazer um trabalhador rural brasileiro para limpar sua reputação na Europa, tendo de enfrentar todo o setor de ocmunicação de uma grande empresa?
Segunda razão: a checagem das fontes na mídia mainstream da Europa é tão frágil a ponto de tornar-se vulnerável a estratégias desavergonhadas como esta?
[A fala de João Paulo Rodrigues está aqui.]
* Hanna Nikkanen é redatora-chefe de Fifi, um jornal electrónico finlandês, e jornalista de Voima, revista mensal alternativa. Hanna fala português
MAISEste texto, publicado no âmbito da parceria entre Outras Palavras e o Le Monde Diplomatique finlandês, é parte de um esforço para ampliar o debate sobre o modelo agrícola brasileiro, no mês em que o MST realiza uma série de manifestações em favor da reforma agrária.
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23/4/2011
Adeus à era do “me-dá-um-emprego-aí”
By Antonio Martins
“Mentir é o que a Stora Enso faz melhor”, afirma João Pedro Stédile, na sede do MST, em São Paulo. Stédile, um economista de 56 anos, é o mais conhecido líder e fundador do MST, que é, com 1,5 milhão de membros, um dos mairoes movimentos sociais do mundo. Defende o direito dos pequenos agricultores a sua própria terra. O Brasil tem uma das maiores concentrações agrárias do planeta: 1% da população controla aproximadamente metade da área agricultável. Devido à estagnação do programa oficial de reforma agrária oficial, participantes do movimento ocupam terras dos grandes proprietários
As ocupações enfurecem os latifundiários, e a mídia comercial reflete seu sentimento. Os sem-terra são acusados de terrorismo e, em algumas partes do país, criminalizados. “A Stora Enso adotou as opiniões e métodos da elite brasileira”, diz Stédile.
“A empresa distorce deliberadamente nossas palavras”, continua João Paulo Rodrigues, também coordenador do movimento. Rodrigues é parte da nova geração do MST, que cresceu na luta pela terra. Ele foi criado num assentamento sem-terra e é, neste sentido, uma evidência viva da reforma agrária radical.
Segundo estimativas do movimento, 380 mil famílias foram assentadas em terra não-cultivada. Além de plantarem, foram capazes de enviarsuas crianças à escola, principalmente por meio das escolas do MST. No entanto, 97 mil famílias ainda esperam seu pedaço de terra nos acampamentos do MST, vivendo em barracas à beira das estradas.
A Stora Enso é acusada de retardar a reforma agrária e considerada suspeita por organizações ambientalistas. Segundo João Paulo Rodrigues, a empresa disputa terras com os acampados, que estão entre os mais desfavorecidos da socedade brasileira. “Em dez anos, o MST obteve 80 mil hectares de terra por meio de ação de massas e pressão intensa sobre os latifúndios, enquanto a Stora Enso obteve centenas de hectares em apenas três anos. Isso é inaceitável”.
Apesar de tudo isso, a Stora Enso e o MST concordaram em se encontrar, em junho de 2009. O movimento queria informar os executivos finlandeses sobre casos de abuso da companhia no Brasil. Estavam ansiosos para superar os desentendimentos. “Esparávamos resolver as pendências debatendo os conflitos racionalmente com líderes suecos e finlandeses da empresa”, diz João Paulo Rodrigues. “Contudo, todas as nossas expectativas foram frustradas quando a companhia atacou-nos publicamente, ao invés de resolver os conflitos e melhorar seus métodos”
Lauri Peltonen, que coordena a comunicação da empresa, afirmou em agosto ao maior jornal diário da Finlândia, o Helsingin Sanomat, que Rodrigues havia ameaçado a empresa com violência, caso ela não deixasse o Brasil. Outro líder da Stora Enso relatou no jornal como, durante ação num eucaliptal, mulheres sem-terra supostamente atingiram policiais com suas foices. O principal executivo da Stora Enso, Jorma Karvinen, repetiu as acusações uma semana depois, no mesmo jornal.
“É tudo mentira”, assegura João Paulo Rodrigues”. O que eu de fato disse é o contrário: os sem-terra estão sofrendo violências e mesmo mortes em consequência das ações da Stora Enso”.
O registro da propriedade de terras no Brasil é confuso; nos cartórios, há muitos casos de corrupção. As disputas são comuns e, com frequência, violentas. Em geral, são os ativistas pela reforma agrária que mais sofrem. Segundo a Comissão Pastorual da Terra no Brasil, mais de 1.300 agricultores foram assassinados em conflitos, nas últimas duas décadas.
“A concentração de terras pela Stora Enso amplia a violência no campo. Quando os agricultores reivindicam mais terras para a reforma agrária – inclusive as de propriedade da Stora Enso – são atacados pelos latifundiários e a polícia”, diz João Paulo Rodrigues.
Para Stédile, a Stora Enso alimenta deliberadamente a mídia com mentiras. “Segundo os jornais brasileiros, a empresa tem permissão especial para suas plantações em áreas de fronteira. Os jornais finlandeses falam sobre ameaças de violência do MST. A empresa nunca diz a verdade”
A reputação da multinacional nórdica está se perdendo. Promotores brasileiros iniciaram diversas ações contra a Stora Enso, envolvendo desde acusações de pagamento de propinas a compras ilegais de terra.
Segundo organizações amientalistas, as monoculturas de eucalipto são nocivas ao ambiente. Provocam, entre outros danos, esgotamento dos lençóis de água, deterioração do solo e problemas ambientais causados pelo uso de pesticidas e herbicidas.
Contudo, para o MST os problemas sociais são os piores. As grandes fazendas engolem as menores. As oportunidades de emprego no campo diminuem e sobra menos terra para a produção local de alimentos. As enormes propriedades também atrasam a reforma agrária, porque não sobre terra para distribuir.
Uma nova página abriu-se na política brasileira em 2002, quando Luís Inácio Lula da Silva, do PT, tornou-se presidente. Os movimentos sociais constituíam a base do partido. O MST e pequenos sindicatos eram seus principais apoiadores no campo. Estes movimentos esperavam que o PT iniciasse uma revolução social. Isso não se deu. O governo de Lula realizou algumas reformas sociais, mas sempre por meio de barganhas políticas. Por isso, o governo e o PT dissociaram-se de movimentos sociais como o MST.
“O segundo governo de Lula tornou mais lenta a reforma agrária. No primeiro, havia o objetivo de assentar 100 mil famílias, mas nos últimos anos esta meta foi reduzida a 20 mil famílias por ano. Além disso, a maior parte dos novos assentamentos está concentrada na Amazônia — que deveria ser protegida, e não povoada”, diz Rodrigues.
O conflito entre a Stora Enso e o MST expressa o choque de dois modelos de desenvolvimento. “Não somos contra a Stora Enso ou a indústria de papel, mas nos opomos ao modelo de economia que representam, no qual a terra é concentrada em mãos de uma pequena elite”, diz Rodrigues.
Para os sem-terra, a Stora Enso simboliza a agricultura superconcentrada que ameaça os pequenos produtores. Ela baseia-se em enormes propriedades e investimentos maciços, com isenções fiscais. Controla toda a terra agricultável e esgota fontes de água. Polui o ambiente com pesticidas”, diz Rodrigues. “Queremos outro tipo de desenvolvimento, que estimule e apoie a produção sustentável de alimentos, e crie empregos no campo”.
João Pedro Stédile diz que também é possível cultivar eucalipto em pequenas propriedades, de forma sustentável. “Um pequeno produtor poderia cultivar digamos, dois hectares de eucaliptos numa propriedade de dez hectares, sugere Stédile. “Mas as empresas de papel e celulose não querem este modelo, por julgarem que os lucros são insuficientes. Exigem sempre o lucro máximo, ignorando as consequências sociais e ambientais”.
Stédile não tem nada agradável a dizer sobre a Stora Enso: “A empresa envia à Finlândia a polpa produzida em suas instalações na Bahia como matéria-prima inacabada. Os brasileiros não se tiram proveito de nada. Os exploradores anteriores, empresas brasileiras, ao menos produziam parte do papel no Brasil. A Stora Enso age contra a lei. Muitas ações judiciais graves foram iniciadas contra ela, que também se envolveu em corrupção. Mas continua tendo enormes lucros em sua operação”.
“De que adianta a empresa pagar, aqui, algumas dezenas de milhões em impostos, se envia centenas de milhões para a Finlândia? O Estado finlandês, maior proprietário da empresa, não se envergonha desta operação neo-imperialista”?1
O ministro finlandês da Defesa, Jyri Häkämies (do Partido da Coalizão Nacional) — cujas responsabilidades incluem asssuntos relacionados à direção de empresas de que o Estado participa — afirmou em diversas ocasiões, no Parlamento finlandês, que o governo não intervirá nas operações da Stora Enso. Ecoando o ministro, Kari Järvinen, executivo-chefe da Solidium, a holding que articula a participação estatal em empresas finlandesas, não vê necessidade de tomar providências em relação às queixas sobre crimes praticados no Brasil2
Häkämies admitiu publicamente que a situação da Stora Enso prejudica a reputação de uma empresa controlada pelo Estado finlandês3. Ainda assim, ele, um cacique do partido de direita no governo, sustenta que a responsabilidade do Estado é criar um ambiente favorável aos negócios, e não interver nas operações do dia-a-dia. “Nenhum governo, de nenhuma orientação, interveio nas atividades de produção da empresa. Não será o nosso que começará a fazê-lo”4. (Tradução do inglês: Antonio Martins).
Mika Rönkkö é editor do Le Monde Diplomatique finlandês. Viveu na Namíbia e no Brasil. Fala português.
1 Matéria no Helsingin Sanomat, em 30/8/2009 http://www.hs.fi/english/article/Stora+Enso%E2%80%99s+jackpot/1135248979552
2Declarações no Helsingin Sanomat, em 30/8/2009:
3 “Agricultores chineses perdem terras para as plantações da Stora Enso”, matéria no Helsingin Sanomat, em 26/4/2009, e “Sindicatos finlandeses indignados com a transferência do controle da Stora Enso para a Suécia”, Helsingin Sanomat, 23.3.2009
http://www.hs.fi/english/article/Chinese+farmers+lose+land+to+Stora+Enso+tree+plantations/1135245537698 http://www.hs.fi/english/article/Finnish+labour+unions+outraged+at+moving+Stora+Enso+orders+to+Sweden/1135244533769
4 Matéria no Yle News, em 27/3/2009 http://yle.fi/uutiset/news/2009/03/hakamies_state_will_not_pressure_stora_enso_to_stay_645905.html?sendtofriend
‘PT mudou a ponto de ficar quase irreconhecível’, diz cientista política
A cientista política Wendy Hunter, professora da Universidade de Austin, Texas (EUA), acaba de escrever um livro sobre as transformações por que passou o PT entre 1989 e 2009. Para ela, o partido “mudou a ponto de ficar quase irreconhecível”.
Além de diferenças que ela chama de mais óbvias, como a moderação ideológica do PT e as alianças que o partido atualmente faz (“inimagináveis há 20 anos”), Hunter menciona a própria candidatura de Dilma Rousseff à Presidência da República, uma “novata” na legenda.
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Para Hunter, o presidente Lula teve papel central na condução das mudanças, mas ela não vê as alas radicais conquistando mais espaço no governo Dilma: “O PT está bem firme nas mãos dos moderados”.
A seguir, trechos da entrevista concedida por e-mail.
Folha – A sra. acaba de publicar um livro em que estuda as transformações por que passou o PT desde 1989. Quais as principais mudanças?
Wendy Hunter – O PT mudou a ponto de ficar quase irreconhecível em relação ao que era na década de 1980.
Um dos primeiros e mais óbvios aspectos diz respeito à moderação ideológica do partido, que pode ser percebida não apenas nos seus programas mas também em suas políticas de governo.
A expansão eleitoral do PT em todas as esferas de governo foi extraordinária. O PT cresceu lenta e consistentemente. Este último ponto é importante porque muitos partidos de esquerda na América Latina tiveram um crescimento espetacular seguido de uma queda tão rápida quanto a ascensão.
As alianças que o PT faz hoje seriam inimagináveis há 20 anos. A flexibilização do compromisso de fazer alianças apenas com partidos de esquerda foi impressionante, mesmo num país conhecido pelas coligações oportunistas. Tome como exemplo os dois últimos vice-presidentes: José Alencar (PL) e Michel Temer (PMDB).
Aliás, a atual posição do PT em relação ao PMDB, em comparação com a distância que outrora mantinha, mostra bem o quanto um processo de “normalização” ocorreu com o partido. Basta lembrar que a história teria sido diferente se os 4,7% obtidos por Ulysses Guimarães em 1989 tivessem ido para Lula.
A eleição de Dilma Rousseff também faz parte desse “pacote” de mudanças?
Sim, é um ponto importante a ser levado em consideração o tipo de candidato que o PT lança atualmente.
O simples fato de que a candidata à Presidência neste ano foi alguém que ingressou no partido há pouco tempo –dez anos– é testemunha dessas mudanças. Além disso, há diversos candidatos que não vieram do sindicalismo ou dos movimentos sociais, por exemplo.
Antes, regras internas determinavam que os candidatos deveriam ou ser fundadores do PT ou ter participado das redes sociais do partido. Isso mudou muito.
Lula foi a principal figura do PT durante todo esse tempo. Qual sua participação nesse processo de transformação?
Lula teve um papel central na administração e na promoção de mudanças no PT.
Transformações programáticas que partidos fazem –por exemplo, o afastamento do socialismo e a aproximação do mercado– precisam encontrar apoio não só no eleitorado mas também dentro da própria legenda.
Lula foi figura crucial ao encorajar o partido a ouvir mais o eleitorado e suas aspirações, sobretudo após a derrota de 1994 para Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e as muitas mudanças econômicas positivas que ocorreram na era FHC.
Ao mesmo tempo, Lula foi sensível às lutas e às dinâmicas internas do PT e soube conduzi-las de forma a apoiar um caminho moderado. Felipe González, na Espanha, e Nelson Mandela, na África do Sul, podem ser vistos de forma semelhante.
E que papel ele deve ter como ex-presidente?
Não creio que ele vá simplesmente se aposentar e ficar calado. Tampouco acredito que vá se envolver com assuntos menores da administração e do novo governo.
Acho que Lula terá um papel crucial na mediação dos conflitos que podem surgir entre o partido e o governo Dilma. Lula tem muito mais força pessoal do que Dilma, e a relação que ele tem com o PT e suas várias correntes é muito mais profunda.
Mas é importante destacar que Dilma terá a sua cota de desafios políticos à frente. O fato de que a oposição controla tantos Estados –alguns muito importantes– será uma fonte de desafios. Teremos que ver como ela lidará com essa oposição.
Sabíamos muito mais sobre Lula e seu estilo de negociação política antes de ele chegar ao poder do que sabemos agora sobre Dilma.
O que podemos esperar do PT durante o governo Dilma? As tendências mais radicais ganharão mais espaço?
Acho que o PT está bem firme nas mãos dos moderados. Se olharmos as eleições internas do partido, veremos que não parece haver muito apoio às opções radicais.
O fato de que as figuras históricas ligadas aos antigos valores e plataformas do PT não vençam nessas disputas internas sugere que boa parte da base tornou-se moderada junto com os líderes.
Os movimentos sociais historicamente associados ao PT também parecem bastante desmobilizados. Por exemplo, há sinais de que, com a penetração de programas de assistência social, como o Bolsa Família, organizações como o MST já não conseguem conquistar adeptos como conseguiam antes.
Por fim, as evidências sugerem que o PT está “em boas mãos” na máquina do Estado. Dilma, com suas tendências estatizantes, provavelmente não reduzirá o tamanho do Estado, o que encolheria os postos do partido.
O PT cresceu muito e hoje é a maior bancada da Câmara. O PT será o próximo PMDB?
Não acho que o PT vá se tornar um partido de sustenção no sentido que tem sido o PMDB: fraco ideologicamente, aberto a fazer alianças com qualquer um e com grandes diferenças entre seus políticos.
Acho que o PT ainda mantém diferenciais o suficiente para não regredir para algo desse gênero.
É claro que o governo Dilma deverá seguir a lógica do presidencialismo de coalizão em alguma medida, ainda mais que o primeiro governo Lula, mas diria que haverá muitos nomes do PT entre os próximos ministros.
Por outro lado, o vigoroso apoio do governo Lula nos Estados menos desenvolvidos e seu relativo enfraquecimento nas áreas mais desenvolvidas –em parte resultado dos padrões de gasto dos governos Lula– certamente sugerem uma inversão na base de apoio histórica do PT e um movimento para se tornar um partido mais parecido com o PMDB.
A sra. concorda com quem diz que o PT se tornou um partido cuja principal preocupação é a manutenção do poder?
Eu não iria tão longe. Todos os partidos precisam se manter no poder e sobreviver politicamente para atingir outros objetivos.
Sim, o PT certamente abandonou muito de sua velha ênfase no “governo ético” para jogar o jogo duro da política no Brasil.
Mas é preciso considerar também um outro aspecto, o qual coloca pelo menos Lula –se não o partido– em uma perspectiva mais positiva.
Enquanto o PT e o governo Lula têm sido criticados por se desviarem de seus compromissos históricos com os mais pobres e marginalizados, eles têm implementado políticas que de fato levaram a uma significante redução da pobreza, com avanços no cenário da desigualdade.
Então, desse ponto de vista, eles fizeram uma diferença positiva em direção as suas metas iniciais, ainda que não exatamente por meio das políticas que defendiam no passado.
Na sua avaliação, as transformações ocorridas no PT foram positivas ou negativas?
Um pouco de cada.
De um lado, o sistema político perde por não ter um partido que se apegue à bandeira de um governo mais ético.
Parece preocupante que a eleição de Dilma tenha se baseado tanto no uso da máquina por um presidente da República que é do mesmo partido. E atitudes do PT em eventos-chave, como a absolvição de José Sarney, não são positivas no que diz respeito a um governo melhor.
Por outro lado, a transformação do PT se deu junto com e contribuiu para a consolidação da democracia no Brasil.
O PT no poder –o que, por si só, só poderia acontecer como resultado de sua transformação, ou normalização (a aceitação pelo PT tanto do mercado quanto da lógica da política brasileira)– continuou e aprofundou tendências de redução da pobreza e da desigualdade social.
O ponto é: talvez um governo de esquerda mais radical pudesse ter feito mais nessas dimensões, mas as conquistas da esquerda moderada, como as de Michelle Bachelet [ex-presidente do Chile] e Lula, pelo menos serão mais sustentáveis devido à solidez maior da base fiscal e do apoio político.
Como as mudanças por que passou o PT “conversam” com as transformações ocorridas na sociedade brasileira?
Às vezes é necessário dar um passo atrás para pensar as eleições de 1989 em comparação com as atuais.
Na disputa entre Lula e Fernando Collor de Mello, os principais meios de comunicação claramente anunciavam uma catástrofe caso Lula vencesse. Os militares mantiverem os olhos bem abertos naquela eleição. Os mercados financeiros estavam “apavorados”.
Em resumo, a atmosfera era muito polarizada entre duas figuras cujos partidos não tinham muitas cadeiras no Congresso Nacional.
Agora, atores externos à disputa ficam afastados. Por exemplo, a Globo não tem papel central na tentativa de determinar o resultado. Os militares se mantêm completamente ausentes. Após 2002, a comunidade financeira já não ameaça tirar o dinheiro do país caso a esquerda vença.
Em resumo, a democracia brasileira se consolidou nos últimos 20 anos.
Os três principais candidatos deste ano foram pessoas sérias com sólidos currículos e plataformas políticas críveis. O mesmo não pode ser dito a respeito de muitos outros países. O Brasil realmente pode ficar orgulhoso de quão longe chegou.
Na década de 1980, quem acreditaria que o PT teria o governador da Bahia ou que o candidato à Presidência pelo partido teria um apoio tão maciço no Maranhão?
Naquela época, analistas, brasileiros e estrangeiros, escreviam livros sobre a persistência do poder dos militares e da direita. As máquinas oligárquicas de Antonio Carlos Magalhães e outros políticos nordestinos davam a impressão de que permaneceriam por um longo período.
No entanto, a nova geração de cientistas políticos está ocupada escrevendo livros sobre o declínio do clientelismo nesses lugares.
Sim, é claro que o PT se adaptou para caber na lógica da política brasileira, mas quem duvidar de que mudanças significativas podem acontecer deveria pensar uma segunda vez.
La mayor filtración de la historia deja al descubierto los secretos de la política exterior de EE UU
EL PAÍS desvela los documentos de Wikileaks.- Putin, autoritario y machista.- Las fiestas salvajes de Berlusconi.- Estrecho seguimiento de Sarkozy.- Los movimientos para bloquear a Irán.- El juego en torno a China.- Los esfuerzos para aislar a Chávez
El País – VICENTE JIMÉNEZ / ANTONIO CAÑO – Madrid – 28/11/2010
EL PAÍS, en colaboración con otros diarios de Europa y Estados Unidos, revela a partir de hoy el contenido de la mayor filtración de documentos secretos a la que jamás se haya tenido acceso en toda la historia. Se trata de una colección de más de 250.000 mensajes del Departamento de Estado de Estados Unidos, obtenidos por la página digital Wikileaks, en los que se descubren episodios inéditos ocurridos en los puntos más conflictivos del mundo, así como otros muchos sucesos y datos de gran relevancia que desnudan por completo la política exterior norteamericana, sacan a la luz sus mecanismos y sus fuentes, dejan en evidencia sus debilidades y obsesiones, y en conjunto facilitan la comprensión por parte de los ciudadanos de las circunstancias en las que se desarrolla el lado oscuro de las relaciones internacionales.
Estos documentos recogen comentarios e informes elaborados por funcionarios estadounidenses, con un lenguaje muy franco, sobre personalidades de todo mundo, desvelan los contenidos de entrevistas del más alto nivel, descubren desconocidas actividades de espionaje y exponen con detalle las opiniones vertidas y datos aportados por diferentes fuentes en conversaciones con embajadores norteamericanos o personal diplomático de esa nación en numerosos países, incluido España.
Queda en evidencia, por ejemplo, la sospecha norteamericana de que la política rusa está en manos de Vladimir Putin, a quien se juzga como un político de corte autoritario cuyo estilo personal machista le permite conectar perfectamente con Silvio Berlusconi. Del primer ministro italiano se detallan sus “fiestas salvajes” y se expone la desconfianza profunda que despierta en Washington. Tampoco muestra la diplomacia estadounidense un gran aprecio por el presidente francés, Nicolas Sarkozy, a quien se sigue con gran meticulosidad acerca de cualquier movimiento para obstaculizar la política exterior de Estados Unidos.
Los cables prueban la intensa actividad de ese país para bloquear a Irán, el enorme juego que se desarrolla en torno a China, cuyo predominio en Asia se da casi por aceptado, o los esfuerzos por cortejar a países de América Latina para aislar al venezolano Hugo Chávez.
En ocasiones, las expresiones usadas en estos documentos son de tal naturaleza que pueden dinamitar las relaciones de Estados Unidos con algunos de sus principales aliados; en otras, pueden ponerse en riesgo algunos proyectos importantes de su política exterior, como el acercamiento a Rusia o el apoyo de ciertos Gobiernos árabes.
El alcance de estas revelaciones es de tal calibre que, seguramente, se podrá hablar de un antes y un después en lo que respecta a los hábitos diplomáticos. Esta filtración puede acabar con una era de la política exterior: los métodos tradicionales de comunicación y las prácticas empleadas para la consecución de información quedan en entredicho a partir de ahora.
Todos los servicios diplomáticos del mundo, y especialmente de Estados Unidos, donde esta filtración se suma a otras anteriores de menor trascendencia con papeles relativos a Irak y Afganistán, tendrán que replantearse desde este momento su modo de operar y, probablemente, modificar profundamente sus prácticas.
Intensas gestiones
Tratando de anticiparse a ese perjuicio, la Administración de Estados Unidos lleva varios días, desde que supo la existencia de esta fuga de documentos, realizando intensas gestiones ante el Congreso norteamericano y los Gobiernos de gran parte de las naciones ante los que tiene representación diplomática para informarles sobre el previsible contenido de las filtraciones y sus posibles consecuencias. El Departamento de Estado envió a principio de esta semana un informe a los principales comités de la Cámara de Representantes y del Senado previniéndoles sobre la situación.
La propia secretaria de Estado, Hillary Clinton, ha telefoneado en las últimas horas a los Gobiernos de los países más importante afectados por esta fuga de información, entre otros los de China, Alemania, Francia y Arabia Saudí, para alertarles de lo sucedido y ofrecer algunas justificaciones
En Reino Unido, Israel, Italia, Australia y Canadá, entre otros socios de Estados Unidos, portavoces de sus respectivos ministerios de Relaciones Exteriores confirmaron que habían recibido información de parte de los embajadores norteamericanos, aunque no revelaron detalles sobre los datos precisos que habían sido puestos en su conocimiento. No ha habido, sin embargo, comunicación directa entre la Embajada en Madrid y el Gobierno español acerca de este asunto.
El portavoz del Departamento de Estado, P. J. Crowley, ha reconocido que no conoce con exactitud las informaciones que aparecerán en los papeles filtrados, aunque ha adelantado que “estas revelaciones son dañinas para los intereses de Estados Unidos”. “Van a crear tensiones entre nuestros diplomáticos y nuestros amigos alrededor del mundo”, declaró este fin de semana.
El Departamento de Estado, que ha negociado con uno de los periódicos que hoy publican los cables algunos contenidos particularmente lesivos para sus intereses o peligrosos para ciertas personas, está especialmente preocupado por el daño que esto puede causar en la guerra contra Al Qaeda en algunas regiones en la que la libran de forma encubierta, como Yemen o Pakistán, así como los efectos que puede tener para las difíciles relaciones con otras potencias, como Rusia y China.
Los dos últimos años
Los documentos -251.287 mensajes que cubren un periodo hasta febrero de 2010 y, en su mayor parte, afectan a los dos últimos años- fueron facilitados por WikiLeaks hace varias semanas, además de a EL PAÍS, a los diarios The Guardian, de Reino Unido; The New York Times, de Estados Unidos; Le Monde, de Francia, y al semanario Der Spiegel, de Alemania. Estos medios han trabajado por separado en la valoración y selección del material, y pondrán a disposición de sus lectores aquellas historias que cada uno considere de mayor interés; en algunos casos serán coincidentes, en otros no.
Ese proceso se ha llevado a cabo bajo una exigente condición de no poner en peligro en ningún momento fuentes protegidas de antemano o personas cuya vida podría verse amenazada al desvelarse su identidad. Al mismo tiempo, todos los medios han hecho un esfuerzo supremo por evitar la revelación de episodios que pudieran suponer un riesgo para la seguridad de cualquier país, particularmente de Estados Unidos, el más expuesto por estas revelaciones. Por esa razón, algunos de los documentos que serán puestos a disposición de nuestros lectores a partir de hoy aparecerán parcialmente mutilados.
EL PAÍS no ha estado en el origen de la filtración y, por tanto, desconoce los criterios con los que se ha llevado a cabo la selección del paquete que finalmente ha llegado a manos del diario. Resulta evidente que los papeles analizados no son todos los emitidos en el mundo por el Departamento de Estado en el periodo de tiempo comprendido, pero ignoramos si esos son todos a los que ha tenido acceso WikiLeaks.
Pese a eso, el lector comprobará el valor que en sí mismo encierra el conjunto de documentos facilitados, al margen de que puedan existir otros muchos que aún se desconocen. Se trata de un material que aporta novedades relevantes sobre el manejo de asuntos de gran repercusión mundial, como el programa nuclear de Irán, las tensiones en Oriente Próximo, las guerras de Irak y Afganistán y otros conflictos en Asia y África.
Terrorismo y radicalismo islámico
También se recogen los movimientos entre Estados Unidos y sus aliados para hacer frente al terrorismo y al radicalismo islámico, así como detalles reveladores sobre episodios de tanta trascendencia como el boicot de China a la empresa Google o los negocios conjuntos de Putin y Berlusconi en el sector del petróleo. De especial interés son las pruebas que se aportan sobre el alcance de la corrupción a escala planetaria y las permanentes presiones que se ejercen sobre los diferentes Gobiernos, desde Brasil a Turquía, para favorecer los intereses comerciales o militares de Estados Unidos.
Entre los primeros documentos que hoy se hacen públicos, se descubre el pánico que los planes armamentísticos de Irán, incluido su programa nuclear, despiertan entre los países árabes, hasta el punto de que alguno de sus gobernantes llega a sugerir que es preferible una guerra convencional hoy que un Irán nuclear mañana. Se aprecia la enorme preocupación con la que Estados Unidos observa la evolución de los acontecimientos en Turquía y la estrecha vigilancia a la que se mantiene al primer ministro, Erdogan.
Y, sobre todo, esta primera entrega revela las instrucciones que el Departamento de Estado ha cursado a sus diplomáticos en Naciones Unidas y en algunos países para desarrollar una verdadera labor de espionaje sobre el secretario general de la ONU, sus principales oficinas y sus más delicadas misiones.
Los lectores descubrirán al acceder a las sucesivas crónicas detalles insospechados sobre la personalidad de algunos destacados dirigentes y comprobarán el papel que desempeñan las más íntimas facetas humanas en las relaciones políticas. Eso resulta particularmente evidente en América Latina, donde se dan a conocer juicios de diplomáticos norteamericanos y de muchos de sus interlocutores sobre el carácter, las aficiones y los pecados de las figuras más controvertidas.
Mañana EL PAÍS ofrecerá detalles, por ejemplo, sobre las sospechas que la presidenta de Argentina, Cristina Fernández de Kirchner, despierta en Washington, hasta el punto de que la Secretaría de Estado llega a solicitar información sobre su estado de salud mental. El mismo día se darán a conocer algunas de las gestiones que la diplomacia norteamericana ha realizado para repatriar a los presos de Guantánamo, así como la intensa actividad en Asia para frenar el peligro que representa Corea del Norte.
Cables controvertidos
Entre los cables con los que ha trabajado este periódic o se encuentran informes extraordinariamente controvertidos, como los mensajes del embajador norteamericano en Trípoli en los que cuenta que el líder libio, Muamar el Gadafi, usa botox y es un verdadero hipocondríaco que hace filmar todos sus exámenes médicos para analizarlos posteriormente con sus doctores, y relatos con meticulosas descripciones del paisaje local, como el que hace un diplomático estadounidense invitado a una boda en Daguestán que sirve para ilustrar el grado de corrupción en la zona.
Hay cables de gran valor histórico, como el que revela la apuesta de la diplomacia norteamericana por el derrocamiento del general panameño Manuel Antonio Noriega o el que detalla ciertos movimientos de Estados Unidos durante el golpe de Estado que destituyó a Manuel Zelaya en Honduras, y cables de enorme interés sobre acontecimientos actuales, como el que precisa la presión ejercida sobre el presidente de Afganistán, Hamid Karzai, para que contenga los abusos de sus allegados y facilite la gobernabilidad del país.
En lo que respecta a España, estos documentos registran el enorme acceso de la Embajada de Estados Unidos a personalidades destacadas del ámbito político y judicial, y su influencia en algunos acontecimientos que han marcado la actualidad de los últimos años. También se descubre el punto de vista que funcionarios estadounidenses tienen de la clase política española, así como el que algunos políticos expresan sobre sus compañeros y adversarios.
En determinados casos, estas revelaciones tienen el estrictamente el valor que tiene la opinión de una persona de posición influyente. En otros casos, se trata de relatos que aportan pistas sobre acontecimientos importantes pero que son narrados por una sola fuente: el servicio diplomático de Estados Unidos. EL PAÍS no ha podido corroborar todos esos relatos y ha prescindido de algunos que ha considerado de dudosa credibilidad. Pero sí ha certificado otros y ha operado de forma responsable con el país objeto de la filtración con la intención de causar el menor daño posible. Entre otras precauciones, se ha decidido aceptar los compromisos a los que The New York Times llegue con el Departamento de Estado para evitar la difusión de determinados documentos.
No todos los papeles obtenidos por Wikileaks han sido utilizados para la elaboración de nuestras informaciones, y solo una parte de ellos serán expuestos públicamente, independientemente de lo que la propia WikiLeaks o los demás medios que han recibido el material decidan hacer. Se han seleccionado tan solo aquellos que consideramos imprescindibles para respaldar la información ofrecida.
Las informaciones han sido preparadas y escritas únicamente por redactores de nuestro periódico atendiendo a nuestras particulares exigencias de rigor y calidad. A lo largo de varios días se irán ofreciendo las crónicas que recogen la sustancia de esos documentos, añadiéndoles el contexto y la valoración requeridos, así como sus posibles reacciones y consecuencias.
Algunas de esas reacciones estarán, seguramente, dirigidas a examinar las causas por las que puede haberse producido una fuga de semejante magnitud. El origen de este problema puede remontarse a los días posteriores al ataque terrorista del 11 de septiembre de 2001, cuando se detectaron unos fallos de coordinación entre los servicios de inteligencia que recomendaron la necesidad de un modelo de comunicación que permitiera a los diferentes responsables de la seguridad compartir datos extraídos por el Departamento de Estado.
Un sistema de Internet del Ejército
Se extendió, por tanto, a partir de esa fecha el uso de un sistema de Internet del Ejército norteamericano denominado SIPRNET, un acrónimo de Secret Internet Protocol Router Network. Todos los cables que se incluyen en esta filtración fueron enviados por ese medio, como se comprueba por la etiqueta que cada uno de ellos lleva en su cabecera, la palabra SIPDIS, que son las siglas para Secret Internet Protocol Distribution.
Al menos 180 embajadas norteamericanas alrededor del mundo utilizan actualmente ese sistema de comunicación, según informes elaborados por el Congreso norteamericano. Aunque se exigen fuertes medidas de seguridad para el uso de ese sistema, como la de mantenerlo abierto únicamente cuando el usuario está frente a la pantalla, la exigencia de cambiar la clave cada cinco meses o la prohibición de utilizar cualquier clase de CD u otro método de copia de contenidos, el número de personas que ahora acceden a la información ha crecido considerablemente.
A ese crecimiento ha ayudado también la necesidad de ampliar el número de personas trabajando en cuestiones de seguridad y, como consecuencia, la del número de personas a la que se da acceso a documentos clasificados. El Departamento de Estado clasifica sus informes en una escala que va del Top Secret al Confidential. En los documentos facilitados a EL PAÍS no hay ninguno clasificado como Top Secret, aunque sí más de 15.000 situados en la escala inferior, Secret.
Según se puede deducir de datos elaborados por la Oficina de Control del Gobierno, perteneciente al Congreso norteamericano, y otros expuestos recientemente por medios de comunicación de ese país, más de tres millones de estadounidenses están autorizados al acceso a ese material Secret. Eso incluye decenas de miles de empleados del Departamento de Estado, funcionarios de la CIA, del FBI, de la DEA, de los servicios de inteligencia de las fuerzas armadas y de otros departamentos implicados en la búsqueda de información. En Estados Unidos funcionan 16 agencias con responsabilidades de espionaje.
Será muy costoso, por tanto, para ese país reparar el daño causado por esta filtración, y llevará años poner en pie un nuevo sistema de comunicación con plenas garantías. Lo más importante, sin embargo, es el valor informativo que esos documentos tienen actualmente. Estamos ante una serie de relatos, sin precedentes en el periodismo español, que servirán para una mejor comprensión de algunos conflictos y de personalidades que afectan determinantemente a nuestra vida y que pueden abrir a nuestros lectores a una nueva interpretación de la realidad que les rodea.
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Ignacio Ramonet descreve explosão do jornalismo
A compreensão humana não é um exame desinteressado, mas recebe infusões da vontade e dos afetos; disso se originam ciências que podem ser chamadas “ciências conforme a nossa vontade”. Pois um homem acredita mais facilmente no que gostaria que fosse verdade. Assim, ele rejeita coisas difíceis pela impaciência de pesquisar; coisas sensatas, porque diminuem a esperança; as coisas mais profundas da natureza, por superstição; a luz da experiência, por arrogância e orgulho; coisas que não são comumente aceitas, por deferência à opinião do vulgo. Em suma, inúmeras são as maneiras, e às vezes imperceptíveis, pelas quais os afetos colorem e contaminam o entendimento.
Francis Bacon, Novum organon (1620)
Meus pais morreram há anos. Eu era muito ligado a eles. Ainda sinto uma saudade terrível. Sei que sempre sentirei. Desejo acreditar que sua essência, suas personalidades, o que eu tanto amava neles, ainda existe — real e verdadeiramente — em algum lugar. Não pediria muito, apenas cinco ou dez minutos por ano, para lhes contar sobre os netos, pô-las ao corrente das últimas novidades, lembrar-lhes que eu os amo. Uma parte minha — por mais infantil que pareça — se pergunta como é que estarão. “Está tudo bem?”, desejo perguntar. As últimas palavras que me vi dizendo a meu pai, na hora de sua morte, foram: “Tome cuidado”.
Às vezes sonho que estou falando com meus pais, e de repente — ainda imerso na elaboração do sonho — sou tomado pela consciência esmagadora de que eles não morreram de verdade, de que tudo não passou de um erro horrível. Ora, ali estão eles, vivos e bem de saúde, meu pai fazendo piadas inteligentes, minha mãe muito séria me aconselhando a usar uma manta porque está frio. Quando acordo, passo de novo por um processo abreviado de luto. Evidentemente, existe algo dentro de mim que está pronto a acreditar na vida após a morte. E que não está nem um pouco interessado em saber se há alguma evidência séria que confirme tal coisa.
Por isso, não rio da mulher que visita o túmulo do marido e conversa com ele de vez em quando, talvez no aniversário de sua morte. Não é difícil de compreender. E se tenho dificuldades com o status ontológico daquele com que ela está falando, não faz mal. Não é isso que importa. O que importa é que os seres humanos são humanos. Mais de um terço dos adultos norte-americanos acreditam que em algum nível estabeleceram contato com os mortos. O número parece ter dado um pulo de 15% entre 1977 e 1988. Um quarto dos norte-americanos acredita em reencarnação.
Mas isso não significa que estou disposto a aceitar as pretensões de um “médium”, que afirma canalizar os espíritos dos seres amados que partiram, quando tenho consciência de que a prática está cheia de fraudes. Sei o quanto desejo acreditar que meus pais só abandonaram os cascos de seus corpos, como insetos ou cobras na muda, e partiram para outro lugar. Compreendo que esses sentimentos poderiam me tornar uma presa fácil até de um trapaceiro pouco inteligente, de pessoas normais que desconhecem suas mentes inconscientes, ou dos que sofrem de uma desordem psiquiátrica dissociativa. Relutantemente, ponho em ação algumas reservas de ceticismo.
Como é, pergunto a mim mesmo, que os canalizadores nunca nos dão informações verificáveis que nos são inacessíveis por outros meios? Por que Alexandre, o Grande, nunca nos informa sobre a localização exata de sua tumba, Fermat sobre o seu último teorema, James Wilkes Booth sobre a conspiração do assassinato de Lincoln, Hermann Goering sobre o incêndio do Reichstag? Por que Sófocles, Demócrito e Aristarco não ditam as suas obras perdidas? Não querem que as gerações futuras conheçam as suas obras-primas?
Se fosse anunciada alguma evidência real de vida após a morte, desejaria muito examiná-la; mas teria de ser uma evidência real científica, e não simples anedota. Em casos como A Face em Marte e os raptos por alienígenas, eu diria que é melhor a verdade dura do que a fantasia consoladora. E, no cômputo final, revela-se frequentemente que os fatos são mais consoladores que a fantasia.
A premissa fundamental da “canalização”, do espiritismo e de outras formas de necromancia é que não morremos quando experimentamos a morte. Não exatamente. Continua a existir alguma parte de nós que pensa, sente e tem memória. Seja o que for — alma ou espírito, nem matéria nem energia, mas alguma outra coisa —, essa parte pode entrar novamente em corpos humanos ou de outros seres, e assim a morte perde grande parte da sua ferroada. E ainda mais: se as afirmações do espírita ou canalizador são verdadeiras, temos uma oportunidade de entrar em contato com os seres amados que morreram.
J. Z. Knight, do estado de Washington, afirma estar em contato com um ser de 35 mil anos chamado Ramtha. Ele fala inglês muito bem, usando a língua, os lábios e as cordas vocais de Knight, com um sotaque que me parece ser hindu. Como a maioria das pessoas sabe como falar, e muitas — de crianças a atores profissionais — têm um repertório de vozes a seu dispor, a hipótese mais simples sugere que é a própria sra. Knight que faz Ramtha falar, e que ela não tem contato com entidades desencarnadas da época plistocena glacial. Se há provas em contrário, gostaria muito de conhecer. Seria consideravelmente mais impressionante se Ramtha pudesse falar por si mesmo, sem a ajuda da boca da sra. Knight. Isso não sendo possível, como podemos testar a afirmação? (A atriz Shirley MacLaine afirma que Ramtha foi seu irmão em Atlântida, mas isso já é outra história.)
Vamos supor que Ramtha pudesse ser interrogado. Poderíamos verificar se ele é quem afirma ser? Como é que ele sabe que viveu há 35 mil anos, mesmo aproximadamente? Que calendário emprega? Quem está tomando nota dos milênios intermediários? Trinta e cinco mil mais ou menos o quê? Como é que eram as coisas há 35 mil anos? Ou Ramtha tem realmente essa idade, e nesse caso vamos descobrir alguma coisa sobre esse período, ou é uma fraude e ele (ou melhor, ela) vai se trair.
Onde é que Ramtha vivia? (Sei que fala inglês com sotaque hindu, mas onde é que falavam assim há 35 mil anos?) Como era o clima? O que Ramtha comia? (Os arqueólogos têm alguma noção do que as pessoas comiam nessa época.) Quais eram as línguas autóctones, e qual era a estrutura social? Com quem mais Ramtha vivia — com a mulher, mulheres, filhos, netos? Qual era o ciclo da vida, a taxa de mortalidade infantil, a expectativa de vida? Eles tinham controle populacional? Que roupas vestiam? Como elas eram fabricadas? Quais os predadores mais perigosos? Os instrumentos e as estratégias da caça e da pesca? Armas? Sexismo endêmico? Xenofobia e etnocentrismo? E, se Ramtha descendia da “elevada civilização” de Atlântida, onde estão os detalhes linguísticos, tecnológicos, históricos e de outra natureza? Como era a sua escrita? Respondam. Em lugar disso, a única coisa que recebemos são homilias banais.
Para dar outro exemplo, eis um conjunto de informações que não foram canalizadas de um morto antigo, mas de entidades não humanas desconhecidas que fazem círculos nas plantações, assim como foi registrado pelo jornalista Jim Schnabel:
“Estamos muito ansiosos por essa nação pecadora estar espalhando mentiras sobre nós. Não viemos em máquinas, não pousamos na Terra em máquinas […]. Viemos como o vento. Somos a Força Vital. A Força Vital do solo […]. Viemos até aqui […]. Estamos apenas a um sopro de distância […] a um sopro de distância […] não estamos a milhões de milhas de distância […] uma Força Vital que é mais potente que as energias no corpo humano. Mas nós nos reunimos num nível mais elevado de vida […]. Não precisamos de nome. Vivemos num mundo paralelo ao seu, ao lado do seu […]. Os muros se romperam. Dois homens surgirão do passado […] o grande urso […] o mundo encontrará a paz”.
As pessoas dão atenção a essas maravilhas pueris, principalmente porque elas prometem algo parecido com a religião dos velhos tempos, mas sobretudo a vida depois da morte, até a vida eterna.
O versátil cientista britânico J.B.S. Haldane, que foi, entre muitas outras coisas, um dos fundadores da genética populacional, propôs certa vez uma perspectiva muito diferente para algo semelhante à vida eterna. Haldane imaginava um futuro distante em que as estrelas se obscureceram e o espaço foi preenchido em sua maior parte por um gás frio e fino. Ainda assim, se esperarmos bastante tempo, ocorrerão flutuações estatísticas na densidade desse gás. Ao longo de imensos períodos, as flutuações serão o suficiente para reconstituir um Universo parecido com o nosso. Se o Universo é infinitamente antigo, haverá um número infinito dessas reconstituições, apontava Haldane.
Assim, num Universo infinitamente antigo com um número infinito de nascimentos de galáxias, estrelas, planetas e vida, deve reaparecer uma Terra idêntica em que você e todos os seus seres queridos voltarão a se reunir. Serei capaz de rever meus pais e apresentar-lhes os netos que eles não conheceram. E tudo isso não acontecerá apenas uma vez, mas um número infinito de vezes.
Entretanto, de certo modo isso não oferece os consolos da religião. Se nenhum de nós vai lembrar o que aconteceu desta vez, a época que o leitor e eu estamos partilhando, as satisfações da ressurreição do corpo, pelo menos aos meus ouvidos, soam ocas.
Mas nessa reflexão subestimei o que significa infinidade. Na imagem de Haldane, haverá universos, na verdade um número infinito de universos, em que nossas mentes recordarão perfeitamente todas as vidas anteriores. A satisfação está à mão — moderada, no entanto, pela ideia de todos esses outros universos que também passarão a existir (novamente, não uma vez, mas um número infinito de vezes) com tragédias e horrores que superam em muito qualquer coisa que já experimentei desta vez.
Entretanto, o Consolo de Haldane depende do tipo de universo em que vivemos, e talvez de arcanos, como, por exemplo, saber se há bastante matéria para finalmente reverter à expansão do universo, e o caráter das flutuações no vácuo. Ao que parece, aqueles que sentem um profundo desejo de vida após a morte poderiam se dedicar à cosmologia, à gravidade quântica, à física das partículas elementares e à aritmética trans-finita.
Clemente de Alexandria, um dos padres da Igreja primitiva, em suas Exortações aos gregos (escritas em torno do ano 190), rejeitava as crenças pagãs em termos que pareceriam hoje em dia um pouco irônicos:
“Estamos realmente longe de permitir que os homens adultos deem ouvidos a essas histórias. Mesmo aos nossos filhos, quando eles berram de cortar o coração, como se diz, não temos o hábito de contar histórias fabulosas para acalmá-los”.
Em nossa época, temos padrões menos severos. Contamos às crianças histórias sobre Papai Noel, o coelhinho da Páscoa e a fada do dente por razões que achamos emocionalmente sadias, mas depois, antes de crescerem, nós os desiludimos sobre esses mitos. Por que nos desdizemos? Porque o seu bem-estar como adultos depende de eles conhecerem o mundo tal como é. Nós nos preocupamos, e com razão, com os adultos que ainda acreditam em Papai Noel.
Sobre as religiões doutrinárias, escreveu o filósofo David Hume que
“os homens não ousam confessar, nem mesmo a seus corações, as dúvidas que têm a respeito desses assuntos. Eles valorizam a fé implícita; e disfarçam para si mesmos a sua real descrença, por meio das afirmações mais convictas e do fanatismo mais positivo”.
Essa descrença tem consequências morais profundas, como escreveu o revolucionário americano Thomas Paine em The age of reason:
“A descrença não consiste em acreditar, nem em desacreditar; consiste em professar que se crê naquilo que não se crê. É impossível calcular o dano moral, se é que posso chamá-lo assim, que a mentira mental tem causado na sociedade. Quando o homem corrompeu e prostituiu de tal modo a castidade de sua mente, a ponto de empenhar a sua crença profissional em coisas que não acredita, ele está preparado para a execução de qualquer outro crime”.
A formulação de T.H. Huxley foi:
“O fundamento da moralidade é […] renunciar a fingir que se acredita naquilo que não comporta evidências, e a repetir proposições ininteligíveis sobre coisas que estão além das possibilidades do conhecimento”.
Clement, Hume, Paine e Huxley estavam todos falando de religião. Mas grande parte do que escreveram tem aplicações mais gerais — por exemplo, para as importunidades disseminadas no pano de fundo de nossa civilização comercial: há um tipo de comercial de aspirina em que atores fingindo ser médicos revelam que o produto do concorrente tem apenas determinada fração do ingrediente analgésico que os médicos mais recomendam — eles não dizem qual é o misterioso ingrediente. Enquanto o seu produto tem uma quantidade drasticamente maior (1,2 a duas vezes mais por comprimido). Por isso, comprem esse produto. Mas por que não tomar dois comprimidos do concorrente? Ou considere-se o caso do analgésico que funciona melhor do que o produto de “potência regular” do concorrente. Por que não tomar o produto de “potência extra” do outro fabricante? E eles certamente não falam nada sobre as mais de mil mortes por ano causadas pelo uso da aspirina nos Estados Unidos ou os aparentes 5 mil casos anuais de disfunção renal provocados pelo uso de acetaminofeno, de que a marca mais vendida é o Tylenol. (Isso, contudo, talvez represente um caso de correlação sem causalidade.) Ou quem se importa em saber quais os cereais que têm mais vitamina, quando podemos tomar uma pílula de vitamina no café da manhã? Da mesma forma, que importa saber que um antiácido contém cálcio, se o cálcio serve para a nutrição e é irrelevante para a gastrite? A cultura comercial está cheia de informações errôneas e subterfúgios semelhantes à custa do consumidor. Não se devem fazer perguntas. Não pensem. Comprem.
As explicações pagas de produtos, especialmente se feitas por verdadeiros ou pretensos especialistas, constituem uma saraivada constante de embustes. Revelam menosprezo pela inteligência dos clientes. Criam uma corrupção insidiosa das atitudes populares a respeito da objetividade científica. Hoje, existem até comerciais em que cientistas reais, alguns de considerável distinção, atuam como garotos-propaganda para as empresas. Eles nos ensinam que também os cientistas mentem por dinheiro. Como alertou Tom Paine, o fato de nos acostumarmos com mentiras cria o fundamento para muitos outros males.
Enquanto escrevo, tenho diante de mim o programa da Whole Life Expo, a exposição anual da Nova Era realizada em San Francisco. É comumente visitada por dezenas de milhares de pessoas. Ali especialistas muito questionáveis fazem propaganda de produtos muito questionáveis. Eis algumas das apresentações: “Como proteínas presas no sangue produzem dor e sofrimento”. “Cristais, talismãs ou pedras?” (Tenho a minha opinião.) Prossegue: “Assim como um cristal focaliza as ondas sonoras e luminosas para o rádio e a televisão” — o que é um erro insípido de quem não compreende como o rádio e a televisão funcionam —, “ele pode amplificar as vibrações espirituais para o ser humano afinado”. Ou mais esta: “O retorno da deusa, um ritual de apresentação”. Outra: “Sincronismo, a experiência do reconhecimento”. Essa é fornecida pelo “irmão Charles”. Ou, na página seguinte: “Você, Saint-Germain e a cura pela chama violeta”. E assim continua, com milhares de anúncios sobre as “oportunidades” — percorrendo a gama estreita que vai do dúbio ao espúrio — que se acham à disposição na Whole Life Expo.
Algumas vítimas de câncer, perturbadas, fazem peregrinações às Filipinas, onde “cirurgiões mediúnicos”, depois de esconder na palma da mão pedaços de fígado de galinha ou coração de bode, fingem tocar nas entranhas do paciente e retirar o tecido doente, que é então triunfantemente exibido. Certos líderes de democracias ocidentais consultam regularmente astrólogos e místicos antes de tomar decisões de Estado. Sob a pressão pública por resultados, a polícia, às voltas com um assassinato não solucionado ou um corpo desaparecido, consulta “especialistas” de ESP (percepção extra-sensorial) (que nunca adivinham nada além do esperado pelo senso comum, mas a polícia, dizem os ESPs, continua a chamá-los). Anuncia-se a previsão de uma divergência com nações adversárias, e a CIA, estimulada pelo Congresso, gasta dinheiro dos impostos para descobrir se podemos localizar submarinos nas profundezas do oceano concentrando o pensamento neles. Um “médium” — usando pêndulos sobre mapas e varinhas rabdomânticas em aviões — finge descobrir novos depósitos minerais; uma companhia mineira australiana lhe adianta elevada soma de dólares, irrecuperável em caso de fracasso, garantindo-lhe uma participação na exploração do minério em caso de sucesso. Nada é descoberto. Algumas estátuas de Jesus ou murais de Maria ficam manchados de umidade, e milhares de pessoas bondosas se convencem de que testemunharam um milagre.
Todos esses são casos de mentiras provadas ou presumíveis. Acontece um logro, ora de forma inocente, mas com a colaboração dos envolvidos, ora com premeditação cínica. Em geral, a vítima se vê presa de forte emoção — admiração, medo, ganância, dor. A aceitação crédula da mentira talvez nos custe dinheiro; é o que P.T. Barnum apontou, ao afirmar: “Nasce um otário a cada minuto”. Mas pode ser muito mais perigoso que isso, e quando os governos e as sociedades perdem a capacidade de pensar criticamente os resultados podem ser catastróficos — por mais que deploremos aqueles que engoliram a mentira.
Na ciência, podemos começar com resultados experimentais, dados, observações, medições, “fatos”. Inventamos, se possível, um rico conjunto de explicações plausíveis e sistematicamente confrontamos cada explicação com os fatos. Ao longo de seu treinamento, os cientistas são equipados com um kit de detecção de mentiras. Este é ativado sempre que novas ideias são apresentadas para consideração. Se a nova ideia sobrevive ao exame das ferramentas do kit, nós lhe concedemos aceitação calorosa, ainda que experimental. Se possuímos essa tendência, se não desejamos engolir mentiras mesmo quando são confortadoras, há precauções que podem ser tomadas; existe um método testado pelo consumidor, experimentado e verdadeiro.
O que existe no kit ? Ferramentas para o pensamento cético.
O pensamento cético se resume no meio de construir e compreender um argumento racional e — o que é especialmente importante — de reconhecer um argumento falacioso ou fraudulento. A questão não é se gostamos da conclusão que emerge de uma cadeia de raciocínio, mas se a conclusão deriva da premissa ou do ponto de partida e se essa premissa é verdadeira.
Eis algumas das ferramentas:
- Sempre que possível, deve haver confirmação independente dos “fatos”.
- Devemos estimular um debate substantivo sobre as evidências, do qual participarão notórios partidários de todos os pontos de vista.
- Os argumentos de autoridade têm pouca importância — as “autoridades” cometeram erros no passado. Voltarão a cometê-los no futuro. Uma forma melhor de expressar essa ideia é talvez dizer que na ciência não existem autoridades; quando muito, há especialistas.
- Devemos considerar mais de uma hipótese. Se alguma coisa deve ser explicada, é preciso pensar em todas as maneiras diferentes pelas quais poderia ser explicada. Depois devemos pensar nos testes que poderiam servir para invalidar sistematicamente cada uma das alternativas. O que sobreviver, a hipótese que resistir a todas as refutações nessa seleção darwiniana entre as “múltiplas hipóteses eficazes”, tem uma chance muito melhor de ser a resposta correta do que se tivéssemos simplesmente adotado a primeira ideia que prendeu nossa imaginação *1.
- Devemos tentar não ficar demasiado ligados a uma hipótese, só por ser a nossa. É apenas uma estação intermediária na busca do conhecimento. Devemos nos perguntar por que a ideia nos agrada. Devemos compará-la imparcialmente com as alternativas. Devemos verificar se é possível encontrar razões para rejeitá-la. Se não, outros o farão.
- Devemos quantificar. Se o que estiver sendo explicado é passível de medição, de ser relacionado a alguma quantidade numérica, seremos muito mais capazes de discriminar entre as hipóteses concorrentes. O que é vago e qualitativo é suscetível de muitas explicações. Há certamente verdades a serem buscadas nas muitas questões qualitativas que somos obrigados a enfrentar, mas encontrá-las é mais desafiador.
- Se há uma cadeia de argumentos, todos os elos na cadeia devem funcionar (inclusive a premissa) — e não apenas a maioria deles.
- A Navalha de Occam. Essa maneira prática e conveniente de proceder nos incita a escolher a mais simples dentre duas hipóteses que explicam os dados com igual eficiência.
- Devemos sempre perguntar se a hipótese pode ser, pelo menos em princípio, falseada. As proposições que não podem ser testadas ou falseadas não valem grande coisa. Considere-se a ideia grandiosa de que o nosso Universo e tudo o que nele existe é apenas uma partícula elementar — um elétron, por exemplo — num Cosmos muito maior. Mas, se nunca obtemos informações de fora de nosso Universo, essa ideia não se torna impossível de ser refutada? Devemos poder verificar as afirmativas. Os céticos inveterados devem ter a oportunidade de seguir o nosso raciocínio, copiar os nossos experimentos e ver se chegam ao mesmo resultado.
A confiança em experimentos cuidadosamente planejados e controlados é de suma importância, como tentei enfatizar antes. Não aprenderemos com a simples contemplação. É tentador ficar satisfeitos com a primeira explicação possível que passa pelas nossas cabeças. Uma é muito melhor que nenhuma. Mas o que acontece se podemos inventar várias? Como decidir entre elas? Não decidimos. Deixamos que a experimentação faça as escolhas para nós. Francis Bacon indicou a razão clássica: “A argumentação não é suficiente para a descoberta de novos trabalhos, pois a sutileza da natureza é muitas vezes maior do que a sutileza dos argumentos”.
Os experimentos de controle são essenciais. Por exemplo, se alegam que um novo remédio cura uma doença em 20% dos casos, temos de nos assegurar se uma população de controle, ao tomar um placebo pensando que ingere a nova droga, também não experimenta cura espontânea da doença em 20% das vezes.
As variáveis devem ser separadas. Vamos supor que nos sentimos mareados, e nos dão uma pulseira que pressiona os pontos indicados pela acupuntura e cinquenta miligramas de meclizina. Descobrimos que o mal-estar desaparece. O que causou o alívio — a pulseira ou a pílula? Só ficaremos sabendo se tomarmos uma sem usar a outra, na próxima vez em que ficarmos mareados. Agora vamos imaginar que não somos tão dedicados à ciência a ponto de querer ficar mareados. Nesse caso, não separamos as variáveis. Tomamos os dois remédios de novo. Conseguimos o resultado prático desejado; aprofundar o conhecimento, poderíamos dizer, não vale o desconforto de atingi-lo.
Frequentemente o experimento deve ser realizado pelo método “duplo cego”, para que aqueles que aguardam uma certa descoberta não fiquem na posição potencialmente comprometedora de avaliar os resultados. Ao testar um novo remédio, por exemplo, queremos que os médicos que determinam os sintomas a serem mitigados não fiquem sabendo a que pacientes foi ministrada a nova droga. O conhecimento poderia influenciar a sua decisão, ainda que inconscientemente. Em vez disso, a lista dos que sentiram alívio dos sintomas pode ser comparada com a dos que tomaram a nova droga, cada uma determinada independentemente. Só então podemos estabelecer a correlação existente. Ou, ao comandar uma identificação policial pelo reconhecimento de fotos ou dos suspeitos enfileirados, o oficial encarregado não deveria saber quem é o principal suspeito, para não influenciar a testemunha consciente ou inconscientemente.
Além de nos ensinar o que fazer na hora de avaliar uma afirmação, qualquer bom kit de detecção de mentiras deve também nos ensinar o que não fazer. Ele nos ajuda a reconhecer as falácias mais comuns e mais perigosas da lógica e da retórica. Muitos bons exemplos podem ser encontrados na religião e na política, porque seus profissionais são frequentemente obrigados a justificar duas proposições contraditórias. Entre essas falácias estão:
- ad hominem — expressão latina que significa “ao homem”, quando atacamos o argumentador e não o argumento (por exemplo: A reverenda dra. Smith é uma conhecida fundamentalista bíblica, por isso não precisamos levar a sério suas objeções à evolução);
- argumento de autoridade (por exemplo: O presidente Richard Nixon deve ser reeleito porque ele tem um plano secreto para pôr fim à guerra no Sudeste da Ásia — mas, como era secreto, o eleitorado não tinha meios de avaliar os méritos do plano; o argumento se reduzia a confiar em Nixon porque ele era o presidente: um erro, como se veio a saber);
- argumento das consequências adversas (por exemplo: Deve existir um Deus que confere castigo e recompensa, porque, se não existisse, a sociedade seria muito mais desordenada e perigosa talvez até ingovernável *2. Ou: O réu de um caso de homicídio amplamente divulgado pelos meios de comunicação deve ser julgado culpado; do contrário, será um estímulo para os outros homens matarem as suas mulheres);
- apelo à ignorância — a afirmação de que qualquer coisa que não provou ser falsa deve ser verdade, e vice-versa (por exemplo: Não há evidência convincente de que os UFOs não estejam visitando a Terra; portanto, os UFOs existem — e há vida inteligente em outros lugares no Universo. Ou: Talvez haja setenta quasilhões de outros mundos, mas não se conhece nenhum que tenha o progresso moral da Terra, por isso ainda somos o centro do Universo). Essa impaciência com a ambiguidade pode ser criticada pela expressão: a ausência de evidência não é evidência da ausência;
- alegação especial, frequentemente para salvar uma proposição em profunda dificuldade teórica (por exemplo: Como um Deus misericordioso pode condenar as gerações futuras a um tormento interminável, só porque, contra as suas ordens, uma mulher induziu um homem a comer uma maçã? Alegação especial: Você não compreende a doutrina sutil do livre-arbítrio. Ou: Como pode haver um Pai, um Filho e um Espírito Santo igualmente divinos na mesma Pessoa? Alegação especial: Você não compreende o mistério da Santíssima Trindade. Ou: Como Deus permitiu que os seguidores do judaísmo, cristianismo e islamismo — cada um comprometido a seu modo com medidas heróicas de bondade e compaixão — tenham perpetrado tanta crueldade durante tanto tempo? Alegação especial: Mais uma vez você não compreende o livre-arbítrio. E, de qualquer modo, os movimentos de Deus são misteriosos);
- petição de princípio, também chamada de supor a resposta (por exemplo: Devemos instituir a pena de morte para desencorajar o crime violento. Mas a taxa de crimes violentos realmente cai quando é imposta a pena de morte? Ou: A bolsa de valores caiu ontem por causa de um ajuste técnico e da realização de lucros por parte dos investidores. Mas há alguma evidência independente do papel causal do “ajuste” e da realização de lucros? Aprendemos realmente alguma coisa com essa pretensa explicação?);
- seleção das observações, também chamada de enumeração das circunstâncias favoráveis, ou, segundo a descrição do filósofo Francis Bacon, contar os acertos e esquecer os fracassos *3 (por exemplo: Um Estado se vangloria do presidente que gerou, mas se cala sobre os seus assassinos que matam em série);
- estatística dos números pequenos — falácia aparentada com a seleção das observações (por exemplo: ” Dizem que uma dentre cada cinco pessoas é chinesa. Como é possível? Conheço centenas de pessoas, e nenhuma delas é chinesa. Atenciosamente “. Ou: Tirei três setes seguidos. Hoje à noite não tenho como perder).
- compreensão errônea da natureza da estatística (por exemplo: O presidente Dwight Eisenhower expressando espanto e apreensão ao descobrir que metade de todos os norte-americanos tem inteligência abaixo da média);
- incoerência (por exemplo: Prepare-se prudentemente para enfrentar o pior na luta com um potencial adversário militar, mas ignore parcimoniosamente projeções científicas sobre perigos ambientais, porque elas não são “comprovadas”. Ou: Atribua a diminuição da expectativa de vida na antiga União Soviética aos fracassos do comunismo há muitos anos, mas nunca atribua a alta taxa de mortalidade infantil nos Estados Unidos (no momento, a taxa mais alta das principais nações industriais) aos fracassos do capitalismo. Ou: Considere razoável que o Universo continue a existir para sempre no futuro, mas julgue absurda a possibilidade de que ele tenha duração infinita no passado);
- non sequitur — expressão latina que significa “não se segue” (por exemplo: A nossa nação prevalecerá, porque Deus é grande. Mas quase todas as nações querem que isso seja verdade; a formulação alemã era “Gott mit uns”). Com frequência, os que caem na falácia non sequitur deixaram simplesmente de reconhecer as possibilidades alternativas;
- post hoc, ergo propter hoc — expressão latina que significa “aconteceu após um fato, logo foi por ele causado” (por exemplo, Jaime Cardinal Sin, arcebispo de Manila: ” Conheço […] uma moça de 26 anos que aparenta sessenta porque ela toma a pílula [anticoncepcional] “. Ou: Antes de as mulheres terem o direito de votar, não havia armas nucleares);
- pergunta sem sentido (por exemplo: O que acontece quando uma força irresistível encontra um objeto imóvel? Mas se existe uma força irresistível, não pode haver objetos imóveis, e vice-versa);
- exclusão do meio-termo, ou dicotomia falsa — considerando apenas os dois extremos num continuum de possibilidades intermediárias (por exemplo: Claro, tome o partido dele; meu marido é perfeito; eu estou sempre errada. Ou: Ame o seu país ou odeie-o. Ou: Se você não é parte da solução, é parte do problema);
- curto prazo versus longo prazo — um subconjunto da exclusão do meio-termo, mas tão importante que o separei para lhe dar atenção especial (por exemplo: Não temos dinheiro para financiar programas que alimentem crianças mal nutridas e eduquem garotos em idade pré-escolar. Precisamos urgentemente tratar do crime nas ruas. Ou: Por que explorar o espaço ou fazer pesquisa de ciência básica, quando temos tantas pessoas sem teto?);
- declive escorregadio, relacionado à exclusão do meio-termo (por exemplo: Se permitirmos o aborto nas primeiras semanas da gravidez, será impossível evitar o assassinato de um bebê no final da gravidez. Ou, inversamente: Se o Estado proíbe o aborto até no nono mês, logo estará nos dizendo o que fazer com os nossos corpos no momento da concepção);
- confusão de correlação e causa (por exemplo: Um levantamento mostra que é maior o número de homossexuais entre os que têm curso superior do que entre os que não o possuem; portanto, a educação torna as pessoas homossexuais. Ou: Os terremotos andinos estão correlacionados com as maiores aproximações do planeta Urano; portanto — apesar da ausência de uma correlação desse tipo com respeito ao planeta Júpiter, mais próximo e mais volumoso — o planeta Urano é a causa dos terremotos); *4
- espantalho — caricaturar uma posição para tornar mais fácil o ataque (por exemplo: Os cientistas supõem que os seres vivos simplesmente se reuniram por acaso — uma formulação que ignora propositadamente a ideia darwiniana central, de que a natureza se constrói guardando o que funciona e jogando fora o que não funciona. Ou isso é também uma falácia de curto prazo/longo prazo — os ambientalistas se importam mais com anhingas e corujas pintadas do que com gente);
- evidência suprimida, ou meia verdade (por exemplo: Uma “profecia” espantosamente exata e muito citada do atentado contra o presidente Reagan é apresentada na televisão; mas — detalhe importante — foi gravada antes ou depois do evento? Ou: Esses abusos do governo pedem uma revolução, mesmo que não se possa fazer uma omelete sem quebrar alguns ovos. Sim, mas será uma revolução que causará muito mais mortes do que o regime anterior? O que sugere a experiência de outras revoluções? Todas as revoluções contra regimes opressivos são desejáveis e vantajosas para o povo?);
- palavras equívocas (por exemplo, a separação dos poderes na Constituição norte-americana especifica que os Estados Unidos não podem travar guerra sem uma declaração do Congresso. Por outro lado, os presidentes detêm o controle da política externa e o comando das guerras, que são potencialmente ferramentas poderosas para que sejam reeleitos. Portanto, os presidentes de qualquer partido político podem ficar tentados a arrumar disputas, enquanto desfraldam a bandeira e dão outros nomes às guerras — “ações policiais”, “incursões armadas”, “ataques de reação protetores”, “pacificação”, “salvaguarda dos interesses norte-americanos” e uma enorme variedade de “operações”, como a “Operação da Causa Justa”. Os eufemismos para a guerra são um dos itens de uma ampla categoria de reinvenções da linguagem para fins políticos. Talleyrand disse: “Uma arte importante dos políticos é encontrar novos nomes para instituições que com seus nomes antigos se tornaram odiosas para o público”).
Conhecer a existência dessas falácias lógicas e retóricas completa o nosso conjunto de ferramentas. Como todos os instrumentos, o kit de detecção de mentiras pode ser mal empregado, aplicado fora do contexto, ou até usado como uma alternativa mecânica para o pensamento. Mas, aplicado judiciosamente, pode fazer toda a diferença do mundo — ao menos para avaliar os nossos próprios argumentos antes de os apresentarmos aos outros.
A indústria do tabaco norte-americana fatura cerca de 50 bilhões de dólares por ano. Há uma correlação estatística entre o fumo e o câncer, admite a indústria do fumo, mas não existe, dizem, uma relação causal. Uma falácia lógica está sendo cometida, é o que afirmam. O que significa tudo isso? Talvez as pessoas com predisposições hereditárias para contrair câncer tenham predisposições hereditárias para drogas que viciam — assim, poderia haver uma correlação entre o câncer e o fumo, mas aquele não seria causado por este. Podem-se inventar conexões desse tipo, cada vez mais forçadas. Essa é exatamente uma das razões por que a ciência insiste em fazer experimentos de controle.
Vamos supor que se pintassem as costas de um grande número de camundongos com alcatrão de cigarro, e que também se observasse à saúde de um número quase idêntico de camundongos que não foram pintados. Se os primeiros contraem câncer e os segundos não, pode-se ter bastante certeza de que a correlação é causal. Trague a fumaça de tabaco, e a chance de contrair câncer aumenta; não trague, e a taxa permanece no nível básico. O mesmo vale para o enfisema, a bronquite e as doenças cardiovasculares.
Quando, em 1953, se publicou a primeira obra na literatura científica mostrando que as substâncias presentes na fumaça do cigarro, quando espargidas nas costas de roedores, produzem tumores malignos, a reação das seis maiores companhias de tabaco foi começar uma campanha de relações públicas para impugnar a pesquisa, patrocinada pela Fundação Sloan Kettering. Uma reação semelhante à da Du Pont Corporation, quando em 1974 foi publicada a primeira pesquisa mostrando que seu produto Freon ataca a camada protetora de ozônio. Há muitos outros exemplos.
É de se pensar que, antes de denunciar descobertas científicas indesejadas, as principais companhias deveriam empregar os seus consideráveis recursos para verificar a segurança dos produtos que se propõem fabricar. E, se perdessem algo, se cientistas independentes sugerissem um perigo, por que as companhias se oporiam? Prefeririam matar pessoas a perder lucros? Se, nesse mundo incerto, um erro precisa ser cometido, ele não deveria ter o objetivo de proteger os clientes e o público? E, por outro lado, o que esses casos revelam sobre a capacidade de o sistema de livre empresa policiar a si mesmo? Não são exemplos em que a interferência do governo é claramente a favor do interesse público?
Um relatório interno da Brown and Williamson Tobacco Corporation, de 1971, lista como objetivo da companhia “afastar das mentes de milhões a falsa convicção de que fumar cigarros causa câncer de pulmão e outras doenças; uma convicção baseada em pressupostos fanáticos, rumores falaciosos, afirmações sem fundamento e declarações não científicas de oportunistas que buscam notoriedade”. Eles se queixam do
ataque incrível, sem precedentes e abominável contra o cigarro, constituindo o maior libelo e a maior difamação já perpetrados contra um produto na história da livre empresa; um libelo criminoso de tão grandes proporções e implicações que é de se perguntar como essa cruzada de calúnias pode se acomodar sob a Constituição pode ser tão desrespeitada e violada [sic].
Essa retórica é apenas um pouco mais inflamada do que a das declarações que a indústria de tabaco emite de tempos em tempos para consumo público.
Há muitas marcas de cigarros que anunciam baixo nível de alcatrão (dez miligramas ou menos por cigarro). Por que isso é uma virtude? Porque é no alcatrão refratário que os hidrocarbonetos aromáticos policíclicos e algumas outras substâncias cancerígenas se concentram. As propagandas que enfatizam baixos teores de alcatrão não são uma admissão tácita das companhias de tabaco de que os cigarros realmente causam câncer?
A Healthy Building lnternational é uma organização lucrativa, que recebe há anos milhões de dólares da indústria do fumo. Ela realiza pesquisas sobre fumo passivo, e presta declarações para as companhias de tabaco. Em 1994, três de seus técnicos reclamaram que altos executivos teriam falsificado dados sobre partículas de cigarro inaláveis no ar. Em todos os casos, os dados inventados ou “corrigidos” faziam a fumaça de cigarro parecer mais segura do que as medições dos técnicos haviam indicado. Os departamentos de pesquisa da companhia ou as firmas do ramo contratadas já descobriram alguma vez que um produto é mais perigoso do que a empresa de tabaco declarou publicamente? Em caso positivo, mantiveram o emprego?
O tabaco vicia; segundo muitos critérios, ainda mais do que a heroína e a cocaína. Havia uma razão para as pessoas “caminharem uma milha por um Camel”, como diziam os anúncios da década de 40. Já morreram mais pessoas por causa do fumo do que em toda a Segunda Guerra Mundial. Segundo a Organização Mundial de Saúde, o fumo mata 3 milhões de pessoas por ano em todo o mundo. Esse número vai chegar a 10 milhões de mortes por ano em 2020 em parte devido a uma grande campanha publicitária que pinta o tabagismo como um hábito avançado e elegante para as jovens mulheres do mundo em desenvolvimento. É em parte por causa da falta disseminada de conhecimento sobre a detecção de mentiras, o pensamento crítico e o método científico que a indústria de tabaco consegue ser o fornecedor bem-sucedido dessa mistura de venenos que viciam. A credulidade mata.
Notas:
- Esse é um problema que afeta os júris. Estudos retrospectivos mostram que alguns jurados tomam a sua decisão muito cedo — talvez durante a argumentação de abertura; depois guardam na memória as provas que parecem sustentar suas impressões iniciais e rejeitam as contrárias. O método das hipóteses eficazes alternativas não está em funcionamento nas suas cabeças.
- Uma formulação mais cínica feita pelo historiador romano Políbio: “Como as massas são inconstantes, presas de desejos rebeldes, apaixonadas e sem temor pelas consequências, é preciso incutir-lhes medo para que se mantenham em ordem. Por isso, os antigos fizeram muito bem ao inventar os deuses e a crença no castigo depois da morte”.
- Meu exemplo favorito é a história que se conta sobre o físico italiano Enrico Fermi, recém-chegado às praias norte-americanas, membro do Projeto Manhattan de armas nucleares, e tendo de se defrontar com chefes-de-esquadra norte-americanos no meio da Segunda Guerra Mundial.
— Fulano de tal é um grande general — disseram-lhe.
— Qual é a definição de um grande general? — perguntou Fermi na sua maneira característica.
— Acho que é um general que ganhou muitas batalhas consecutivas.
— Quantas?
Depois de alguma hesitação, decidiram-se por cinco.
— Quantos dos generais norte-americanos são grandes generais?
Depois de mais alguma hesitação, decidiram-se por uma pequena porcentagem. — Mas imaginem — replicou Fermi — que não exista isso que vocês chamam de grande general, que todos os exércitos tenham forças iguais, e que vencer uma batalha seja uma simples questão de sorte. Nesse caso, a probabilidade de vencer uma batalha é de uma em duas, ou 1/2; duas batalhas, 1/4; três, 1/8; quatro, 1/16; e cinco batalhas consecutivas, 1/32 — o que é mais ou menos 3%. Vocês esperam que uma pequena porcentagem dos generais norte-americanos ganhe cinco batalhas consecutivas — por uma simples questão de sorte. Agora, algum deles já ganhou dez batalhas consecutivas… ? - Ou: As crianças que assistem a programas violentos na televisão tendem a ser mais violentas na vida adulta. Mas a TV causou a violência, ou crianças violentas preferem assistir a programas violentos? Muito provavelmente, as duas coisas. Os defensores comerciais da violência na TV argumentam que qualquer um sabe distinguir entre a televisão e a realidade. Mas os programas infantis das manhãs de sábado têm hoje em dia uma média de 25 atos de violência por hora. No mínimo, isso toma as crianças insensíveis à agressão e à crueldade gratuita. E, se podemos implantar falsas lembranças nos cérebros de adultos impressionáveis, o que não estamos implantando em nossos filhos, quando os expomos a uns 100 mil atos de violência antes de terminarem a escola primária?
Obrigada pelo seu comentário.